segunda-feira, 7 de setembro de 2015

Vencedores e empreendedores

No seu “The Power Elite”, publicado em 1956, C. W. Mills conta-nos que, nessa época, nos EUA, apenas 9% dos muitos ricos tinham origem em famílias de classes inferiores - em famílias com dinheiro suficiente apenas para atender às necessidades essenciais e, por vezes, pequenos confortos. A contribuição da classe média para os muito ricos manteve-se estável desde os finais do século XIX. Na geração de 1900, forneceu dois nomes em dez; em 1925, três; em 1950, novamente dois. Mas as contribuições das classes superior e inferior inverteram-se acentuadamente.
Em meados do século XX, nos EUA, tornava-se cada vez mais difícil ganhar e acumular dinheiro suficiente para conseguir chegar ao topo. Não era comum, e não foi nunca um facto predominante, acumular prudentemente até chegar ao topo, num arrastar-se lento, burocrático. Era difícil subir ao alto, e muitos dos que tentavam caiam a meio do caminho. É muito mais fácil e mais seguro nascer no alto, dizia Mills.
Mesmo no final do século XIX, em que se alimentou o mito do self-made-man, 39% dos muitos ricos provinham da classe superior - em percentagem igual à classe inferior. Na geração de 1925, a percentagem da classe inferior reduziu-se para 12% e em 1950 para 9%. As classes superiores, por outro lado, contribuíram com 56% em 1925 e com 68% em 1950. A realidade e a tendência são de que o recrutamento se faça na classe superior, concluía Mills.
Segundo Mills, a carreira económica dos muito ricos não foi nem "empreendedora" nem "burocrática". "Empreendedor" e "burocrata" são palavras da classe média, tendo conotações de classe média. O burguês sóbrio, fundador de uma pequena empresa, a expansão gradual dos seus negócios sob cuidadosa vigilância até se tornar uma grande empresa americana, não proporcionava, segundo Mills, um quadro real dos fundadores de fortunas nos altos níveis.
O empreendedor, na imagem clássica, deveria correr riscos, não apenas com o seu dinheiro, como com a sua própria carreira; mas dado o “grande salto”, habitualmente não precisa de correr sérios riscos, pois começa a desfrutar da "acumulação de vantagens" que levam à grande fortuna. Se houver algum risco, são os outros que o correm.  Por exemplo, quanto mais se tem, maior o crédito - as oportunidades de usar o dinheiro dos outros - e portanto menor o risco necessário para acumular mais e mais dinheiro.
A manipulação de títulos e um jogo legal bastante rápido são as principais chaves do êxito desses “saltos empreendedores”. Graças a tais recursos, alguns indivíduos atingiram posições que representam uma acumulação de vantagens - mesmo os que aparentemente se elevaram lentamente na hierarquia das empresas, raramente subiram graças ao seu talento na administração de negócios; regra geral, o talento que revelaram foi o de advogado ou - mais raramente - de inventor industrial.
O principal facto económico sobre os muito ricos é essa acumulação de vantagens: os que tem grande riqueza ocupam uma série de posições estratégicas para fazê-la render ainda mais. A acumulação de vantagens, no seu auge, é paralela ao círculo vicioso da pobreza, no fim da escala. Uma série de êxitos estimula a ambição enérgica; pequenos fracassos sucessivos abatem o ânimo da vontade de vencer.
Estas conclusões são de meados dos anos 1950. Hoje, nos EUA, é de certeza ainda mais difícil, no espaço de uma vida, fazer uma fortuna vindo de baixo. É por isso que não posso deixar de ver com um certo asco o discurso sobre os “vencedores” e os “empreendedores” (a tal palavra que a classe média gosta tanto, como dizia Mills há 60 anos) de Donald Trump, um homem que herdou uma fortuna de 200 milhões. Como diz um velho ditado, o mais difícil é ganhar o primeiro milhão.

3 comentários:

  1. Eu gosto do Trump essencialmente por um motivo: é um espelho onde o pior da América se pode rever. O Partido Republicano tem de ser confrontado com os valores que tem defendido. Se o Trump é o instrumento que vai fazer isso, "so be it!"

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  2. Caro JCA,

    Nem mais e parece-me evidente se se pensar um pouco. Um miúdo filho de um pai rico, que resolva começar um negócio, tem sempre inúmeras vantagens face à "concorrência" e não estou a falar de dinheiro. Vamos admitir que o pai não lhe empresta dinheiro e não avaliza (ou avaliza de forma limitada) empréstimos de terceiros:

    - A empresa tem "à partida" uma rede de contactos e conhecimentos que as outras não têm. Seja por amizade (do próprio ou dos pais) ou família, é-lhe fácil entrar nas empresas de maior porte e capital (e, em consequência, mais dispostas a "experimentalismos") por cima.

    - Os bancos, mesmo sem avais formais, apostam na capacidade da família socorrer o "empreendedor" em caso de desaire. Sentem-se igualmente forçados a dar melhores condições, não vá isso afectar os negócios mais chorudos que têm com a restante família.

    - Em caso de entraves burocráticos, o acesso ao poder político é mais facilitado e daí a rapidez de resposta dos serviços públicos. E estou a falar de procedimentos absolutamente legais.

    - Finalmente (e sem alongar muito a lista), o nome pesa. Como há 500 anos, ser "filho d'algo", ter o nome na empresa (uma espécie de brasão democrático) inspira admiração e confiança. E as pessoas gostam muito de afagar o ego e dizer que fazem negócios com gente importante (ou filhos destes...)

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    1. Caro Carlos Duarte
      A tal "acumulação de vantagens" de que falava C. W. Mills são exactamente do tipo das que o Carlos descreve. O post estava a ficar grande e por isso não as descrevi, mas ainda bem que o fez, porque o texto ficou assim mais completo e claro - percebi isso depois de ter relido o post.

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