sexta-feira, 10 de abril de 2015

A Rita tem Graça

N.B. Isto é pessoal acerca da Rita. Se não gostam de ler estes posts, não vale a pena ler isto.

No nono ano, depois de ter de começar a usar óculos porque falhei um teste de aptidão vocacional (ou lá como se chama), finalmente descobri que a minha vocação era qualquer coisa que envolvia contabilidade. Como eu andava no D. Duarte, do outro lado da estrada da Quinta das Lágrimas, que é como quem diz, rodeada pelas lendas de Pedro e Inês, tive de mudar de escola, pois lá não havia área C no décimo ano. O meu pai discordou da minha escolha porque tinha medo de que eu não me adaptasse na nova escola. Pedi transferência para a Avelar Brotero; se eu tivesse ido para a Jaime Cortesão, se calhar, teria conhecido o Nuno Amaral Jerónimo, mas não fui. Não sei por que razão escolhi a Brotero, dado que para lá chegar tinha de apanhar dois autocarros, na Jaime teria apenas sido preciso um, mas assim foi.

Na Brotero eu não conhecia absolutamente ninguém. Quando as aulas começaram, eu ia às aulas mas não falava com ninguém e durante a hora de almoço sentava-me num banco, numa parte isolada da escola, sozinha. Não tinha nada a dizer. Ao fim de uma semana, um dos meus colegas de turma, de seu nome Nuno, à porta de uma sala de aula, fez-me uma pergunta e eu respondi. Ele praticamente deu um salto e disse "Mas ela fala!" E foi assim que eu comecei a falar para os meus colegas de turma na Brotero. A Sofia, que me levou ao À Capella em Setembro do ano passado, foi a minha primeira grande amiga lá. Depois afastámo-nos um bocado e eu comecei a conversar e a passar mais tempo com a Graça. Não faço ideia do que me aproximou da Graça porque ela e eu éramos diferentes: eu gostava de música, cinema, inglês; ela gostava de matemática, não percebia nada de música, nem sabia a letra toda das canções de cor e salteado como eu.

Era bom conversar com a Graça e ela era muito metódica. Enquanto que eu levava para a escola biografias da Marilyn Monroe, ela levava livros de como aprender a estudar melhor. Eu até comprei um livro desses para mim por causa da Graça e li aquilo, mas parecia-me uma coisa tão disciplinada que eu não conseguia aplicar. Quando foram as olimpíadas de matemática, a Graça foi e falava entusiasticamente dos problemas e de como os tinha tentado resolver. Eu acho que tentei ir, mas aquilo escapava-me completamente e fui logo eliminada. Eu tinha um grande interesse em filmes do Stewart Granger. Era um homem belíssimo; claro, que era homossexual, mas eu não sabia isso nessa altura, e as personagens que representava tinham sempre qualidades muito nobres. Acho que foi por esses anos que eu vi "O Homem Elefante" na TV e fiquei fã do David Lynch, para além de achar que foi um filme transformativo. Eu também adorava Prince e o meu álbum preferido era o Sign o' the Times. A vida era bela, eu não era, mas a vida era muito bela nessa altura. A nossa turma era unida e eu gostava da escola.

Na primavera tivemos uma visita de estudo, não me recordo onde. De manhã estávamos todos preparados para sair quando a Graça se sentiu mal com dores de barriga. As dores eram tantas que a levaram ao hospital. A turma continuou o dia como normalmente, mas em visita de estudo. Esse dia foi o último dia de escola da Graça. No hospital, ela foi operada de urgência, mas não recuperou. Eu não sei bem o que ela tinha, nunca compreendi. Sei que ela foi operada várias vezes, a certa altura já não tinha parte dos intestinos e não mais iria ter uma vida normal.

Nós enviávamos cartas à Graça e ela enviava-nos cartas de volta. Às vezes um de nós visitava-a no hospital. Eu tinha-lhe emprestado a biografia da Marilyn Monroe e ela devolveu-a, juntamente com uma carta para mim. Nas cartas, ela fazia planos para quando saísse do hospital, mas eu lembro-me de olhar para a letra dela numa carta e ver que ela mal tinha forças para escrever. Eu tinha uma letra muito bonita, toda a gente me dizia, inclusive o nosso professor de filosofia, que observava que era pena que o conteúdo do que eu escrevia não fosse tão bom quanto a minha letra, que era artística, as letras fluíam no papel porque eu não escrevia com muita pressão; já a letra da Graça era determinada, ela pressionava com a caneta e via-se o método com que escrevia, a regularidade de cada letra, bem espaçada, bem legível.

Foi numa manhã de Maio, dez dias depois de eu fazer dezasseis anos, que recebi um telefonema a dizer que a Graça tinha morrido. Fui ao meu quarto para me vestir e mal conseguia pensar, bati com a cabeça em algo, talvez a janela, que estava aberta. Lá fora eu via as ameixoeiras em flor, as pétalas a entrarem no meu quarto com a brisa, e sentia os meus olhos húmidos e quentes. Acho que um vizinho me levou à escola. Os nossos professores estavam à nossa espera. O professor de filosofia veio ter comigo, eu disse-lhe que nada iria ser o mesmo. Ele disse que sim, que a vida iria continuar. Depois foi o funeral em Miranda-do-Corvo. A nossa turma foi toda junta no comboio e, no meio de tantos dos meus amigos eu senti-me só, muito só. Tive de levar a minha irmã comigo porque os meus pais insistiram, mas eu queria era sentir-me ainda mais só.

Quando vi a Graça no caixão quis dar-lhe algo meu. Fui à procura de uma tesoura--eu, que tinha medo de perguntar as horas a estranhos, fui procurar uma tesoura no meio de um funeral cheio de estranhos. Quando a encontrei, cortei uma madeixa do meu cabelo e deitei-a no caixão da Graça para que uma parte de mim fosse enterrada com ela. Depois do enterro, os meus amigos foram para um café fazer tempo até chegar o comboio. Eu não consegui e fui para a estação com a minha irmã esperar o comboio. Nada fazia sentido: a Graça que era boa aluna, gostava de matemática, sabia o que queria, tinha morrido. E eu ali, ainda viva...

Não sei quando é que eu comecei a gostar de matemática, mas no décimo-segundo ano, eu já exibia um entusiasmo e uma determinação que eu tinha visto a Graça ter. Eu sentia que quando a Graça tinha morrido, eu tinha contraído uma dívida e a maneira de a pagar era ver até onde é que eu podia chegar. Até onde teria chegado a Graça se tivesse sobrevivido? No dia em que eu enterrei parte de mim com a Graça, já parte da Graça estava a viver dentro de mim.

A vida não é justa, diz-me frequentemente a minha amiga Larysa, ela nasceu na Crimeia. De um dia para o outro, a província onde a família dela vive foi anexada pela Rússia. Não, a vida não é justa. A morte da Graça não foi a única coisa má que me aconteceu. Aconteceram tantas. A primeira vez que o conceito de suicídio aconteceu na minha vida foi com a minha mãe. Quando eu tinha oito anos ela tentou matar-se com comprimidos, foi levada para o hospital para tratamento, e depois ficou internada num hospital psiquiátrico durante várias semanas. É difícil visitar a nossa mãe num hospital psiquiátrico e tentar não chorar. Outra vez saiu de casa e ficou fora durante um mês. Talvez um dia eu vos conte o que é crescer com uma mãe que sofre de depressão.

Estar desempregado não é a pior coisa que nos pode acontecer. Eu já estive desempregada três vezes e não foi a pior coisa que me aconteceu. Foi difícil, especialmente a segunda vez, mas se a Graça podia fazer planos numa cama de um hospital já sem ter parte dos intestinos, eu também podia sobreviver ao desemprego. Para sobreviver, só é preciso força suficiente para continuar mais um minuto. Quem consegue conquistar um minuto de cada vez, acaba por sobreviver.

Nós não controlamos as coisas más que nos acontecem, mas muitos de nós conseguimos controlar o que nós fazemos com essas coisas más. E muitos de nós conseguimos pedir ajuda para as ultrapassar ou conseguimos encontrar algo que dá sentido a essas coisas más. Mas se não tentarmos ultrapassá-las e usá-las para construir uma vida com mais sentido, elas assombrar-nos-ão para o resto da vida.

Hoje era só isto que eu vos queria dizer. Desculpem, se não gostaram do meu ponto de vista.

11 comentários:

  1. Normalmente não me orgulho muito de quase nada do que faço. Mas hoje sim. De fazer parte deste blogue.

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  2. Não sei se, factualmente, concordo com o teu último parágrafo, mas concordo que cada um se deve esforçar por ter essa atitude. Gostei muito, Rita.

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  3. Não sei o porquê do pedido de desculpas. Um texto absolutamente magnífico e que é pena - e o LA-C que me perdoe a "desconsideração" - ficar pelo blog.

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  4. Belíssimo texto. Obrigada, Rita.

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    1. Obrigada eu, pensei que fosse uma boa maneira de homenagear a Graça.

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