terça-feira, 8 de setembro de 2015

Pobres conspiradores

Aylan Kurdi, 3 anos, morto na praia. Fiquei sem palavras, não as há para aquela imagem. Mas ei-las regressadas perante o que tenho lido, visto e ouvido sobre a questão dos refugiados. Não posso não reagir à campanha de desinformação a que tenho assistido. E à promoção do medo e da intolerância. Na verdade, se pensarem bem, é assim que os terroristas vencem: cultivando o receio entre nós, fazendo-nos abdicar daqueles que são os valores que nos definem.

Gosto de pensar que a solidariedade faz parte da matriz europeia. E estou solidária com os europeus que perderam o seu emprego, que viram o seu nível de vida baixar, que passam por extraordinárias dificuldades. De entre eles, preocupo-me especialmente, por razões óbvias, com os portugueses. Mas não comparemos aquilo que não é comparável. Estas pessoas fogem da guerra. Fogem de bombas, de armas químicas, de cabeças decapitadas a ornamentar cidades, de crianças vendidas como escravas, de mulheres violadas em grupo repetidamente. Para estas pessoas vale a pena fazerem kilómetros a pé, compensa enfrentarem o mar num bote de borracha. Viver nas ruas em Portugal é de uma desumanidade que eu não entendo na sua total dimensão. E, no entanto, continua a ser melhor que viver na Síria.

Tenho ouvido algumas pessoas alegar que "esta raça" (sim, é assim que os tratam) não merece a nossa simpatia pelo modo como acolhe o auxílio que lhe é prestado. E logo ilustram com o respectivo vídeo. Obviamente, haverá sempre ingratos. Os sírios são seres humanos e, nessa qualidade, têm características humanas. A ingratidão será uma realidade para alguns, mas não tomemos a excepção pela regra. Também há quem esteja a receber a chave de uma casa de habitação social e a falar mal da dita: vamos acabar com os programas de realojamento? Ou, talvez, abolir a escola pública porque há alunos que se baldam às aulas? De resto, e para recuperar o ponto anterior, não é preciso ter sido voluntária junto de sem-abrigo para saber que há muitos deles que recusam ir para um centro de acolhimento; provavelmente, devemos deixar de distribuir comida, cobertores e medicação a esta população. Sim, o nível de imbecilidade dos "argumentos" é este.

Depois, há aqueles que não se aperceberam que a Síria está em guerra civil desde Março de 2011. Sim, há quatro anos e meio. É gente que notou vagamente a existência de uma coisa chamada Estado Islâmico quando alguns ocidentais começaram, literalmente, a perder a cabeça. E que foi procurar no mapa a existência do país, quando, afinal, a crise humanitária na Grécia não era grega. Essas pessoas perguntam agora porque é que os sírios não fogem para os países vizinhos e muçulmanos. É uma pergunta que resulta do desconhecimento e pede explicação para um não-facto. É como querer perceber porque é verde o céu. Porque, na realidade, como a Rita Carreira já aqui bem esclareceu, a maioria dos refugiados - 4 milhões deles - está na Turquia, Jordânia e Líbano. Foi para onde os sírios foram em primeiro lugar. Quanto aos tão mencionados Arábia Saudita, Qatar e Emirados Árabes Unidos, saibam que não os acolhem, mas financiam - e são os que mais contribuíram - os campos de refugiados nos outros três países da região. E fazem-no porque, primeiro, também são ditaduras como a de Bashar al-Assad (e foi com um combate a esta que a guerra começou); segundo, porque a questão é etnica e religiosamente muito mais complexa que a abordagem simplista do "são muçulmanos". Para facilitar a compreensão aos que não conseguem ver além do próprio umbigo, deixem-me lembrar que na Irlanda do Norte também são todos cristãos... De resto, arrepia-me este argumento vindo de portugueses. Portugueses que emigraram, na década de 60, para o Luxemburgo: então não tinham ali a Espanha, também latina e católica, muito mais perto?!

Sabem, na verdade, eu tenho pena destas pessoas, de quem defende estas ideias sobre este tema. A sério. Primeiro, porque tenho sempre pena dos ignorantes. Mas, principalmente, porque imagino que estas pessoas devam ter tido uma vida cheia de perversidade para terem a sórdida ideia de que Aylan Kurdi jazido na praia faz parte de um maquiavélico plano de conquista da Europa.

5 comentários:

  1. Obrigada, Sara! Acordei a pensar nisto, mas nunca o poderia ter comunicado tão bem como tu.

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  2. True.
    Um piqueno reparo, que aprendi hoje no artigo de João Miguel Tavares: o rapaz era Alan, não Aylan. Não percebo porque é que a imprensa espalhou o nome tão errada quanto rapidamente...

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  3. Muito bem escrito! Parabéns à autora!

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  4. "De resto, arrepia-me este argumento vindo de portugueses." Também eu me sinto assustada. Mas não surpreendida. A Psicologia já nos ensinou que as pessoas tendem a reproduzir as realidades que experimentaram, mesmo as que acharam erradas: e, assim, um abusado muito frequentemente se transforma num abusador.

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