segunda-feira, 10 de agosto de 2015

Olhos da Fervença

Já tenho saudades de estar sozinha e escrever. De vez em quando, talvez uma vez ao dia, pelo menos, escrevo coisas na minha cabeça, mas depois esqueço-as porque não as aponto. Também já houve posts que eu comecei, gravei e, depois, quando regressei a eles, esqueci-me da coisa que queria escrever. Esta falta de disciplina criativa é um dos meus pontos fracos. Vou tentar emendar-me e escrever este antes que se varra da minha cabeça.

No Sábado fui à Praia da Tocha. Apesar de ter lá ido muitas vezes quando eu vivia em Portugal, não conseguia lembrar-me dessa praia. É estranho porque eu fui mais vezes à Tocha do que a Mira, mas Mira tem uma presença muito mais clara na minha cabeça. Fui lá, não por iniciativa minha, mas porque uma amiga que eu queria ver estava lá a acampar, logo fui ter com ela. Entretanto, uma outra amiga, a F., veio de Lisboa para Coimbra e eu também a queria ver, mas o meu tempo em Coimbra já estava muito limitado. Quando eu disse à F. que ia à Tocha, ela e a irmã também quiseram lá ir.

Estava um vento bestial e o mar estava bravo--uma ocorrência normal na Tocha; fazer praia estava fora de questão. Almoçámos num restaurante que tinha uma sala de jantar com um lado em vidro que tinha vista para o mar. Esse enquadramento é um dos meus preferidos: estar num sítio protegido a comer algo confortante e a ver o mar muito bravo é uma das imagens mentais que eu uso para me descontrair. Talvez tenha algum significado subliminal, que nos sugira que mesmo no meio de uma tempestade é possível encontrar um abrigo e sentirmo-nos bem, mas para mim tem também a ver com uma tarde da minha infância em que isso aconteceu. Nesse dia eu senti-me bem e protegida. Décadas mais tarde a imagem dessa experiência começou a aparecer no meu consciente frequentemente.

Depois do almoço e do café, saímos da Tocha. Pelo caminho, um dos meus amigos sugeriu ir a Olhos da Fervença, uma comunidade com uma praia fluvial, na freguesia de Cadima, situada no concelho de Cantanhede. Depois de navegarmos um labirinto de ruas com a ajuda da app de mapas do Google, chegámos ao nosso destino, que estava completamente cheio de pessoas. Eu teria gostado muito mais de ter visitado aquele local numa altura em que não estivesse lá quase ninguém, mas foi também engraçado ver que muita gente conhecia um sítio do qual eu nunca tinha ouvido falar.

Passeámos ao longo da praia fluvial e tentámos compreender de onde vinha a água. Especulámos que seria de um riacho que corria ao lado. Uma parte do parque estava vedado ao acesso de pessoas com uma rede, no interior da qual havia um sistema de tratamento de água à margem da ribeira. Numa parte da praia, duas redes colocadas de um lado ao outro da água apanhavam limos. Pensei que talvez fosse um sistema de filtração da água. A minha cabeça fervia de perguntas de como aquele sítio tinha surgido e funcionava. Durante o meu doutoramento, tive uma cadeira de engenharia de biossistemas, na qual estudei aquíferos, logo tenho alguns conhecimentos rudimentares do tema e muita curiosidade acerca recursos hídricos.

Reparei que dentro da vedação estava um senhor que tomava conta do sítio. Perguntei-lhe como é que aquilo funcionava. Ele prontamente se ofereceu para nos dar uma visita guiada da área vedada. A água vem de uma nascente; a parte vedada do lago tem areias movediças onde a água brota do solo. Achei fascinante. Nunca pensei que haveria areias movediças em Portugal; areias movediças eram, na minha cabeça, associadas com os filmes do Sandokan que passavam na televisão quando eu era miúda. A maior parte da água que brota é usada para abastecer a parte norte de Coimbra. O que resta vai para a praia fluvial e também corre num pequeno riacho. Em alguns sítios da nascente, a água é projectada com tanta força do solo que colunas de cimento são usadas como lacres.


Neste vídeo que fiz podem ver a parte da nascente com areias movediças.

O guarda da Central foi muito simpático e prestável. Disse que, se pudesse, mostrar-nos-ia a casa das máquinas que fazem a circulação e o tratamento da água, mas tal não era permitido. Queixou-se também da falta de civismo de algumas pessoas que visitam a praia fluvial. Na semana passada, uma senhora desobedeceu-o e lavou o cão com champô na praia. À noite, tiveram de aumentar o fluxo de água da praia para diluir os efeitos do champô e de potenciais patógenos provenientes do cão. Seria bom que pessoas que se comportassem assim fossem responsáveis pelo custo dos danos que causam. Porque não multá-las por pôr em risco a saúde pública?

Noutro episódio mais antigo, uma rapariga desobedeceu ao nadador salva-vida e fez mergulhos com piruetas na praia, que tem pouca profundidade, talvez chegue à cintura de um adulto de altura média. O seu último mergulho, dado enquanto o seu namorado refilava com o salva-vida, não correu bem e ela foi levada para o hospital com uma fractura. É possível que tenha ficado paraplégica.

No final da nossa visita com o guarda, ele recitou-nos algumas quadras de António Aleixo e mencionou os episódios que as inspiraram. Toda esta experiência foi completamente inesperada, mas muito gratificante.

Nota: A Universidade de Lisboa implementou um projecto de recolha de informação de fontes e nascentes portuguesas, que foi financiado pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia. O projecto foi uma colaboração do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa e do Centro de Estudos de Antropologia Social. "O Novo Aquilégio" é uma página de Internet onde se disponibiliza a informação do projecto. Lá encontram alguns dados acerca de Olhos da Fervença.

1 comentário:

  1. muito interessante, isto que contas. Olha que sou de Coimbra, já vivi em Cantanhede, a minha mulher é da Tocha e nunca tinha ouvido falar nessa praia.

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