domingo, 12 de abril de 2015

Ainda os doutorados...

O iv fez um comentário muito interessante acerca dos doutorados descamisados que temos andado a discutir. Eu disse, no post do Zé Carlos, que ter um doutoramento reduz o número de trabalhos para os quais nos consideram, ao que o iv respondeu:
E a sociedade não terá razão nessa afirmação? Para mim, ter um Doutoramento é principalmente a prova de que não sendo completamente estupido uma pessoa pode focar-se durante vários anos apenas num assunto e avançar um pouco nesse estudo. Não me parece que fora da universidade existam muitas aplicações diretas para essa capacidade, e durante o tempo em que o aluno está envolvido nesse trabalho não só não aprende capacidades mais "vendáveis" como integrar-se em grupos, como se tiver essas capacidades provavelmente vai ter mais dificuldade em se tornar o maior perito mundial numa micro-área (o que é, convenhamos, o principal objetivo de um doutoramento).

Pessoalmente, a coisa mais gratificante que eu fiz foi o doutoramento. Foi difícil, houve desejo de morrer, de acabar com o sofrimento e estar por tudo, até por receber o doutoramento postumamente. Estes gajos nos EUA são uns chatos e espremem-nos mesmo. Mas, depois de terminar, aconteceu qualquer coisa em mim porque senti, realmente, uma mudança de atitude, não no sentido de ficar mais arrogante, mas no sentido de sentir que se eu tinha sobrevivido àquilo, poderia sobreviver a muito mais coisas. Isto foi a parte interior; já do ponto de vista inverso, do ponto de vista de como as pessoas olham para nós, as coisas ficam piores.

Eu nunca digo a ninguém que tenho um doutoramento sem haver razão para justificar dar essa informação. Quando as pessoas sabem que temos um doutoramento, olham para nós de forma diferente e inibem-se. Quando eu trabalhei na Informa Economics, as assistentes administrativas ficaram muito surpreendidas quando, após vários meses de me conhecerem, souberam que eu tinha um doutoramento porque na companhia só havia homens com doutoramento, mais nenhuma mulher tinha, até havia muito poucas mulheres que não fossem assistentes administrativas. E quando eu falava com as assistentes, e muitas delas eram senhoras já com 50 e 60 anos, eu falava de culinária, costura, jardinagem, decoração, etc. e elas deviam pensar que eu era demasiado terra-a-terra e quem tinha doutoramentos existia mais próximo das nuvens.

Aqui há coisa de dois meses, a pedido da minha chefe, estive a ajudar um grupo de mães com um leilão para angariar fundos para a equipa de softball das filhas. O meu papel era o de automatizar a logística do leilão: a lista de itens a vender, a lista de clientes, etc. Este grupo de mulheres pertencem à classe alta e, muitas delas, são "stay-at-home moms". Quando a minha chefe me apresentou e disse que eu tinha um doutoramento houve um silêncio na sala. Eu achei isto estranho porque elas estavam a educar as filhas para ser como eu: para irem para a faculdade e tirarem mestrados e doutoramentos e, no entanto, não se sentiam à vontade comigo.

Ou seja, na minha opinião, há uma percepção errada da sociedade relativamente a quem tira um doutoramento: nós, doutorados, não ficamos tão especializados que nos esquecemos de tudo o resto, nem ficamos tão especializados que não conseguimos aprender mais nada, nem somos tão inteligentes que não nos conseguimos relacionar com "meros" humanos. Eu tinha muitas conversas com o meu orientador acerca do que era esperado de mim depois de eu sair do programa e lembro-me de uma vez ele me dizer que um doutoramento não era para aprender um tópico e ficar especialista no mesmo; o doutoramento era um programa que nos ensinava a ensinar-nos a nós próprios. Quer isto dizer, que o doutoramento deve dar ao aluno um conjunto de ferramentas que podem ser usadas para muitas coisas e não apenas para a área da dissertação. Sim, há pessoas doutoradas que gostam imenso do mesmo tópico e decidem apenas fazer aquilo, mas também há alguns que são mais promíscuos e são como as vacas: gostam de andar pelo prado a comer relva de vários sítios.

A questão das soft skills é uma questão muito interessante porque isso pode não ser totalmente possível de obter dentro de uma sala de aula. No meu caso, o que fez toda a diferença foi que, no primeiro ano que eu vim para os EUA, tive de arranjar um emprego part-time porque a CEE decidiu que não ia atribuir bolsa ao programa de intercâmbio que eu fiz (eles tinham dito que haveria e depois deram o dito pelo não dito). Eu indiquei ao Gabinete de Relações Internacionais da universidade americana que precisava de um emprego part-time e eles deram-me um emprego lá no gabinete.

Tive uma sorte fabulosa porque muitos alunos internacionais arranjam part-times nas cantinas e eu tinha um emprego de gabinete e não era num gabinete qualquer: era um gabinete onde eu tinha de aprender a lidar com pessoas de muitos países, tinha de aprender o sistema de imigração dos EUA, tinha de estar à vontade tanto com estudantes como com dignitários de outros países, etc. Foi lá que me ensinaram a atender um telefone, a telefonar a alguém para obter informações, a receber as pessoas num gabinete, a conversar informalmente, a antecipar as necessidades dos outros, como navegar os EUA, especialmente uma universidade, para obter informação, etc. Quando eu vim para os EUA eu era extremamente tímida e não tinha nenhuma presença física, logo essa experiência foi muito enriquecedora. Para além disso, como eles viram que eu era deficiente nessa área ajudaram-me imenso e o meu manager era mesmo muito bom em social skills. Mas nem todos os americanos ficam com uma formação assim apesar de crescerem nos EUA.

Depois, durante o mestrado/doutoramento, como o meu departamento e a residência onde eu vivia tinham muitos estudantes internacionais, acabei por melhorar muitas coisas no relacionamento inter-humano. Também ajudou que o meu orientador fosse uma pessoa extremamente sensível e empática, pois ele tinha vivido na Tailândia e tinha muita paciência para os estudantes internacionais. Passava muito tempo connosco a falar de coisas, que não apenas o nosso tópico de investigação. Era mais como um segundo pai. E ele gostava de me desafiar e meter-me em "alhadas", quer dizer, tirar-me da minha zona de conforto.

Por exemplo, na minha dissertação quem fez o esquema do sistema de irrigação subterrânea fui eu. Tive de ter várias reuniões com um professor de engenharia e outro de solos para aprender a fazer aquilo, depois tive de telefonar às empresas que vendiam equipamento agrícola para me darem os preços de cada peça para eu fazer o orçamento, visitei a área onde estavam a ser conduzidas experiências de irrigação e produção de milho, etc. Quando o meu orientador querido me disse para desenhar o sistema, eu ri-me e disse-lhe "You're joking, I'm not an engineer." Ele riu-se de volta e disse qualquer coisa como "Yes, yes, you can do it. Go meet with Mike and Jeff and get it done." Mike e Jeff eram professores em Biosystems Engineering e Plant and Soil Sciences, respectivamente. Despacha-te, Rita...

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