quarta-feira, 21 de junho de 2017

Um autodidacta louco

Saint-Simon (1760-1825), Robert Owen (1771-1859), Charles Fourier (1772-1837) e Pierre-Joseph Proudhon (1809-1865) foram os principais teóricos ou doutrinadores socialistas pré-Marx, e que este não hesitou em classificar de utópicos, por contraponto ao seu pretenso socialismo científico. Na década de 30 do século XIX, a conotação da palavra socialismo era mais ou menos isto: um sistema inventado de sociedade que privilegiava o social contra o egoísta; o cooperativo contra o competitivo; a sociabilidade contra o interesse individual; o controlo social estrito sobre a acumulação e o uso da propriedade privada; a igualdade económica ou pelo menos compensações segundo o mérito. Na realidade, as várias espécies de socialismo entretanto desenvolvidas (cooperativo, comunitário, anárquico, científico, libertário, democrático, etc.) nunca perderam de vista estas referências originais.
Dito isto, as ideias dos primeiros doutrinadores socialistas eram muito diferentes. Por exemplo, o conde Saint-Simon aspirava a um planeamento estatal através da infiltração e da persuasão de uma elite científica dedicada. Os engenheiros e artistas (pensadores criativos) formulariam planos; os cientistas avaliariam a exequibilidade desses planos; os industriais e banqueiros ficariam encarregados da sua execução. Saint-Simon seria, mais tarde, acusado de elitismo por outros socialistas.
Por seu turno, Charles Fourier era o caso paradigmático do autodidacta louco. E talvez por isso me tenha despertado curiosidade. Caixeiro, tipógrafo, caixeiro viajante, apenas se podia dedicar aos seus estudos e escritos durante algumas horas à noite. Talvez a maior fantasia de Fourier fosse que o trabalho, além de socialmente vantajoso, podia ser agradável e ajustado ao carácter e desejos de cada indivíduo. Fourier via a famosa fábrica de alfinetes de Adam Smith, onde cada um faz a sua parte da tarefa cuidadosamente dividida, como uma ameaça para a natureza humana. O trabalho “agradável” deveria ser variado, feito em cooperação e produzir coisas bem-feitas e duradouras. As famílias deveriam viver em pequenas comunidades de modo a que todos se conhecessem uns aos outros. Ao mesmo tempo, essas comunidades deveriam ser suficientemente grandes para garantir a auto-suficiência e a diversidade de talentos.
Fourier queria impedir o alastramento do princípio industrial que considerava uma ameaça à individualidade autêntica e ao prazer do trabalho. Estava convencido de que o processo de produção cooperativo podia ser mais eficiente do que o processo capitalista urbano. Ficou sempre no ar uma ambiguidade sobre o problema de as suas comunidades simplesmente voltarem as costas ao Estado e à sociedade convencional. Todavia, Fourier vislumbrava, no futuro, confederações de comunidades nacionais e depois internacionais.
Fourier foi buscar muito a Rousseau, nomeadamente a convicção de que o homem comum (honesto e natural) era mais virtuoso do que o aristocrata (sofisticado e corrupto) ou o erudito (artificial e arrogante). O homem deve ser capaz de fazer tudo, o que era muito o ideal americano de Jefferson e Jackson. Em suma, a sociedade deveria ser reconstruída de forma a garantir isto. Seria reconstruída em falanstérios cooperativos de 1 600 pessoas que cultivavam cerca de cinco mil acres. Todos teriam acesso a edifícios comuns, com serviços comuns, incluindo restaurantes, creches e salas de recreio. As necessidades básicas estariam garantidas, mas as ostentações seriam banidas pela opinião pública.
Para sua desgraça, quando as suas ideias começaram a atrair as atenções, as pessoas faziam troça ou ignoravam as suas tortuosas descrições. Seja como for, o seu princípio geral, a que chamava alternadamente “harmonia”, “solidariedade”, Unitéisme, Collectisme, Sociantisme ou Mutualisme, era tratado com respeito por alguns. Este foi o verdadeiro começo do socialismo comunitário.
Curiosamente, no século XIX, a doutrina de Fourier teve mais impacto nos EUA do que na França ou na Grá-Bretanha. Houve, de facto, várias experiências de comunidades de trabalhadores. Nenhuma destas “nobres experiências” durou muito. Alguns autores estudaram este insucesso e apontaram causas: subcapitalização, direcção financeira incompetente e um excesso de intelectuais muito exigentes e avessos ao trabalho, ou simplesmente incompetentes.
Nesta história, há outro dado que me parece curioso. Regra geral, as comunidades religiosas duram mais tempo. Talvez o amor ou temor absorvente a Deus seja a melhor (ou a única) forma de garantir a unidade de comunidades isoladas, esperançadas numa vivência mais satisfatória.


3 comentários:

  1. Eu gostaria de saber como é que Charles Fourier fixou em "810" o número de "tipos de personalidade" e a dimensão do falanstério em 1.620 (o dobro). Quanto às 12 paixões nem pergunto:
    «(...)
    Out of these 12 passions and the different proportions in which they might coexist within each individual, Fourier devised his classification of 810 personality types. Allowing for the representation of the complete spectrum of personality types in each sex, the ideal size of the phalanstery was therefore set at 1.620.
    (...)»
    [The Theory of the Four Movements-Charles Fourier]

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  2. Prezado Isidro Dias,
    Tem toda a razão. O homem era um visionário, via coisas que mais ninguém via, coisas que não lembravam ao diabo.

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  3. Com 12 paixões, eu diria 4.096 tipos de "personalidade", e portanto falanstérios de 8.192 pessoas.

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