terça-feira, 21 de abril de 2015

Re: Inveja dos doutorados

Em inglês, é muito pouco comum dizer-se "I am doctored". A bem dizer, eu nunca ouvi ninguém dizer isso; o normal é dizer "I have a doctorate" ou "I have a Ph.D.". O verbo "to doctor" tem muitos significados, entre eles, o de "aulterar, corromper, falsificar". E talvez seja por isso que as pessoas em inglês preferem dizer que têm um doutoramento, em vez de dizer que são doutoradas. Nos EUA, não é comum o nosso doutoramento vir à baila no dia-a-dia, nem sequer há grande preocupação em falar dos doutorados. Em Portugal, parece que anda por aí uma febre com doutorados. Talvez por ser uma coisa recente ter tanto doutorado, as pessoas não sabem o que fazer com eles ou o que pensar deles.

Não sei porque razão se deveria ter inveja dos doutorados, mas acusar alguém de ter inveja dos doutorados está na moda. Isso só me diz que há muitos doutorados inseguros. Um doutoramento não deve ser usado para dar validade a ninguém e, se há alguém que se sente com valor apenas por ter um doutoramento, podemos concluir com 99.99% de certeza que essa pessoa não vale grande coisa. No final de um doutoramento, a pessoa deveria sentir-se humilde porque uma das coisas que acontece no doutoramento é a realização de que nós somos uns grandes ignorantes. Aquilo que sabemos, comparado com o que não sabemos, é muito pequenino. Há uma certa fascinação em poder contribuir para e avançar o conhecimento humano, mas o desconhecimento é sempre infinitamente superior. E mesmo quando há uma descoberta, resta sempre a dúvida porque em ciência não há a certeza absoluta; isso é uma coisa que se reserva para a religião.

Eu, ao contrário da Teresa de Sousa, não concluo automaticamente que "esses doutorados sabem pelo menos que dispõem de ferramentas que mais tarde ou mais cedo lhes serão fundamentais para construir um futuro melhor." Em primeiro, há doutorados que são maus. Uma vez, um doutorado que eu conheço, escreveu uma descrição de um modelo logístico na qual misturou PROBIT e LOGIT--tinha o livro à frente e mesmo assim não percebeu nada do que leu, mas foi suficientemente bom para a sua dissertação ter sido considerada a melhor do departamento. Depois há a crítica óbvia: como é que isto funciona para os doutorados que trabalham para terroristas e/ou governos maus e desenvolvem investigação para fazer mal à humanidade e construir um futuro pior? Se todos os doutorados fossem bons e melhores do que o resto das pessoas, acho que já teríamos percebido que bastava criar governos de doutorados para construir um futuro melhor para toda a gente. Mas o mundo não funciona assim, pois não?

Já vos falei de Gary England, que é o Weather God de Oklahoma. Graças a ele milhares de vidas foram salvas. Na tal entrevista para o New York Times depois de se reformar, ele fala de um dos seus grandes arrependimentos. Diz o jornalista da história:

One big regret, he said, is that although he grew up surrounded by Cheyenne people in Seiling, he never asked them about tornadoes. He didn’t know any of the tribes’ severe-weather folklore or survival strategies — the wisdom they must have built up over centuries on the Plains. Greg Carbin, at the National Weather Service, told me something similar. It’s a shame, he said, but not much native lore has survived. Both men had an attitude of sad resignation. Despite all of our Dopplers and Storm Trackers and Dominators, the feeling seemed to be, we have lost the old wisdom forever.
Gary England não é doutorado, mas é melhor a prever tornados do que qualquer doutorado. E, no entanto, ele acha que seria melhor se tivesse conseguido obter informação das tribos nativas às Américas, que foi passada durante séculos, de geração para geração. Para nós, ocidentais, que estamos habituados ao método científico, estes povos são considerados primitivos. Mas muitos destes povos adquiriram conhecimento que nós ainda não descobrimos, apesar de termos tecnologia muito mais avançada do que eles tiveram e têm. Os doutorados que pensem nisto.

P.S. Obrigada ao NAJ por me enviar a peça de opinião do João Miguel Tavares.

5 comentários:

  1. Rita,

    Nós por cá temos um problema com os títulos: é o Sr. Dr. isto, o Sr. Eng, aquilo, o Sr. Prof. acoloutro. Eu não tenho nada contra o uso CORRECTO dos títulos e sou a favor (a minha costela reaccionário-repressiva) penalizações legais para o (ab)uso incorrecto dos mesmos. Mas chateia-me as pessoas fazerem gala disso mesmo.

    Dou-lhe um exemplo: a minha empresa é familiar e foi fundada pelo meu pai. Como temos ambos o mesmo apelido e somos ambos engenheiros, quando alguém quer o Eng. Duarte eu sei que é o meu pai. E toda a gente o conhece como tal, pelo que o título assumiu, de forma natural, a forma de um quasi-prenome e não tanto de um axiômano. Ora eu quando me apresento apresento-me como Carlos Duarte, sem Eng. (que sou e "legal", porque estou inscrito na Ordem) ou Doutor (porque tenho um doutoramento).

    Mas isto é anormal e já ouvi coisas do género, quando as pessoas lêem o meu cartão de visita profissional (onde, aí sim, vai DEBAIXO do nome, sem títulos, "Licenciado em Eng. Química - FEUP" e "Doutorado em Eng. Química - FEUP"): "Mas você não disse que era engenheiro. Então é Engenheiro Carlos Duarte, peço desculpa" - mas pede desculpa porquê?

    Pior, há quem diga então é Doutor fulaninho ou (pior) Prof. fulaninho, ao que eu respondo que sou Engenheiro porque é a profissão que exerço (e não "empresário", como já fui chamado pelo actual Ministro da Economia para meu desconforto, ou "gestor" ou outra coisa qualquer lá porque sou responsável pela empresa). Não curo doenças, dou aulas ou outra coisa do género!

    Pessoalmente sou adepto do modelo anglo-saxónico - primeiro nome. Mas admito que, pelo formalismo da nossa língua, isso seja excessivo. Mas pelo menos que parem com a mania de usar títulos e tratem toda a gente por senhor salvo em profissões onde o título é indicativo da mesma (como os engenheiros, arquitectos, médicos, professores ou mesmo, por convenção, advogados).

    ResponderEliminar
  2. @Carlos Duarte
    Quando tive o primeiro contacto com a realidade no estrangeiro, com os ditos países "mais desenvolvidos" fiquei fascinado e naturalmente comecei a criticar alguns hábitos dos portugueses que diferiam dos que observava lá por fora. Obviamente que um dos que "saltava" mais à vista era precisamente o da utilização dos títulos. Um dia em conversa com o meu pai ele respondeu-me da seguinte forma. Disse-me que se eu pensasse bem o hábito português da utilização de títulos era algo que inerentemente valorizava a educação e o desenvolvimento académico e que como tal nada tinha de pernicioso por si. Ao contrário de outras "títulos" utllizados no estrangeiro, como por exemplo Miss/Mrs que faz a diferenciação dos indivíduos do sexo feminino consoante o seu estado marital. Hoje em dia que já me passou esse primeiro "fascínio" com o que vem do estrangeiro, reconheço que a utilização dos títulos, apesar de pouco prática, é uma idiossincrisia portuguesa à qual acho uma certa piada e que valorizo. Espero que a nossa evolução não se faça toda no sentido de adotarmos os hábitos e as idiossincrisias anglo-saxónicas.

    P.S: Contudo, reconheço contudo que, tal como o Carlos Duarte, ao contrário dos meus pais nunca utilizo o meu título por iniciativa própria o que entra um pouco em contradição com o que disse acima. Mas se calhar devia ganhar coragem e começar a fazê-lo.

    @Rita Carreira,
    mais uma vez na mouche.
    Em Portugal, há uns anos atrás, a muitos pouco lhes passaria pela cabeça duvidar sobre o que dizia um licenciado pois certamente saberia tudo sobre a área em que se formou. Por outro lado era do senso comum assumir-se que teriam uma carreira profissional garantida. Com a massificação desse grau a população em geral começou a aperceber-se das diferenças de qualidade dos indivíduos com esse grau de "certificação", que afinal não sabiam tudo sobre a sua área e que eventualmente a sua opinião podia (E devia...) ser analisada com espirito crítico e que a carreira profissional dos mesmos já não era garantida. Aliás nos dias de hoje muitos licenciados sentem-se enganados pois "investiram" nesse grau profissional com o pressuposto da garantia de de que teriam um futuro profissional garantido simplesmente com o "canudo" e hoje estão desempregados, com empregos precários ou carreiras menos satisfatórias o que contraria a crença. Há uns anos atrás, dificilmente um licenciado aceitaria como válida a opinião na sua área de alguém que não fosse licenciado, hoje em dia, também muito devido à profusão de informação proporcionada pela internet, penso que essa atitude também já não será tão comum.

    A profusão de doutorados é recente pelo que essa mesma "desmistificação" do grau académico ainda está numa fase muito mais atrasada mas penso que também irá acontecer um pouco à semelhança do que aconteceu com os licenciados, tanto do lado de quem o detém como da atitude dos que supostamente têm a inveja dos doutorados. Acho que tudo isto é muito positivo e faz parte do nosso processo de evolução como país e como povo.

    ResponderEliminar
  3. Nos EUA, não é comum o nosso doutoramento vir à baila no dia-a-dia

    Na Alemanha é. Na Alemanha o prefixo "dr" é muitíssimo importante. Faz toda a diferença, em termos do respeito que se merece, ser-se doutorado ou não.

    ResponderEliminar
  4. Caro Rui,

    Eu não me incomoda que se use os títulos, incomoda-me, isso sim, que se abuse dos mesmos. Eu sei que os doutoramentos estão "na moda", mas se olharmos para um passado recente e fora do meio académico, qual era a probabilidade de se esbarrar num doutorado? Existiam (e bem) licenciados e bacharéis, mas quantos eram tratados (ou assinavam) Lic. ou Bac.? Se quiser ser "pedante", quantos engenheiros (não civis ou electrotécnicos, porque esses são quase obrigados) é que estão inscritos na Ordem (ou na antiga Associação dos Engenheiros Técnicos) para poderem usar o título?

    Da mesma forma que Eça no Séc. XIX lhe irritava o "bacharel", a mim irrita-me os "doutores".

    Já agora, o Mrs. caiu em desuso no Reino Unido (e tanto quanto sei nos EUA) e é considerado indelicado tratar uma mulher por Mrs. a não ser a pedido da própria (a minha era uma das que queria) - são todas Ms. Por cá passou-se o mesmo mas ao contrário - indelicado é o Menina (menos aqui no Puorto ;) ), são todas Senhoras (ou Donas, que é uma coisa horrorosa, da mesma extracção que o Você).

    Mas já que pegou nisso, a mim o que me encanita nos países anglo-saxónicos é a aniquilação feminina do apelido. Uma mulher casa-se e deixa de ser filha dos pais? Eu sei que nós damos prioridade à ascendência masculina no sobrenome, mas pelo menos não apagámos a história familiar de ninguém.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Nos EUA, o sobrenome da mãe é usado como password para comprovar a identidade da pessoa.

      Eu não gosto que me chamem por Dra., mas quando eu estava a ensinar na universidade, era assim que os alunos me tratavam e, dado o contexto, era normal. Costumo informar as pessoas para me chamarem pelo primeiro nome, mas há algumas em Portugal que estão sempre a ir de Rita para Dra. Rita e vice-versa. Quando é Dra Rita, já sei que me querem tramar porque estão a tentar lisonjear-me. Sai-lhes o tiro pela culatra, pois com o Dra. Rita fico logo irRITAda.

      Eliminar

Não são permitidos comentários anónimos.