sábado, 19 de novembro de 2016

A promoção da imaturidade

Uma criança de cinco anos faz uma birra. A mãe pega nela ao colo e apanha uma bofetada. Coitadinha, coitadinha, diz a mãe, perante a compreensão dos adultos que a rodeiam. Um jovem aluno comete uma vileza atroz. Um padre, altamente compreensivo, interpela-o: “Você não acha isso uma deslealdade?”. O jovem pergunta: “É preciso ser leal?”. O bom do padre perdeu noites de sono a pensar naquela reposta. “É preciso ser leal?”. A frase não lhe saía da cabeça. Enclausurado no espírito do tempo, que lhe dizia que todas as inclinações dos jovens são boas, simplesmente porque são dos jovens, o padre não conseguia alcançar o “óbvio ululante”: o jovem era um canalha, um pulha.
O “poder jovem” era uma das principais embirrações ou obsessões de Nelson Rodrigues (1912-1980). Há 15 anos, numa viagem ao Brasil, comprei meia-dúzia de livros do genial cronista e dramaturgo brasileiro. Espantava-me que não houvesse edições em Portugal das suas obras. Finalmente, saiu “O homem fatal”, uma selecção de 80 crónicas feita pelo Pedro Mexia. Está lá o essencial: os padres progressistas, os “intelectuais de passeata” – heróis sem risco, que condenam, ao longe, o racismo nos EUA e a guerra do Vietnam e depois vão todos parar a um bar do Leblon, esquecendo-se, de caminho, dos negros do Brasil -, as grã-finas marxistas, as feministas que vêem as mulheres como machos mal-acabados, os “idiotas da objetividade”. A “unanimidade é burra”, sublinhava o cronista brasileiro.
Mas voltemos ao “poder jovem”. Nelson Rodrigues associa-o à ascensão imparável dos idiotas (há dias o Isidro Dias citou o Nelson Rodrigues sobre esta temática num dos seus comentários). Ao fim de muitos milénios, os idiotas perceberam finalmente o “óbvio ululante”: tinham uma vantagem numérica. A partir de determinada altura (estas crónicas do Nelson Rodrigues são dos anos 60 e 70), os idiotas perderam a sua natural humildade e deixaram de ter vergonha da sua idiotia. Hoje, estão em todo o lado. No governo, nas universidades, nos media. Têm as melhores mulheres. Por uma questão de sobrevivência, rapazes inteligentíssimos, dotadíssimos têm de se fazer passar por idiotas. São os “falsos cretinos”. Não foram os jovens que pediram o poder, nem tal coisa jamais lhes passaria pela cabeça. Foram os velhos idiotas, cobardes, que deram total cobertura à imaturidade. Sacerdotes, professores, psicólogos, artistas, sociólogos. Não percebem que os jovens participam muitas vezes na nossa infeliz e, por vezes, abjecta natureza humana. O jovem é o ser humano com as suas fragilidades, tentações, corrupções, canalhices. O jovem tem todos os defeitos dos adultos e mais um: a imaturidade, lembra esta "flor de obsessão", este "velho reaccionário" chamado Nelson Rodrigues.

10 comentários:

  1. Youth is wasted on the young.

    Não será porque são cada vez menos, e as coisas mais raras são mais preciosas?

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  2. Não compreendo, mas reconheço, que a tese do politicamente correcto, como justificação da vitória de Trump, esteja a prevalecer na identificação das causas de um sucesso que, não muitos dias antes de 8 de Novembro, era considerado pela generalidade das sondagens como altamente improvável.

    Coloquem-se de parte as causas dos erros das sondagens e foquemos-nos nos resultados. Quem venceu?
    Claramente, aqueles que aderiram ao discurso de Trump.
    Foi o discurso de Trump um discurso "politicamente incorrecto" e, por esse motivo, sobrepôs-se ao discurso "politicamente correcto" dos seus opositores nas primárias e de Hillary Clinton na corrida final?

    Houve, obviamente, uma inversão do sentido das palavras que parece estar a ser geralmente despercebido. Uma mensagem "politicamente correcta" é (ou era) aquela com a qual o emissor procura ir de encontra aquilo que os receptores, na sua maioria, querem ouvir.
    Ou não?
    Se assim é, foi Trump e não Clinton quem discursou de forma mais politicamente eficaz, i.e., da forma mais politicamente correcta.

    Pelos vistos os norte-americanos que votaram em Trump (menos do que aqueles que votaram em Clinton, mas com melhores resultados pelas razões conhecidas) não votaram por melhor assistência na doença, por melhor segurança social, por mais e melhor emprego (a economia dos EUA está a crescer e o quase em situação de pleno emprego)nem por mais igualdade de oportunidades entre homens e mulheres. As mulheres brancas, aliás, votaram maioritariamente (53%) em Trump. São masoquistas, estúpidas ou adoram ser pegadas pela vagina como disse Trump?

    Para mim, a resposta é clara: Trump venceu porque apelou aos instintos nacionalistas, xenófobos, racistas de muitos norte-americanos. Se não porque outra razão? Neste sentido, fez um discurso "politicamente correcto". Ou não?

    Não quero acreditar que o tenham feito por birra a quem apetece mas não se pode dar uma palmada. Ou por estouvamento juvenil geralmente mal desculpado.
    Agora, não resta se não esperar que a dignidade democrática amadureça os "imaturos" sem palmadas.

    E que a Europa, onde as vagas de nacionalismo atingem alturas assustadoras, não caia nas mãos de trumpitos.

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    1. Também acho que "ganhou" o irracional.

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    2. O irracional tornou-se o novo racional, tal como nos anos 20/30.
      As consequências do 1.º irracional já conhecemos.
      As do 2.º veremos.

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    3. "Não quero acreditar que o tenham feito por birra a quem apetece mas não se pode dar uma palmada. Ou por estouvamento juvenil geralmente mal desculpado."

      - A votação jovem em "outsiders" e em Trump nos estados decisivos foi relevante? Eu gostaria de saber.

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    4. Confesso que quando escrevi este post não tinha em mente a eleição de Trump e, portanto, não fiz nenhuma associação entre os dois assuntos. De qualquer maneira, já que falam nisso, não me convence muito o argumento que foram os idiotas em massa que votaram no candidato republicano. Os idiotas não existiam já em 2008 e 2012 quando ganhou o Obama? Ou o número de idiotas aumentou nos últimos anos nos EUA? Se é esse o caso, então uma das conclusões a tirar é que a presidência de Obama coincidiu com uma estupidificação da sociedade americana.

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    5. Pela parte que me toca, não considerei, nem aqui nem em lado algum, que Trump tenha sido eleito por um número suficiente de idiotas. O que contesto é a ideia, generalizada, aliás, de que Hillary perdeu porque adoptou um discurso "politicamente correcto".

      Quem adoptou um discurso "politicamente correcto" foi Trump que disse a uma maioria suficiente (mas não a uma maioria de eleitores) o que essa maioria gostou de ouvir.

      E o que disse Trump para mobilizar tanta gente?
      Do meu ponto de vista foi o seu discurso xenófobo e racista. O mesmo com que
      Marine Le Pen pretende ser presidente em França, o mesmo com que os nacionalismos exacerbados pela xenofobia e pelo racismo cercam a Europa Ocidental.

      Ou há outra justificação, Caro José Carlos Alexandre?

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    6. Caro Rui Fonseca, é uma boa pergunta à qual não sei responder. O que vai na cabeça dos eleitores, ou melhor, de cada eleitor é sempre um mistério. Haverá com certeza vários motivos para votarem naquele homem, sem dúvida, execrável. Nalguns casos, acredito, que o racismo e a xenofobia foram uma motivação importante, mas noutros duvido que tenha sido essa a principal motivação. Quando o povo sente que as elites políticas ignoram a "vontade geral" e se aproveitam do sistema para beneficio próprio, o populismo, com o seu discurso anti-sistema, prometendo tudo e o seu contrário, anda perto. Mais do que julgar e insultar os americanos que votaram em Trump, penso que o mais inteligente seria tentar perceber os seus medos, inseguranças e revoltas e oferecer-lhes respostas, respostas, claro, diferentes dos simplismos de Trump, mas que sejam realistas e credíveis. Não é fácil, concedo.

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  3. "Uma criança de cinco anos faz uma birra. A mãe pega nela ao colo e apanha uma bofetada. Coitadinha, coitadinha, diz a mãe, perante a compreensão dos adultos que a rodeiam."
    (...)
    Um jovem aluno comete uma vileza atroz. Um padre, altamente compreensivo, interpela-o: “Você não acha isso uma deslealdade?”.
    (...)
    "o jovem era um canalha, um pulha"

    - Exacto e posso assegurar que não se trata de ideologização, muito menos de desprezo pelas crianças e jovens. Numa Associação local de Pais e Encarregados de Educação sabia-se que, em caso de indisciplina grave, tinha de existir uma sua intervenção clara a favor da responsabilização, porque os professores, por eles, apenas costumavam assinalar atenuantes.

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    "O “poder jovem” era uma das principais embirrações ou obsessões de Nelson Rodrigues (1912-1980)"
    (...)
    "as feministas que vêem as mulheres como machos mal-acabados."
    (...)
    "Por uma questão de sobrevivência, rapazes inteligentíssimos, dotadíssimos têm de se fazer passar por idiotas. São os 'falsos cretinos'."

    - Este escritor era quase cientista do quotidiano da 'classe média' do seu tempo.
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    "os jovens participam muitas vezes na nossa infeliz e, por vezes, abjecta natureza humana. O jovem é o ser humano com as suas fragilidades, tentações, corrupções, canalhices."
    (...)
    "O jovem tem todos os defeitos dos adultos e mais um: a imaturidade"

    - A imaturidade é tão essencial na nossa formação que o tempo relativo dos humanos antes de serem adultos é muito maior que o dos restantes animais. Sem tal tempo de imaturidade possivelmente continuaríamos onde estavam os nossos antepassados há cerca de dez mil anos - sem saberem escrever e ler, sem terem aptidões musicais e poéticas e sem sentido crítico q.b. O encurtamento da infância nunca deu bons resultados. Como, possivelmente, continua a não dar quando se quebra esta regra. O que, ainda assim, não invalida uma regra-mestra sugerida pelo grande "João dos Santos": "As crianças têm direito a sofrer!". Há algum tempo a Rita I. Carreira referiu-se a isto nos EUA a propósito dos exageros de "Entitlement". É que se generalizou a ideia de elogiar as crianças e os jovens por coisas triviais que deveriam ser percebidas como mínimos e um discípulo canadiano de Hannah Arendt têm fortes responsabilidades nisso a partir dos anos 70. Bem... A responsabilidade é de quem acreditou nele sem verificar as provas!

    Comentando outro comentário ao mesmo postal eu manifestei interesse em saber sobre a votação jovem nos EUA. Caso alguém possa informar talvez eu tenha mais alguma coisa a dizer - eu suponho que apenas dentro de alguns meses haverá dados oficiais sobre quem votou.

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    1. Prezado Isidro Dias, obrigado pelo seu comentário, como verificou, até o refiro no meu post por saber que se trata de um dos, infelizmente raros, leitores do Nelson Rodrigues em Portugal.

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