domingo, 7 de outubro de 2018

Pleno uso das faculdades

No dia 2 de Outubro, aqui na DdD, deixei-vos um TPC: pedi-vos para lerem a reportagem sobre Amber Wyatt, que foi publicada no Washington Post a 19 de Setembro e actualizada a 21 de Setembro. A autora da reportagem foi uma jornalista que frequentou a mesma escola secundária que Amber. O seu trabalho de investigação começou em Abril de 2015 e a autora, na peça, diz que na altura em que começou era uma "young writer". É uma peça brutal escrita por uma rapariga que hoje tem à volta de 27 anos.

Contrasto isto com a peça sobre Cristiano Ronaldo publicada pelo Der Spiegel que foi o resultado do trabalho de 20 pessoas, inclusive pessoas da equipa legal, durante ano e meio, e que ouço dizer estar muito bem feita. Não está.


"She needs the strength to stand up to the man who she accuses of having raped her nine years ago -- accusations that he denies."

Esta frase publicada na peça faria sentido se não houvesse um acordo entre as partes que forçasse ambas a sigilo. Ela ao falar do caso está a violar o acordo, como o Der Spiegel diz aqui: "What is clear is that the soccer star paid Mayorga $375,000 a few months later as part of an out-of-court settlement. In exchange, Mayorga signed an agreement to never talk about her accusations that Cristiano Ronaldo had raped her." A motivação para ela entrar neste acordo, segundo o que ela diz, é que ela não queria que ninguém soubesse do que se tinha passado, mas queria castigá-lo. Na altura, o maior castigo teria sido deixar a polícia investigar e o District Attorney apreciar o caso, mas isso é basicamente incompatível com o anomimato. O acordo era uma forma de não seguir com o caso para tribunal e de não tornar o caso público. Faria sentido que o acordo desse permissão a ele para falar abertamente do mesmo, mas não a ela?

O Der Spiegel diz que o facto de ter tido acesso aos documentos da negociação prova que Ronaldo está a mentir. Aqui entramos numa zona cinzenta porque o Der Spiegel está na Alemanha, os advogados do Ronaldo estão em Portugal e outros países, e a Kathryn está nos EUA, logo que lei prevalece? Nos EUA, as conversas entre advogado e cliente são confidenciais e não podem ser usadas para provar culpa de alguém. Em casos criminais, a Constituição Americana garante o direito de alguém não se auto-incriminar (Fifth Amendment) -- acham que CR7 sabia disso quando assinou a suposta confissão? As conversas entre Cristiano e seu advogado deram-se sob uma presunção de sigilo profissional e foram obtidas ilegalmente, logo será legal considerá-las como prova de auto-incriminação?

Que conclusão se tira da seguinte frase escrita pela equipa do Der Spiegel: "Numerous documents in DER SPIEGEL's possession prove as much, including some which have been signed by Ronaldo himself. The existence of those documents could help explain why he has not, in the last year-and-a-half, followed up on his threats to take DER SPIEGEL to court."?

Se o Der Spiegel fosse um jornal americano, também teria recebido as cartas de "cease and desist", que são normais, mas não dariam isso como prova de que Cristiano Ronaldo era culpado e, se publicassem a peça de 29 de Setembro, poderiam ser processados. Mas o facto de não ter sido processado não prova que o jornal tenha razão em tudo o que disse, como o Der Spiegel infere. Se a estratégia legal da equipa de Cristiano Ronaldo é honrar o acordo, então não há lugar a processo do Der Spiegel -- há lugar a negar que aconteceu. Não me parece que haja grande estratégia da equipa legal de Cristiano Ronaldo porque, se houvesse, o Cristiano apenas teria um comentário acerca do caso: "No comment", em vez de andar pelo Twitter a dizer disparates.

No essencial, as pessoas confundem a competência de Cristiano Ronaldo dentro de um campo de futebol com a sua competência como cidadão. Ele pode ter muito dinheiro e jogar bem, mas continua a ser uma pessoa que aos 14 anos foi expulso da escola. -- é um bocado vergonhoso para Portugal. Reparem: quando ele saiu da escola, se calhar ainda nem tinha estudado a viagem do Cristóvão Colombo à América. Não me parece que tenha a noção da realidade que o Der Spiegel lhe atribui. Numa outra peça mais antiga, o Der Spielgel publica algumas das conversas de Ronaldo com o seu advogado, em especial uma em que o advogado lhe diz que Kathryn exige $950 mil e Ronaldo pergunta se isso é muito, o advogado diz que acha muito, e ele conclui tem de ser menos -- conclui porque o advogado lhe deu a entender que era essa a resposta correcta. O Der Spiegel no título diz que ele disse "It has to be less". Se o advogado tivesse dito que era uma quantia justa, será que Ronaldo teria dito "It has to be less"?

Aliás, a própria Kathryn quando conheceu Ronaldo, presumiu, e continua a presumir, que ele é muito mais sofisticado do que realmente é. Até apostaria que ela pensa que ele andou na universidade porque, nos EUA, é normal os atletas entrarem na universidade -- o nível de escolaridade mínima nos EUA é o décimo-segundo ano. Ela diz que ele é poderoso e que por isso está imune ao sistema legal. Obviamente que não está e há muitos atletas nos EUA que são acusados de crimes e levados à justiça, por exemplo, o de Kobe Bryant foi um caso mediático em 2003, mas mais recentemente houve o caso de Reuben Foster que depois a suposta vítima admitiu ser falso.

Como têm dinheiro, os atletas podem entrar em acordos extra-judiciais, como foi este caso, ou "settlements" no caso de haver processo em tribunal. Faz sentido que assim seja porque, para um atleta, o tempo conta muito mais do que para um não-atleta. Têm vidas profissionais curtas e se perdem tempo em processos de tribunal, sacrificam parte da sua carreira. Ou seja, mesmo que seja uma acusação falsa, é racional pagar para não ter de perder tempo com isso. Se a acusação é verdadeira, então é uma decisão da vítima pensar se tem provas suficientes para se querer sujeitar a um caso em tribunal. Só há acordo se ambas as partes quiserem.

Toda a estratégia de Kathryn é alicerçada na ideia de que ela tem dificuldades de aprendizagem e estava perturbada, logo não estava em pleno uso das suas faculdades quando assinou o acordo. Aliás, ficamos com a ideia de que as contradições na história dela, o ocasional ritmo do discurso acelerado que mencionam, e a incoerência de pensamento são desculpáveis porque ela tem Attention Deficit Disorder. Naquela noite fatídica, isto não terá contibuido para o desentendimento entre os dois?

Uma defesa deste estilo também podia ser dada pela equipa de Ronaldo: estava num país estrangeiro, não entendia bem o inglês, não percebeu que ela tinha dificuldades de aprendizagem, ele próprio tem dificuldades de aprendizagem, cresceu num lar sem pai, etc. Nós temos acesso à discussão da estratégia legal entre Ronaldo e os seus advogados, mas não temos acesso à dela, logo não acreditamos nele e acreditamos nela. Será que, se tivessemos acesso à discussão da estratégia legal dela, não mudaríamos de opinião? E já agora, se ela era incapaz no acordo anterior, apesar de estar sob aconselhamento jurídico, e se agora continua a sofrer dos mesmos problemas, não estará ainda incapaz neste novo caso?

A Kathryn acha que a quantia que recebeu foi pouca e, por isso, quer que o acordo seja dado como inválido e lhe seja dada uma compensação mais alta. Ela recebeu $375 mil, mas foi ele que pagou os custos do acordo, ou seja, ele pagou muito mais do que isso. A mãe de Kathryn acha injusto que a filha tenha de ver fotos de Ronaldo pela imprensa e continue a sofrer. Nos EUA, Ronaldo só se tornou mais conhecido no ano passado e este ano. Antes disso, era uma curiosidade reservada a pessoas que seguiam o futebol, mas ela fazia buscas na Internet para ver como ele estava, ou seja, ela própria se martiriza. A única solução para o problema dela é cortar-lhe o acesso à Internet ou eliminar todos os vestígios da existência de Cristiano Ronaldo.

Será que é injusto que ele tenha sucesso e a carreira de Kathryn tenha sido abortada pela experiência negativa que ela sofreu quando saiu com ele? Não acho. O encontro que ela teve com Ronaldo não teve grande impacto na vida profissional dela. Profissonalmente, a Kathryn tirou um curso de jornalismo numa altura em que os jornais estavam em forte decadência, não tinha saída profissional. Não podemos esquecer também que em 2009 os EUA estavam a viver a crise financeira e Las Vegas foi uma das cidades mais atingidas pela crise sub-prime.

Kathryn tentou a carreira de modelo, mas já tinha 25 anos, o que é uma idade avançada para aquela carreira; ainda por cima o seu nível de profissionalismo é baixo: tinha uma sessão fotográfica no dia a sair com Ronaldo e em vez de ir para casa descansar, saiu para se divertir em festas. Imaginem o inverso: imaginem que Cristiano Ronaldo tinha 25 anos, estava a tentar singrar na sua carreira futebolística e saía na noite anterior a um jogo. Acham que teria sucesso? Se 9 anos depois nos dissesse que não teve sucesso porque tinha saído numa noite antes de um jogo e alguém o tinha agredido, nós não questionaríamos o estilo de vida dele?

Todo o relato de Kathryn indica que ela faz as coisas e depois arrepende-se: casou porque se sentiu forçada e arrependeu-se; devia ter ido para casa, mas saiu depois do trabalho; estava de dieta e não devia beber, mas bebeu; não estava interessada no Ronaldo, mas aceitou o convite dele e até o beijou, segundo disse à polícia; subiu à Penthouse só para tirar uma foto, mas ficou; não queria entrar no jacuzzi, mas foi ao quarto de banho mudar de roupa. Nada disto justifica violação, mas fico com a ideia de que é perfeitamente plausível que ela tenha mudado de ideias a meio do acto sexual, em vez de antes.

Recentemente, tinha um emprego numa escola primária, que é perfeitamente compatível com a sua idade e habilitações literárias, e decidiu sair do emprego para se focar no processo em tribunal, que antes decidiu não tentar porque queria sigilo, que agora já não quer. Continuamos na mesma situação que antes: para ele é mais racional dar-lhe dinheiro e entrar em "settlement", mas ela pode sempre mais tarde vir dizer que é inválido porque não está em pleno uso das suas faculdades.





2 comentários:

  1. «Nada disto justifica violação, mas fico com a ideia de que é perfeitamente plausível que ela tenha mudado de ideias a meio do acto sexual, em vez de antes.»

    Sabes, Rita, a expressão-chave aí é "mudou de ideias". Só não seria relevante se tivesse sido findo o acto. O que tu estás a dizer é que se uma pessoa come o couvert tem de ir até à sobremesa.

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    1. Mesmo que a pessoa mude de ideias a meio e a outra não termine, a suposta vítima pode sempre ir ao hospital e tem provas de que houve algo. Já sabes que eu e tu discordamos porque o que ela quer não é justiça; é vingança e eu não alinho com isso.

      Mas quando escrevi essa frase, estava a ser generosa para com ela, porque no artigo ela diz que só se apercebeu do que lhe tinha acontecido quando ele lhe pediu desculpa depois do acto sexual ter terminado -- ou seja, parece que nem ela, nem ele, se aperceberam durante o que estavam a fazer. E também não é claro exactamente o que ela disse durante porque ela diz a ele, depois, que lhe tinha dito antes que não era como as outras. Não percebi bem se o consentimento -- ou a falta dele -- para ter sexo dependia da forma como ele tratava as outras ou se era uma coisa absoluta.

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