quarta-feira, 22 de abril de 2015

Na selva...

Ontem, como de costume, passeei os meus cães à noite. Se o tempo permite, nós passeamos de manhã e à noite. Aqui há uns meses uma vizinha perguntou-me se eu passeava cães como profissão. Eu disse que não. Também já me chamaram "dishwasher" no meu escritório, tudo porque em vez de deixar pratos sujos no lava-louças, eu meto os meus pratos na máquina de lavar. No dia em que eu estava a lavar coisas, as coisas que eu estava a lavar eram plásticos de comida que eu ia meter no caixote de reciclagem. Então é assim: em certas coisas, eu sou o que os americanos chamam "anal-retentive", uma pessoa demasiado meticulosa. Felizmente, não sou obsessiva, há sempre um quarto cheio de tralha que eu mantenho e, normalmente, só o limpo pouco tempo antes de mudar de casa outra vez. Estou a tentar emendar-me e a não ter tanta tralha nem mudar de casa tão frequentemente.

Quando mudo de casa, um dos requisitos tem de ser uma vizinhança que permita passear os cães. Isto para os portugueses pode ser trivial, mas nos EUA, encontrar vizinhanças com passeios é uma aventura. As vizinhanças antigas têm passeios, depois chegou a modernidade e deixaram de construir passeios; agora, parece que os passeios estão a regressar, pelo menos em alguns sítios. Outro requisito das minhas casas tem de ser terem um jardim, ou pelo menos um sítio com relva para os meus cães, claro está.

Alguns meses depois de eu mudar para Houston, choveu muito, o que aqui não é anormal de todo, e encontrei uma cobrinha à porta da minha cozinha--sim, uma cobra bebé, dentro da minha cozinha, ao pé da porta. Por sorte, estava uma vassoura ao pé da porta e eu varri o bicho da minha cozinha para a rua, apesar de ter o meu coração prestes a saltar da minha boca para fora. Nestas alturas, eu torno-me numa pessoa muito religiosa com uma boca porca e grito "Sweet Mother of Jesus, what the fuck!!!" Nesse dia, também gritei "I want to go back to Memphis, fuck Houston!" Notem, que é muito mais fácil dizer asneiras em inglês do que em português. Soa melhor, deve ser por causa dos filmes e eu adoro os filmes do Tarantino. Houston é assim: há cobras de jardim, há outras cobras maiores e mais perigosas, há "fire ants" (formigas de fogo), que mordem e causam imensas dores, há umas melgas nojentas e enormes, há mosquitos, há baratas nojentas e enormes, etc.

Reparem que eu sou uma pessoa muito amiga de bichos e até gosto de aranhas, mas há aranhas venenosas nos EUA. Eu já vi as fiddleback (aranhas com um desenho de um violino nas costas) em Oklahoma. Quanto eu estava a terminar o meu doutoramento, vivi uns meses em casa dos meus sogros durante a semana e aos fins-de-semana vivia em Oklahoma City. Em casa dos meus sogros encontrei as aranhas fiddleback. E quase que me deu uma coisa má. Quis telefonar para a universidade, para o departamento de insectos, mas eu nem sabia o nome do departamento, pois tinha-se varrido tudo da minha cabeça. Era entomologia. Acho que fui à Internet para saber. Telefonei e falei com um professor, que me disse que, se as aranhas andavam pela casa, a infestação devia ser considerável. Os meus sogros tiveram de chamar alguém para desinfestar a casa porque eu os chateei até o fazerem. Eu gosto de violinos, mas não gosto de aranhas com violinos.

Então ontem, durante o nosso passeio, o meu cão Chopper começou a lamber uma pata. E parava para lamber a pata e não queria caminhar. E eu "Chopper, anda, vamos, come on, let's go!" (Os meus cães são bilingues como eu.) E ele sentava-se a lamber a pata muito aflito. Peguei nele ao colo, mas estava escuro e não dava para ver nada. Já era perto das 20h. Toquei-lhe na pata e estava completamente viscosa, pensei que ele tivesse pisado alguma coisa nojenta, mas não. A viscosidade era da saliva dele. Achei fascinante! A saliva contém propriedades anti-bacterianas e desinfectantes, logo o instinto dele foi encher a pata da sua saliva para combater o que o estava a incomodar. Falei com ele, fiz-lhe festas, e deitei-o no chão para continuarmos o passeio.

A certa altura, já perto de casa, ele começou a ficar letárgico e parou. Peguei nele, ficou completamente mole nos meus braços e levei-o para casa. Vi-lhe a cor das gengivas e estavam sem cor nenhuma, a língua estava fria. Numa das patas havia uma manchinha vermelha. Decidi levá-lo ao hospital, pois pensei que tivesse sido mordido por alguma cobra. Tenho visto imensas cobras pequenas mortas durante os passeios, logo está na época delas. Ele estava tão relaxado que nem foi preciso meter-lhe o cinto de segurança. A viagem deve ter demorado 15-20 minutos. Se vocês ouviram alguém gritar "Motherfucker!!!" a meio da noite, fui eu quando cheguei à passagem de nível e estava fechada por causa de um comboio. Felizmente, deu para dar a volta e ir noutra direcção.

Chegámos ao vet, que está aberto 24 horas. Ele foi levado para dentro para lhe tirarem os sinais vitais; mas, assim que o tiraram dos meus braços, o meu cão olhou para mim e arrebitou. Quando o trouxeram de volta para nós esperarmos para ver o veterinário, ele já estava melhor e quase que não parava quieto. Este meu cão é completamente dramático! Viu-se com os enfermeiros num sítio estranho sem mim e ficou logo aflito. No final, estava tudo bem. Ele deve ter tido uma reacção alérgica a algo que o mordeu, mas não foi uma cobra, pois as cobras de jardim não mordem e as mordidas das outras causam muitas dores.

Sobrevivemos, mais uma vez, à nossa selva doméstica e, pelo caminho, eu aprendi mais umas coisas...

6 comentários:

  1. nos EUA, encontrar vizinhanças com passeios é uma aventura

    Bem, em quando vivi na Pensilvânia, quase todas as ruas por onde andava, e não eram poucas, tinham passeios. Um bocado maltratados, é certo, mas tinham-nos. Em geral, as propriedades privadas não davam diretamente para onde os carros circulam.

    Os EUA são bastante variados, Rita...

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    1. Sim, em Oklahoma, muitos dos passeios tinham selos dos anos 30. No sul, há mais espaço, o preço da terra é mais barato, não há tantos transportes públicos, e usa-se mais o carro. As vizinhanças de há 40 anos nem sempre têm passeios. Depende muito das regras da cidade e em que parte da cidade se está.

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    2. não há tantos transportes públicos, e usa-se mais o carro

      Eu vivi três anos na Pensilvânia e nunca tive carro. Quando ia ao centro da cidade, ia de autocarro (o serviço de autocarros era bastante razoável) ou de bicicleta. Não era preciso carro para nada (a não ser para passear, claro).

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  2. A mania americana de classificarem pessoas como "anal-retentive" choca a minha sensibilidade... Mesmo sabendo que tem origem na psicologia de Freud, custa-me a compreender como essa expressão entrou no léxico comum de uma cultura com tantos pruridos de linguagem

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  3. Tens a certeza que não foi uma cobra? Podiam ter-se cruzado durante o passeio com um departamento universitário. Ou com deputados do PS.

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    1. Por acaso, já fui mordida por uma cobra num departamento universitário americano...

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