sábado, 19 de setembro de 2015

Trabalho em casa

[Não, não é um post feminista, nem sobre o começo do ano escolar.]

A semana passada foi notícia um acórdão do Tribunal de Justiça da UE que, no Diário de Notícias, por exemplo, mereceu o seguinte título: "Deslocações para o emprego passam a contar como horas de trabalho". Noutras publicações, a manchete não era muito diferente e, como as pessoas raramente vão além das "gordas", desataram em comentários de regozijo. Lendo a notícia, percebe-se que esta contabilização é válida apenas para as profissões que não têm um local de trabalho fixo. Independentemente disso, ainda que não houvesse tal qualificação, creio que não existiria motivo para celebrar. E explico porquê: incluir a deslocação para o trabalho como horário laboral significa, ceteris paribus, que quem mora mais longe é menos produtivo, logo menos interessante para o empregador.

Eu percebo que estar hora e meia no IC19 é desgastante. É um custo para o trabalhador. Mas não corresponde a um benefício para o empregador, logo não faz sentido fazê-lo pagar. O que me parece lógico é eliminar esse desperdício de tempo, energia e dinheiro. Num mundo onde existem computadores portáteis e internet 3G nos telemóveis, muitas das tarefas que actualmente realizamos num escritório poderiam ser feitas em qualquer outro lugar que achássemos mais aprazível. Aliás, quem sai de Portugal e vai para outras paragens mais a Norte ou atravessa o Atlântico sabe que o trabalho a partir de casa (e casa é uma metonímia) já não causa surpresa. Na verdade, há várias empresas que não teriam lugar para os seus colaboradores acaso eles decidissem aparecer todos ao mesmo tempo. Essas empresas estão a poupar, desde logo, na dimensão das suas instalações, mas também numa série de outros custos, tais como água, luz ou limpeza. No seu livro "O Mundo É Plano", Thomas Friedman relata o exemplo da JetBlue, onde cerca de 400 pessoas trabalhavam em homesourcing. Segundo o Presidente da companhia, estas pessoas estavam mais motivadas, eram mais leais e menos propensas a conflitos laborais, o que as tornava 30% mais produtivas. Mas mais: ao estarem em casa, podiam conciliar melhor o exercício de uma profissão com a vida familar. Gostava que David Neeleman trouxesse esta ideia para a TAP. No entanto, percebo os obstáculos com que esta solução aparentemente win-win se depara em Portugal.

Em primeiro lugar, permitir o trabalho a partir de casa implica que se tenha uma agenda de trabalho bem definida, em que se sabe exactamente quando a presença física do empregado será necessária, porque há vezes em que o é. Os portugueses são óptimos a improvisar, mas organização e planeamento não é exactamente o seu forte.

Segundo, é preciso que haja confiança (parece que depois desta campanha eleitoral é coisa que não vai faltar, ganhe quem ganhar, mas eu não estou tão optimista). Esse é um dos problemas sistematicamente apontados ao nosso país: os agentes não confiam uns nos outros. E, provavelmente, terão razões para achar que se vive um bocado na lógica do ver-quem-engana-mais-o-próximo. Portanto, os empregadores, que acham que os trabalhadores procuram ser o mais preguiçoso possível, tenderão a não querer perdê-los de vista.

Há, ainda, um terceiro problema, que é o da pressão social. Os portugueses preocupam-se muito com as aparências. Costuma dizer-se que à mulher de César não basta sê-lo, tem também que parecê-lo; os portugueses vão mais além e acham que ser-se não é nada importante, desde que se pareça. Por exemplo, não vêem qualquer problema em estar no Facebook durante o expediente, mas ai daquele que faz um comentário entre as 9h e as 18h! Ora, na cabeça de muita gente, se não se põe o pé de fora de casa, não se está a trabalhar. Os relatórios aparecem feitos, as reuniões estão preparadas, os serviços vendem-se, os artigos são publicados, mas, se isto não foi feito nas instalações do empregador, a pessoa é claramente uma desocupada. Portanto, preferem deixar na creche às 7h30 o miúdo de 10 meses e passar hora e meia a atravessar a ponte 25 de Abril, só para que toda a gente veja que são exemplares e produtivos trabalhadores. Tal como concorrem entre si para ver quem é o último a abandonar as instalações. Tenho um amigo a quem a empresa dava um horário semi-flexível: permitia-lhe entrar entre as 8h e as 10h, saindo depois de trabalhar as 8h diárias. Ele preferia estar lá cedo e comer rapidamente uma sandes levada de casa, para às quatro e meia ainda ir dar uns mergulhos à praia. Ao fim de poucas semanas, desistiu, cedeu à pressão dos que chegavam às 10h e faziam uma hora de almoço e o olhavam de soslaio quando ele dizia "até amanhã!" ainda com Sol.

Tenho pouca esperança que, num futuro próximo, se possa mudar o estado de coisas e passar para novas formas de trabalho, com menos custos para o empregador, com mais liberdade para quem trabalha. Há umas semanas, a possibilidade de exercer a actividade profissional a partir de casa para pais de crianças até aos 3 anos foi passada a lei. Desde que a entidade patronal tenha meios para tal e que a função se preste a isso. Veremos quantos serão os pedidos e, entre estes, quantos serão aceites. Foi, a meu ver, um passo certo no sentido da promoção da natalidade, mas as mentalidades muito dificilmente se mudam por decreto.


7 comentários:

  1. Sara, uma nota sobre a decisão da UE.

    Como escreveu, a mesma só se aplica a trabalhadores sem local de trabalho fixo (o "clássico" é o vendedor e salvo erro era um destes casos que foi analisado pelo tribunal). O que acontecia até agora é que se eu tivesse um trabalhador que morasse no Porto e tivesse que ir a um cliente em Faro, o horário de trabalho apenas começava quando este chegasse ao cliente em Faro (e, por analogia, as ajudas de custo que lhe seriam pagas). Com esta decisão, o horário de trabalho e ajudas de custos começam a contar a partir do momento em que este sai de casa.

    O que me preocupa nesta decisão é que, para corrigir uma injustiça dos trabalhadores que não têm local de trabalho fixo, se cria outra, já que aos os trabalhadores com local de trabalho fixo não lhes é contabilizado o tempo de deslocação até este.

    O engraçado é que em muitos contratos colectivos de trabalho (e estou a pensar especificamente no que abrange a minha empresa) esta situação já estava devidamente tipificada, sendo que a contagem dependia da distância até à residência ou sede/delegação da empresa (qual fosse mais perto), sendo que até 30 km (salvo erro) a contagem é a partir da chegada ao cliente e acima disso desde o momento de saída de casa / empresa.

    O teletrabalho, de que fala, pode ser um bom substituto mas acima de tudo para quem tem um local de trabalho fixo (em vez de estar sentado na empresa em frente ao computador, fica em casa sentado em frente ao computador). No caso em apreço, não é aplicável.

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  2. Eu trabalhei durante as minhas férias. Em troca, pude estar em Portugal 25 dias. Iupi...

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    1. Esse é um dos problemas daquilo que proponho, estou ciente. O facto de se poder trabalhar a partir de qualquer sítio e com flexibilidade no horário, torna o expediente difícil de definir. Corre-se o risco de todo o momento ser potencialmente de trabalho.

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    2. Há alguns de nós que já têm esse "problema" - chama-se isenção de horário de trabalho e está previsto no Código do Trabalho.

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  3. Carlos Duarte, a isenção de horário de trabalho não obriga o trabalhador a prestar os seus serviços 24 horas por dia. O horário de trabalho a praticar, será o mais conveniente para o bom desempenho das suas funções, mas dentro de uma margem razoável. Nalguns contractos de trabalho estavam previstas, em média, mais duas horas por dia, além do horário normal.
    Por outro lado, todos os trabalhadores devem ter um "local de trabalho", que, em princípio, deve situar-se num estabelecimento da entidade patronal, mas que também pode ser a residência do trabalhador. Esta definição é importante também para se determinar, nas deslocações, as compensações devidas ao trabalhador - ajudas de custo, despesas de transporte, etc..

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    1. Caro Tiro ao Alvo,

      Ninguém disse que isenção de horário de trabalho implicava trabalhar 24 horas/dia. Implica, isso sim, flexibilidade na definição de horários. Da mesma forma, isenção de horário de trabalho também não implica a não-existência de um local de trabalho fixo, antes a complementa (nesse aspecto).

      Pegando no post inicial da Sara Pitola sobre a decisão do TJUE, o nosso código de trabalho (e, em mais detalhe, alguns contratos colectivos de trabalho) já prevê a situação em apreço, pelo que não me parece que seja algo de revolucionário cá. O que se usa é pouco os instrumentos disponíveis para regulação de trabalho.

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  4. Interrogo-me se muitos dos motivos que são normalmente apresentados para existirem empresas com empregados (em vez de simplesmente comprarem o que precisam a fornecedores externos) também não serão motivos para dificultem as pessoas puderem trabalhar em casa.

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