quarta-feira, 16 de novembro de 2016

O resultado nunca está garantido

O politicamente correcto é uma ideologia de uma classe média instalada nos meios de comunicação social e nas universidades que pretende impor, por lei ou através da retórica, aquilo que os outros devem pensar e o que podem ou não dizer. Geralmente, esse tipo de imposições está associado a determinadas minorias, vítimas de discriminação. É, por isso, que não choca ninguém que se chamem todos os nomes a grupos não incluídos no catálogo das "vítimas minoritárias”, nomeadamente os brancos pouco qualificados que votaram em Trump. Curiosamente, esta gente, hoje alvo de todo o escárnio e desprezo, correspondeu, grosso modo, durante décadas ao famoso proletariado de Marx, a classe trabalhadora, a classe revolucionária, o motor da história. Entretanto, grande parte da esquerda deixou cair o proletariado e substituiu-o pelas minorias discriminadas.
Como muitos alertaram ao longo dos últimos 30 anos, o politicamente correcto está condenado a fracassar. Pior: é contraproducente. As pessoas não se tornam tolerantes à força. As classes bem-pensantes, com o seu “arzinho” de superioridade intelectual e moral, típico de quem está bem-instalado na vida, acabam, ao invés, por alimentar um profundo desprezo e ressentimento junto daqueles que querem educar. Bastou aparecer um desbocado como Trump para que todo o ressentimento acumulado durante anos voltasse à superfície, com um rosto bastante feio e assustador, sobretudo para aqueles que gostam de dar lições de moral e, ao mesmo tempo, vivem afastados do “mundo real”. É isto, como explicou o Vasco Pulido Valente no "Observador", que estes grupos de iluminados “muito modernos” parecem não perceber. O máximo que podemos fazer é convidar os outros a ver as coisas a partir de outro ângulo. Sobretudo, a melhor maneira de as pessoas se tornarem mais tolerantes e de aprenderem a conviver com a diferença é conviverem regularmente com a diferença. Com o tempo, os “naturais” embaraço e desconfiança iniciais, de parte a parte, tendem a diminuir ou a desaparecer. É esta a conclusão do sociólogo americano Erving Goffmann, no seu Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada, publicado em 1963. E, mesmo assim, o resultado nunca está garantido.  

25 comentários:

  1. Alguns acrescentos, com a sua licença:

    1. A origem do politicamente correcto vai muito para além dos trinta anos que refere, tem a sua génese na Teoria Crítica da Escola de Frankfurt, mãe do que hoje se chama (com mais propriedade) o Marxismo Cultural.

    2. Como corrente marxista, desencantada com o rumo estalinista da revolução bolchevique, o Marxismo Cultural transferiu o centro de gravidade dos conflitos na sociedade capitalista da luta de classes entre burguesia e proletariado para a luta entre categorias sociais oprimidas e a categoria dominante de opressores: as primeiras são constituídas pelas mulheres, pelas minorias étnicas, pelos homossexuais e outros grupos definidos por identidade de género/orientação sexual, pelas famílias monoparentais, grupos religiosos minoritários não-cristãos, etc; o opressor é o homem branco, particularmente o católico/cristão e pai de família.

    3. Daí a "queda" do proletariado, associado socialmente a esta categoria.

    4. A "correcção política" é apenas uma das armas do Marxismo Cultural, orientada para a fragmentação da sociedade enquanto sistema dominado pela classe opressora, e à promoção dos grupos oprimidos (dentro da óptica de engenharia social que alimenta todos os marxismos), a partir da noção do poder transformador da linguagem.

    4. Não sei se "o politicamente correcto está condenado a fracassar". Eu, pessoalmente, sempre pensei que triunfaria, antes da contra-revolução. Ainda aguardo para ver.

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    1. Obrigado, pelos "acrescentos", que vieram enriquecer e aprofundar o meu post.

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    2. A origem mais imediata é capaz de estar mesmo na "escola de Frankfurt" e afins, mas penso que é mais profundo - versões do discurso "as convenções sociais e preconceitos dominantes não passam de construções criadas para aprisionar o homem" são bastante comuns ao longo da história intelectual; há muito cheiro e sabor a isso em Rousseau, no Romantismo, em Nietschze, em Freud, etc., etc. O paradoxo do moderno "politicamente correto" é (como disse no comentário abaixo) esse discurso ter-se tornado, ele próprio, a convenção social dominante.

      E também por isso é que concordo que o termo "marxismo cultural" é capaz de ser melhor do que "politicamente correto" - em termos sociais faz diferença se um dado conjunto de ideias é defendido pela generalidade dos media e dos meios académicos, ou se o é por um punhado de intelectuais e artistas semiboêmios vivendo em águas furtadas (ou em zonas rurais desabitadas) e publicando as suas obras em edições artesanais (quer porque os media estabelecidos têm medo de pegar naquilo, quer porque eles próprios acham que isso seria vender-se ao sistema), mas em termos estritamente intelectuais, as ideias são as mesmas, sendo melhor que não sejam denominadas por um nome que só faz sentido se elas forem socialmente dominantes.

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    3. E sobre a raiz mais imediata do "marxismo cultural" ou lá o que lhe queiramos chamar, e continuando na linha de reciclar os meus textos, acho que o que tem a ver com o que escrevi dos parágrafos 10-12 desde post:

      http://ventosueste.blogspot.pt/2006/03/parados-no-tempo.html

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    4. Obrigado pelos comentários e pela sugestão de leitura, de que gostei muito, é, aliás, sempre estimulante ler os teus comentários.

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  2. Não sei, Zé Carlos. Eu não sou politicamente correcta, nem sinto necessidade de impor isso aos outros. Mas o que fazer quando chamam a Michelle Obama uma macaca de saltos altos, ou dizem a alguém gordo que é uma pessoa nojenta? É deixar correr?

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    1. Ninguém disse que a solução era fácil, o politicamente correcto é que não é uma boa solução. Mal por mal, prefiro o direito a ofender às imposições do politicamente correcto, nomeadamente a criminalização de certos comportamentos, que, claramente, entram em choque com a liberdade de expressão. É melhor deixar correr ou responder à bruta do que criminalizar certo tipo de comentários ou de querer obrigar as pessoas a substituírem certas palavras na ilusão de que assim se pode mudar a realidade. A boa-educação, o civismo, a urbanidade, a tolerância educam-se pelo exemplo e não com lições de moral de sábios paternalistas que muitas vezes nem conhecem no terreno a realidade de que falam. É preciso tempo, repetição, paciência, bons exemplos. Não faças aos outros o que não gostavas que os outros te fizessem a ti, é, no fundo, a base da moral e continua a ser dos argumentos mais persuasivos de que dispomos para sensibilizar os outros.

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  3. Esta historia to "politicamente correcto" já começa a cheirar mal. Não se trata de ser politicamente correcto. Trata-se de que certas coisas estão erradas na concepção individual de cada um e na concepção global da sociedade que construímos. Ponto.
    Porque se deve ser tolerante com o racismo, a misoginia, a xenofobia e tutti quanti? Não se trata de ser politicamente incorrecto, trata-se de estar errado. De repente começou-se a misturar alhos com bugalhos e ainda nem sequer percebi porque.
    Nunca pensei viver momentos de "divisão de águas" pois pensei que pertenciam ou passado e que eram contraproducentes. Hoje tenho a sensação clara que se devem escolher lados. Eu escolhi o meu.

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  4. "O politicamente correcto é uma ideologia de uma classe média instalada nos meios de comunicação social e nas universidades que pretende impor, por lei ou através da retórica, aquilo que os outros devem pensar e o que podem ou não dizer. Geralmente, esse tipo de imposições está associado a determinadas minorias, vítimas de discriminação."

    Essas duas frases, conjugadas, são demonstrativas como o conceito de "politicamente correto" é ambíguo (nesse ponto, tenho que reconhecer talvez o termo que entrou na moda nos últimos meses, "marxismo cultural", seja melhor) - é que junta duas coisas diferentes: a existência de padrões sociais codificando o que são ideias e comportamentos aceitáveis e condenando ao ostracismo quem se desvia (algum que provavelmente sempre existiu ao longo da história da humanidade, ou se calhar em todos os animais sociais); e o conteúdo concreto do que é esse conjunto de ideias em 2016 na Europa Ocidental e na América do Norte (a protecção dos grupos minoritários) - e eu diria que o grande paradoxo do "politicamente correto" é que o "politicamente correto" concreto (a proteção das minorias) existe largamente em oposição a existência de um "politicamente correto" abstrato (a existência de rígidos padrões comportamentais com exclusão dos desviantes): é largamente uma "censura social contra a censura social" (há tempos li um comentário, até num site de extrema-direita norte-americano, em que alguém dizia que muitas pessoas aceitavam ou até defendiam a intolerância do "politicamente correto" com um raciocino similar às das pessoas que eram a favor da pena de morte para o homicídio).

    De qualquer maneira, essa questão das fronteiras entre "ser intolerante" ou "combater a intolerância" é potencialmente bastante porosa; um exemplo que eu dei há uns tempos no meu blogue:

    «vamos supor que alguém escreve um artigo a atacar as pessoas que usam óculos modelo "aviador", dizendo que são uns foleiros, que vivem mentalmente no principio dos anos 80, que são serial killers em potência, e que nos lugares em que é "reservado o direito de admissão" deveriam ser impedidos de entrar para não dar mau ambiente; em resposta, o twitter, o facebook e até algumas colunas de opinião na imprensa escrita levantam-se em peso, acusando o autor do artigo de ser um oculosdeaviadorofóbico e um imagengista, e até promovem petições dirigidas à entidade (revista, plataforma informática, etc.) onde ele publicou o seu artigo para que ele deixe de publicar lá; a respeito disso poderia-se dizer "já não se pode dizer nada" - mas a verdade é que se as opiniões do tal autor fossem dominantes na sociedade, também se poderia dizer que estávamos numa situação em que "já não se pode usar os óculos de que se gosta".»

    Ou então pensemos, p.ex., numa Ayaan Hirsi Ali: à primeira vista parece uma típica rebelde contra o politicamente correto, critica dos hábitos das comunidades islâmicas e da tolerância da intelectualidade ocidental face a isso; mas vendo as coisas de outro modo, do ponto de vista dos muçulmanos, o que será ela senão, exatamente, uma "politicamente correta" ["intelectual feminista bem-pensante que faz carreira atacando o modo de vida e as tradições das pessoas normais"]?

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  5. Muito bom artigo, caro José Carlos Alexandre. Algo a que, de resto, já nos habituou.

    Gostaria de salientar duas passagens do seu texto:

    1 - "As pessoas não se tornam tolerantes à força. As classes bem-pensantes, com o seu “arzinho” de superioridade intelectual e moral, típico de quem está bem-instalado na vida, acabam, ao invés, por alimentar um profundo desprezo e ressentimento junto daqueles que querem educar.". Parece-me extremamente relevante. Realmente as pessoas não deixam de ser racistas ou homofóbicas ou isto ou aquilo ou o outro por causa da censura social. Deixam é de exprimir os seus sentimentos relegando-os para a esfera privada. Onde vão fermentando. Nuns casos saem de forma pacífica como está a ser agora o caso, noutros de forma violenta como está a acontecer em Espanha - em Madrid, principalmente - com a homofobia violenta a atingir proporções nunca vistas. O que, de resto, não é surpreendente também. A pressão sai sempre por algum lado.

    2 - "Sobretudo, a melhor maneira de as pessoas se tornarem mais tolerantes e de aprenderem a conviver com a diferença é conviverem regularmente com a diferença." - Enfatizo aqui precisamente "a diferença". O politicamente correcto prescreve o absurdo de que somos todos iguais e censura ferocíssimamente quem ousa dizer o contrário. Não é real nem nunca foi. A questão não é, de todo, pretender forçar a igualdade mas sim e precisamente saber lidar com a diferença. Com tudo o que isto implica, evidentemente.

    Há um aspecto acima de tudo isto, porém, que é a questão de maiorias e minorias. Na generalidade do resto do mundo, África, Ásia, América Latina, mesmo países desenvolvidos como Canadá, Austrália ou Japão, nada destas questões alguma vez se pôs. Nunca se perdeu de vista a existêndia duma série de normas de conduta aplicaveis a todos e das quais, evidentemente, não se isentam as minorias, sejam elas quais forem, nem se lhes dá trato de favor. Algo, aliás, que é uma das incoerências do marxismo cultural: por um lado igualdade de todos e por outro desculpabilização das minorias. O que acabo de escrever não vai, de todo, contra as minorias. Exactamente o contrário, mesmo. Por exemplo, desculpabilizar um criminoso dizendo que vem doutra cultura e não aprendeu melhor ou tolice semelhante é menorizar essa pessoa e o seu grupo. Não há nada pior e mais nefasto para um ser humano, para a sua evolução e autonomia social do que esta menorização. Levando também ao reverso da medalha que é as maiorias irem-se revoltando silenciosamente. Até um dia.

    Muito obrigado por este agradabílissimo e oportuno texto. :-)


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    1. Prezado Zuricher, obrigado pelas palavras simpáticas e pelo excelente comentário.

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  6. Senhor JCA:
    «Sobretudo, a melhor maneira de as pessoas se tornarem mais tolerantes e de aprenderem a conviver com a diferença é conviverem regularmente com a diferença.»
    Mau Maria, começo a não perceber nada disto.
    Então o que acaba de dizer não é a defesa do multiculturalismo?
    E o multiculturalismo não é o ódio de estimação dos politicamente incorrectos como senhor?
    O mundo está um bocado confuso, confesso.

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    1. Respeitar as diferenças é uma coisa, achar que cada um ou cada grupo, dentro do mesmo Estado, pode viver apenas de acordo com as suas regras e tradições mesmo quando estas colidem com a lei, que é o chão comum, é outra.

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    2. Mas parece-me que "respeitar as diferenças" é justamente o que qualquer dos lados (PC / anti-PC) não consegue fazer e a causa do diferendo.

      Ambos os lados aceitam que "words can hurt" (quer num sentido quer no outro, acham que expressão desaprovadora prejudica quando são eles que a recebem) mas ambos assumem que "reprovar o outro pelo seu comportamento" é algo que tem o direito/dever de fazer, e devem poder fazê-lo sem repercussões...

      C'est qu'ils sont fous, ces Romains... :-)

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    3. ** LONG - Sou forçado a dividir em dois comentários. Dado querer ser totalmente claro e inequívoco opto por dividir em dois em vez de simplesmente condensar **

      Caro iv, deixe-me dar-lhe um exemplo concreto.
       
      Tenho para mim e é minha convicção que a imigração é uma ferramenta ao serviço dos países de acolhimento e não uma porta aberta a todos os que queiram entrar. Defendo que a imigração deve ser ponderada em função dos seus efeitos económicos, sociais e demográficos o que passa inevitavelmente pela imposição de quotas não apenas totais mas também por origem. Os candidatos a imigrante devem ser sujeitos a controlos de segurança, de efectiva garantia de empregabilidade e de saúde. Isto é a realidade (mais assim ou mais assado mas vai parar ao mesmo) nos EUA, Canadá ou Austrália, por exemplo. É ainda a realidade na generalidade do resto do mundo. Defendo ainda, como medida de integração e para impedir a formação de ghettos, que cada cidade tenha uma quota máxima de estrangeiros que podem residir em cada bairro como sucedia na Bélgica ou na Alemanha há trinta anos. Fim.
       
      Dei este exemplo como podia dar outro qualquer entre 1001 assuntos mais. Desde continuar a chamar-se criada, motorista, contínuo, trolha e mais uma série de nomes que foram sendo mudados nas profissões até ao papel do homem e da mulher na sociedade e no mundo profissional, até à homofobia, até um sem fim de possibilidades. Repito, este exemplo dei-o por ser uma coisa pessoal que torna mais fácil a mim falar sobre o assunto e, por conseguinte, mais fácil de entender. Foi sobre este tema em particular como podia ter sido qualquer outro. Exemplos não faltam.
       
      Graças à influência do politicamente correcto era normal eu ser enxovalhado e insultado de tudo por dizer isto. Bem como qualquer pessoa que se desviasse do discurso correcto. Não que me importasse dado que entre o arcaboiço que tenho e o teflon mental que me reveste acaba tudo por estatelar-se no chão e, no fim de tudo, nem os salpicos me chegam. Mas para muitos, para a maioria mesmo, esta frontalidade não é uma opção. Por não estarem para ser enxovalhados, por restrições profissionais, por receio de represálias, enfim, por uma miríade de razões o politicamente correcto acabou com o discurso e a acção que eram normais no quotidiano de qualquer pessoa não há muitos anos. Geert Wilders está a ser julgado por, simplesmente ter perguntado, num comício, se as pessoas queriam mais ou menos marroquinos a viver na Holanda. Não incitou à violência, não disse que se fosse eleito ia atirar as pessoas ao mar, nem sequer disse que ia promover deportações em massa, nada, em absoluto, por estas linhas. Limitou-se a perguntar à audiência se queria mais ou menos marroquinos no país. E por isto está a ser julgado. Não importa o resultado do julgamento. A própria decisão de acusar é em si mesma um absurdo que só nestes tempos de ditadura do politicamente correcto pode ter lugar.

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    4. Há limites? Claro que sim. Incitar à violência seria inaceitavel. Ou, por exemplo, um pedófilo que incite a que outros pratiquem a sua depravação é também inaceitavel. Ou o que quer que seja em geral que cause directamente dano físico a terceiros.
       
      Eu defendo o que disse acima. Outros há que defendem outro tipo de restrições. Outros ainda que defendem o fim total da imigração. Outros outra coisa qualquer. Mas a ditadura do politicamente correcto torna impossivel qualquer outro discurso que não o de que deve deixar-se entrar toda a gente e mais alguma. Quem varia do repertório leva roda de xenófobo para cima. Hoje em dia menos dados os problemas de tudo isto mas até há poucos anos era o que acontecia. Quem vai contra o politicamente correcto não está em busca de que se censurem os anteriores censores. De todo em todo. Está em busca, sim, de que todos possam dizer o que realmente pensam e sentem, livremente, sem receio de serem directamente desdenhados. Em busca que se passe do actual estado de coisas em que qualquer ideia que não a oficial é sumariamente posta de parte para um pragmatismo que permita pensar sobre cada coisa pelos seus méritos e agir com pragmatismo e tendo como interesse final o maior bem para o maior número. Como, de resto, acontecia há não muitas décadas.
       
      Claro que do discurso politicamente correcto também se passou à acção politicamente correcta com os efeitos que todos vemos na Europa e não vemos na Austrália, EUA, Canadá e, muito menos, no Japão, por exemplo. Isto, claro, cingindo-me ao exemplo que dei. Noutros assuntos os efeitos vêem-se também nos EUA, algo no Canadá, menos na Austrália e na generalidade do resto do mundo o conceito simplesmente não existe. Há coisas tão ou mais graves. No Reino Unido, talvez o país Europeu mais afectado por esta peçonha, as polícias deixaram mesmo de investigar diversos crimes graves quando cometidos por muçulmanos. Ao longo deste ano os ataques sexistas de refugiados e imigrantes às mulheres na Alemanha e Suécia, pelo menos nestes dois, têm sido muito abafados e houve, mesmo, um grande cover-up da coisa. E depois, enfim, depois há coisas que caem no ridiculo total como foi o caso, em Portugal, do absurdo da tentativa de mudança de nome do Cartão do Cidadão ou da criminalização do piropo.
       
      Em suma: trata-se simplesmente de cada um poder falar livremente e sem ser imediatamente proscrito e insultado de tudo mal se desvie um milímetro do discurso prescrito por essa versão moderna da brigada da moral e bons costumes. Que as ideias voltem a ser diversas e faladas por si e segundo o que valem por oposição ao pensamento e acção uniformes ditados pelos artífices dessa coisa execravel e tão nefasta que é o politicamente correcto. Eu posso plenamente justificar de forma objectiva e racional os motivos pelos quais defendo o que disse acima. Tal como posso justificar porque é que sou contra o acesso das mulheres a certas profissões, porque é que continuo a referir-me às profissões pelos nomes que sempre tiveram, porque é que sou contra o casamento homossexual e um larguíssimo etc. Porém, sob a influência do execravel politicamente correcto isso não me é permitido. Mal o discurso sai do bonitinho, chapéu. Acabou-se qualquer possibilidade da ideia ser honestamente discutida e, claro, apoiada ou recusada por si e pelos seus méritos. É contra esta ditadura que está quem ataca o politicamente correcto. E a favor do respeito e discussão cordial e pragmática das ideias o que não é mais do que defender a liberdade de expressão limitada apenas pelos danos físicos directos causados a terceiros.

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    5. Não há só esses dois lados, também há o lado "feel free to insult me", de que falei há uns dias num post. O lado de quem acha que insultar é o preço a pagar pela liberdade de expressão.

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    6. Completamente de acordo. O direito a insultar é um dos preços da liberdade de expressão e o politicamente correcto, com o seu carácter coercivo, colide claramente com a liberdade de expressão. Por isso, como disse acima, mal por mal, prefiro o direito a insultar ao politicamente correcto.

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    7. Mas em larga medida o "politicamente correto" também é em parte uma aplicação, exatamente, do tal direito a insultar - o que são aquelas campanhas de indignação via facebook/twitter contra alguém que diz/faz algo "politicamente incorreto" se não manifestações do direito a insultar?

      Atenção que me estou a referir apenas aos casos em que o "politicamente correto" assume a forma de excumunhão social - os casos em que assuma a forma de sanções legais (no caso da da tal psicóloga, uma coisa é ela ser metaforicamente crucificada na praça pública, e outra coisa seria ela ser mesmo proibida de exercer*) - mas também tenho muitas dúvidas que, no médio prazo, seja sustentável uma situação "a lei permite, mas a sociedade não" (haverá algum caso em que um dado comportamento - seja ele a homossexualidade, a homofobia ou o que for - seja alvo de um amplo repúdio social mas em que não apareçam leis a punir esse comportamento?).

      *isto também seria uma oportunidade para questionar o papel de ordem profissionais em disciplinas em que os juízos científicos se misturam muito (e talvez ineveitavelmente) com juízos ideológicos, como a psicologia ou a economia

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    8. Quer dizer, direito a insultar é aceitável. Mas dizer que um discurso primário, falacioso e falso sobre imigração é xenófobo e a pessoa que o diz é racista, isso já é a terrível ditadura do politicamente correcto?

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    9. O problema do politicamente correcto está no seu carácter coercivo e paternalista. Quando digo que não acredito no politicamente correcto, não quero dizer com isso que acho bem que se insultem as minorias, quero dizer que não acredito que as pessoas se tornem tolerantes por decreto ou retórica. Parece-me mesmo que há uma contradição nos termos: pode-se "forçar" os outros a serem tolerantes? Acredita nisso? Eu não. Repito, mal por mal, prefiro o direito a insultar como um dos preços da liberdade de expressão. Aliás, como diz o Miguel, umas das contradições do politicamente correcto é que, ao mesmo tempo, se pode insultar, mas apenas alguns: aqueles que supostamente estão no papel de "opressores", ou seja, genericamente, o homem branco, que é, nesta narrativa, o culpado de todas as desgraças do mundo.

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  7. Acho que se está a confundir o direito de insultar com o politicamente correcto. A correcção política tem origens na Escola de Frankfurt, sim senhor, mas também nos pós-estruturalistas e pós-modernistas, como Foucault e Lyotard. A ideia de que todo o discurso é poder foi desenvolvida até ao conceito das micro-agressões. O marxismo cultural contemporâneo está fortemente influenciado pelo pós-estruturalismo e pelo desconstrutivismo, que por sua vez foram influenciados pelo marxismo cultural que vinha da Teoria Crítica. Sendo uma ideia marxista, as micro-agressões só existem dos mais fortes para os mais fracos. Dos homens sobre as mulheres, dos brancos sobre os não-brancos, dos ricos sobre os pobres, dos países do norte sobre os países do sul, dos patrões sobre os empregados, dos professores sobre os alunos, dos hetero sobre os homo-trans-bi. A correcção política surgiu para defender das micro-agressões linguísticas todos os grupos considerados em desvantagem nas relações de poder. Nem era por insultos, era porque dizer "escarumba", "criada", "gaja", "maricas", etc, produzia (no entender dos defensores do politicamente correcto) uma estigmatização dos indivíduos que não correspondiam ao grupo normativo ou de poder (homem, branco, ocidental, proprietário, heterossexual, etc.).
    Provalmente vão achar este comentário foi uma seca. Mas depois de Derrida, já o podem dizer à vontade.

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    1. Esqueci-me de acrescentar que não defendo o politicamente correcto, que me parece acresecentar mais problemas do que aqueles que elimina, como a extrema sensibilidade de mini-grupos às micro-agressões. Compreender e explicar não implicam concordar.

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    2. Não é seca nenhuma. Foi bem claro.

      E quanto às restrições na linguagem, produzem consequências? Têm produzido consequências do tipo "tornas-te no que disseres"? como se invoca em algumas peças da área neurolinguística? [Aviso quem disso precisar que a Programação Neurolinguísticas (ainda...) não é considerada uma ciência.

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    3. Espero que sim. Por exemplo, a deficiência passou a diversidade funcional. Assim, os paralíticos hão-de começar a andar, eventualmente aos esses mas prontos: diversidade é bom.

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