sábado, 19 de setembro de 2015

Tenho um cão feminista

Em Março deste ano contei-vos a história da minha cadela Stella. A Stella tinha muitos problemas de saúde e, no final da vida dela, eu demorava mais de três horas por dia a cuidar dela. É por isso que eu tenho tanto tempo livre para aqui escrever.

Há alguns anos, a Stella tinha arranhado um olho que ficou infectado e eventualmente teve de ser retirado. Alguns meses antes de morrer, as pálpebras da Stella, que tinham sido cosidas, apenas um buraquinho foi deixado aberto para drenagem de líquidos que se poderiam acumular na cavidade, começaram a descolar-se. O olho da Stella estava sempre cheio de porcaria e apareceu um buraco. Eu levei-a ao veterinário, enviei um email ao oftalmologista que lhe tinha retirado o olho (um dos melhores oftalmologistas de animais nos EUA), dei-lhe medicamentos, limpei o olho e nada ajudou. Operá-la outra vez não era uma opção porque ela já estava demasiado fraca e nós nem sabíamos o que estava a causar o problema--seria uma cirurgia exploratória.

Um dia, depois de lhe pegar ao colo, e de ver que o olho já estava cheio de porcaria algumas horas depois de eu o limpar, desisti por uns minutos. Coloquei a Stella numa almofada e sentei-me a resmungar com a vida porque nada do que eu lhe fazia funcionava. Senti-me completamente inapta e frustrada. Nesse momento, o meu cão Alfred aproximou-se da Stella e começou a lamber-lhe o olho. Durante alguns minutos ele limpou a Stella e o olho dela melhorou e ficou limpo durante muito mais tempo do que quando eu o limpava. Desse dia em diante, a primeira coisa que o Alfred fazia quando acordava era limpar a Stella; a última coisa que ele fazia antes de ir dormir era limpar a Stella. Todos os dias ele lhe dava banho com a língua e cuidava dela, como se ela fosse um cachorrinho pequeno. O Alfred era, na altura, um macho de nove anos, a Stella era uma fêmea de quase 12 anos.

O meu cão Alfred não pára aí. Ele também me ajudou a treinar o irmão mais novo e, quando eu passeio cães de amigos, ele tenta guiá-los para eles se orientarem no nosso passeio: não podem ir a puxar na trela, não podem ir à minha frente, têm de ter uma atitude submissa, etc. O Alfred lá faz o papel dele e eu nem o mando, ele é que toma a iniciativa.

Se um cão macho compreendeu que devia ajudar a cuidar de um outro cão que estava a morrer, porque é que nós humanos não vemos isso? Como é que se justifica dizer "as mulheres sabem que têm de organizar a casa e pagar as contas a dias certos, pensar nos mais velhos e cuidar dos mais novos"? Só encontro uma justificação aceitável: a pessoa que diz isto está a dizer que os homens têm de ser mais como as "mulheres" ou, no mínimo, mais como o meu cão.

Mais de 50% da população portuguesa é mulher. Se o país quer crescer, não o poderá fazer sem que as mulheres sejam uma parte integrante da sociedade. Integrante não quer dizer apenas que sabemos que temos de tomar conta dos mais velhos e das crianças--isso é uma responsabilidade de todos nós, independentemente do nosso género.

Já sabemos que a demografia portuguesa está pelas ruas da amargura, mas as mulheres não são parvas. Se elas decidem não ter tantos filhos é porque os homens não as inspiram a ter filhos--não inspiram confiança, não as ajudam com as tarefas, etc. Já sabemos que há homens que têm ajudado bastante, mas não é suficiente, até porque são uma minoria.

Sugiro que ouçam a Chimamanda Ngozi Adichie neste commencemnet speach, em Wellesley College, em 2015. Ela tem bons conselhos para dar a todos nós: homens e mulheres de todo o mundo.

"We can not always bend the world into the shapes we want but we can try, we can make a concerted and real and true effort. And you are privileged that, because of your education here, you have already been given many of the tools that you will need to try. Always just try. Because you never know.

And so as you graduate, as you deal with your excitement and your doubts today, I urge you to try and create the world you want to live in.

Minister to the world in a way that can change it. Minister radically in a real, active, practical, get your hands dirty way.

Wellesley will open doors for you. Walk through those doors and make your strides long and firm and sure.

Write television shows in which female strength is not depicted as remarkable but merely normal.

Teach your students to see that vulnerability is a HUMAN rather than a FEMALE trait.

Commission magazine articles that teach men HOW TO KEEP A WOMAN HAPPY. Because there are already too many articles that tell women how to keep a man happy. And in media interviews make sure fathers are asked how they balance family and work. In this age of ‘parenting as guilt,’ please spread the guilt equally. Make fathers feel as bad as mothers. Make fathers share in the glory of guilt.

Campaign and agitate for paid paternity leave everywhere in America.

Hire more women where there are few. But remember that a woman you hire doesn’t have to be exceptionally good. Like a majority of the men who get hired, she just needs to be good enough."

~ Chimamanda Ngozi Adichie

6 comentários:

  1. Rita, quando falas em homens que ajudam, estás a ser pouco feminista, estás a assumir que o ónus das tarefas é da mulher e, portanto, se eles levantam o rabo do sofá para lavar uma loicinha é à laia de voluntariado. Estou certa de que não era essa a intenção do teu discurso. Mas, por isso mesmo, tinha de to apontar, porque é algo que está profundamente enraizado e de que nem tomamos consciência. Como aqueles ruídos de baixa frequência, cujo incómodo só se torna perceptível quando sentimos alívio ao desligarem o ar condicionado. E são esses que nos lixam a cabeça!...

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    1. Vera, tu e eu discordamos nisto. Um casamento e/ou um filho é um projecto onde duas pessoas se comprometem a fazer algo juntas. Ambas ajudam. Negar aos homens a palavra "ajudar" porque isso implica que o dever é delas é uma concepção de casamento e filhos na qual eu não me revejo.

      Quantas vezes, uma criança não chega ao pé de um pai ou de uma mãe e diz "Preciso de ajuda". Agora vamos ensinar os miúdos a não usar a palavra "ajuda"? Acho que uma das características de nós vivermos em sociedade é o facto de ser positivo para a espécie a entre-ajuda.

      Porque é que as feministas não viram o problema ao contrário? Porque é que não usam a palavra ajuda com as mulheres em vez de a submeter ao regime do politicamente correcto? Acho muito mais interessante dizer que as mulheres ajudam bastante lá em casa.

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  2. Rita,

    Não podia concordar mais com o extracto do commencement speach pela Chimamanda Ngozi Adichie. Mas há um ponto que julgo que é importante e, se for "anti-feminista", que seja: grande parte da culpa com os actuais preconceitos de género (eu prefiro o termo "gender roles", mas em português a coisa não sai) reside nas próprias mulheres.

    Falou, e bem, nas revistas femininas. A verdade é que são algo que sempre me meteram espécie. O conteúdo das mesmas é de tal maneira esquizofrénico (tanto discutem como ser uma mulher de sucesso e vencer num mundo dominado por homens numa página como discutem como agradar aos homens na página seguinte) que parece que o público alvo mudam ao longo da publicação. E o primeiro passo para combater isso mesmo passa pelas mulheres rejeitarem (i.e. não comprarem) as referidas revistas.

    Os homens, em muita coisa, são beneficiários passivos das "lições" incutidas em jovens rapariguinhas pelas respectivas mães, avós e tias. E se passa por nós (e por mim falo) rejeitar esses benefícios não cabe a nós quebrar o ciclo vicioso de auto-repressão por parte do género feminino.

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  3. Muito bonita, a história dos cães (os bichos são incríveis).

    Devo dizer que quando estive por uns tempos em Estocolmo levei um bocado de tempo a habituar-me a uma coisa que, aliás, teve de me ser explicada pelos meus amigos suecos: por razões várias, entre elas para não embaraçar uma pessoa deficiente, por exemplo, sugerindo que ela precisa de ajuda, eles tendem a esperar que a pessoa peça ajuda. Assim, quando me caía qualquer coisa ao chão (ou, como uma vez numa livraria, um monte de livros), era escusado presumir que um homem me ia apanhar o que tinha caído (nessse dia, na livraria, cheguei a fazer um sorriso para o homem que se dirigia para mim porque nem me passou pela cabeça que se desviasse e continuasse o seu caminho, como fez...). Mas nesse país escandinavo que anda há décadas a batalhar pela igualdade entre os homens e as mulheres, ao ponto de ter uma coisa no Nordiska Museet sobre o trabalho doméstico, sempre que me caiu qualquer coisa ao chão em frente duma mulher, nunca foi preciso pedir ajuda, ela imediatamente a apanhou. Comme quoi...

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  4. O desabafo duma jovem mãe: se a mensalidade do infantário se mantivesse igual ou com um pequeno aumento, podia pensar em ter outro filho; assim não aguento.
    Para os incríveis que inventam muitos "incentivos" e razões faz bem meditar neste desabafo.

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