domingo, 12 de abril de 2015

Aliás

O Rui Fonseca, do Aliás, perguntou-me a opinião acerca de uma notícia do Washington Post onde se relata a história de uma rapariga de origem indiana, Pooja Chandrashekar, que foi aceite para entrar em todas as universidades da Ivy League. Os pais são ambos engenheiros e emigraram de Bangalore, India, para os EUA antes de Pooja nascer. E Pooja frequentou o Thomas Jefferson High School for Science and Technology, uma escola cuja população de estudantes é 60% asiática, apesar de apenas 20% da população da área o ser.

A meu ver isto é um resultado de um processo de selecção, logo há, claramente, enviesamento por selecção. Nem todas as escolas nos EUA são iguais, há escolas a nível do secundário, que se especializam no ensino de ciência e tecnologia, outras que seguem a via dos estudos liberais. Há várias coisas a considerar:

  • É muito importante o efeito do desporto, já a este nível. As escolas secundárias competem entre si em vários desportos e há pais que colocam os seus filhos em certas escolas por causa do programa de desporto. Isto é importante porque uma bolsa de desporto pode pagar o curso universitário, mesmo numa Ivy League. Fazer parte de uma equipa de desporto e ter boas notas aumenta a probabilidade de ser aceite numa boa universidade porque, em vez de se ter apenas uma via de se ser recrutado, tem-se agora duas. E ser bom a desporto pode comprar o acesso a uma universidade muito mais cara, que não seria possível apenas com a performance académica.

    Quando eu ensinei na Universidade do Arkansas tive vários alunos que eram membros da equipa desportiva da escola, inclusive duas raparigas suecas que tinham conseguido bolsas para estudar nos EUA por causa do desporto que praticavam--ficaram com um curso universitário pago.

    A universidade onde eu estudei tinha bons programas de basquetebol, luta livre, e golfe. Recordo-me do caso de Charles Howell III, que fazia parte do programa de golfe e ele conseguiu patrocínios para entrar em campeonatos de golfe profissionalmente. A escola secundária onde ele andou era em Augusta, Georgia, que tem um programa de golfe. Augusta, Georgia, é um dos sítios mais importantes do mundo para o golfe e foi lá que o Charles nasceu.

  • Fazer parte de uma escola que tem uma boa equipa de desporto dá visibilidade na comunidade, pois a comunidade segue e apoia as equipas das escolas secundárias (e universitárias). Isto é um efeito clube: ao pertencer-se à escola, estamos a entrar num clube que vai além da escola. Há um efeito semelhante em Portugal: os jovens que ingressam num partido político, em Portugal, entram num clube; os membros do clube têm acesso a oportunidades reservadas só para eles ou onde eles têm preferência de acesso.
  • Os pais americanos de origem europeia tendem a valorizar a participação em desporto (há um enfoque grande em trabalho de equipa) mais do que a participação em actividades académicas extra-curriculares e por isso inscrevem os seus filhos em ligas de futebol, futebol americano, baseball, softball, lacrosse, rugby, etc. Isto é uma coisa "hereditária": os pais quando eram miúdos faziam desporto, agora querem que os filhos tenham uma experiência semelhante. Os pais da Pooja não tinham este background, logo nota-se que ela não participou em actividades desportivas; em vez disso, teve actividades extra-curriculares que a especializaram ainda mais em ciência e tecnologia. É natural, então, que os alunos asiáticos prefiram o Thomas Jefferson High School for Science and Technology por causa de os pais serem asiáticos e não terem a fixação em desporto.
  • Sendo ela mulher e de uma minoria, isto é vantajoso para ela e para a universidade porque as mulheres e as minorias estão sub-representadas em STEM e ela pode ser usada para melhorar as estatísticas da universidade que a aceita e pode ser usada também como "role model", dando maior visibilidade à universidade. Um homem branco que tivesse o currículo dela não seria aceite em tantas universidades porque seria demasiado especializado, branco, e homem, e as universidades preferem diversidade. Enquanto que uma mulher assim diversifica o programa; um homem branco assim contribui para o programa ser acusado de racismo ou enviesamento por sexo ("gender bias").
  • É também relevante que os pais da Pooja tenham um STEM background, logo orientam a filha numa área que já conhecem e há uma transferência da vantagem deles para ela.
  • Vou especular agora, mas, normalmente nos EUA, os imigrantes têm mais filhos do que os não imigrantes, logo pode ser que a população asiática perto da escola tenha mais crianças proporcionalmente do que a população não imigrante. E depois há também o efeito de vizinhança. É natural que os filhos de vizinhos frequentem as mesmas escolas para assim estarem rodeados de amigos, logo os asiáticos podem viver juntos e, assim, estudam juntos.

O post do Rui também menciona a questão dos judeus e dos Prémios Nobel. Nesse problema, acho que mais uma vez, há uma manifestação de enviesamento por selecção, que resulta de muitos séculos em que no mundo ocidental eram vedadas aos cristãos certas actividades, mas estas eram permitidas aos judeus. E depois, com a Segunda Grande Guerra Mundial, houve uma concentração de cientistas judeus nos EUA o que diminuiu as vagas para não judeus, por um lado; por outro lado, os EUA são também um país que investe muito em investigação e não sofreu os danos da guerra. Já na Europa, muito do esforço pós-guerra teve de ir para construir infraestrutura física o que retirou recursos para investir em cérebros. Tendo a Europa perdido tantos cérebros com a guerra, automaticamente ficou logo numa situação desvantajosa que se arrastará durante várias décadas.

Estes tópicos dão panos para mangas, como se diz, mas isto daria umas boas teses e/ou dissertações. Acho que seria giro fazer umas simulações da evolução dinâmica da população para ver como é que certas características iniciais das mesmas se propagam ou se suprimem, género um processo estocástico como uma cadeia de Markov (Markov Chain).

10 comentários:

  1. Só uma correcção. As bolsas de desporto têm regras muito diferentes, e muito mais restritivas, entre as universidades Ivy. Por isso mesmo é que elas formaram a Ivy League, uma liga de universidades que seguem as mesmas regras restritivas e que assim competem entre elas, evitando a concorrência (desleal) das universidades de dão muita importância ao desporto.

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    1. Sim, há universidades onde o desporto é um bocado obsessivo, Mesmo na minha universidade, houve uma mudança há várias décadas em tentar melhorar a qualidade dos alunos e o nível de exigência académico nos programas de desporto.

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    2. Falhou-me clarificar um ponto. Mesmo dentro da Ivy League, tu continuas a ter uma vantagem para um aluno que saiba desporto para além de ter muito boas notas. Eles têm de popular as equipas de desporto e, por lei, têm de gastar tanto dinheiro nas equipas de mulheres como nas equipas de homens, logo há uma vantagem em se ser bom a desporto (para além de ter boas notas), especialmente se se for mulher.

      A propósito disto, conheço o caso de umas miúdas de 11 anos que foram aceites na melhor escola secundária de Houston e ambas jogam futebol, uma delas até está no ranking nacional; por outro lado, uma outra miúda que academicamente era mais forte foi posta na lista de espera para a escola. Repara que elas já estão a preparar o currículo para competirem para entrar para a universidade. As universidades que lhes interessa são as da Ivy League.

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    3. Na Ivy league não há bolsas desportivas.
      É evidente que, tudo o resto igual, é melhor ter-se credenciais de bom atleta do que não ter. Mas, mesmo assim, o papel dos treinadores na escolha de alunos admitidos tem um papel bastante mais marginal do que nas outras universidades. Isso faz parte do acordo Ivy.
      Aí vai um artigo recente sobre o assunto:
      http://www.nytimes.com/2011/12/23/sports/financial-aid-changes-game-as-sports-teams-in-ivies-rise.html

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    4. Obrigada pela informação. O artigo diz que não são "athletic scholarships"; em vez disso eles chamam-lhes "grants" e têm vindo a aumentar as "grants" a famílias que precisam, independentemente de serem atletas ou não. Logo os atletas que vêm de famílias que precisam recebem "grants". Mudaram o nome à rosa, aparentemente... Claro que de uma Ivy league tinha de vir um truque à la Shakespeare.

      "The Ivy League does not award athletic scholarships, but led by endowment-rich members like Harvard, Yale and Princeton, the conference has spent hundreds of millions of dollars in additional need-based aid — with most of the universities all but eliminating student loans and essentially doubling the size of grants meant for middle-income families."

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    5. Não é nenhum truque. É absolutamente normal que universidades mais ricas (que nem são todas as as Ivy) dêem mais apoio financeiro aos seus estudantes. Penso até que Harvard foi a primeira a ter (financially) blind admissions (mas posso estar enganado em relação a este facto). E, evidentemente, estudantes que gostam de desporto podem beneficiar delas.

      A questão é saber se eles beneficiam particularmente por serem bons em alguma modalidade desportiva. E aí a resposta é não, ou, pelo menos, nada que se compare com o que se passa em outras universidades. Aliás, no acordo desportivo entre as universidades Ivy está estabelecido um limite máximo ao número de horas de treino semanal.
      É por isto tudo que as Ivy nunca, ou quase nunca, são campeãs da NCAA. A não ser em modalidades que não interessam a ninguém. Por exemplo, a minha prima foi uma vez campeã e duas vezes vice-campeã de canoagem, equipas de 4 + 1, pela Brown University. Mas, convenhamos, foi assistir a duas ou três provas e aquilo não interessava a ninguém. Estava lá o meu tio a assistir e pouco mais.

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    6. Não é nenhum truque. É absolutamente normal que universidades mais ricas (que nem são todas as as Ivy) dêem mais apoio financeiro aos seus estudantes. Penso até que Harvard foi a primeira a ter (financially) blind admissions (mas posso estar enganado em relação a este facto). E, evidentemente, estudantes que gostam de desporto podem beneficiar delas.

      A questão é saber se eles beneficiam particularmente por serem bons em alguma modalidade desportiva. E aí a resposta é não, ou, pelo menos, nada que se compare com o que se passa em outras universidades. Aliás, no acordo desportivo entre as universidades Ivy está estabelecido um limite máximo ao número de horas de treino semanal.
      É por isto tudo que as Ivy nunca, ou quase nunca, são campeãs da NCAA. A não ser em modalidades que não interessam a ninguém. Por exemplo, a minha prima foi uma vez campeã e duas vezes vice-campeã de canoagem, equipas de 4 + 1, pela Brown University. Mas, convenhamos, foi assistir a duas ou três provas e aquilo não interessava a ninguém. Estava lá o meu tio a assistir e pouco mais.

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  2. Quanto à questão das minorias, e aceitando que universidades diferentes têm regras diferentes, os americanos de ascendência indiana não têm tratamento preferencial. Pelo menos, julgo saber que na Cornell não tinham. Se alguma coisa, os indianos estão sobre-representados nas áreas STEM.

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    1. Concordo, mas uma indiana é diferente de um indiano; uma chinesa é diferente de um chinês. Tanto a China como a Índia descriminam mulheres, logo uma mulher desse background é uma minoria. O próprio artigo diz que a Pooja tinha muito poucas colegas do sexo feminino.

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    2. Sim, sim, de acordo. As mulheres estão sub-representadas no STEM

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