segunda-feira, 27 de abril de 2015

A sorte...

Hoje abri o Destreza e vi a foto que o Luís postou e mais uma vez pensei na sorte, um dos tópicos de reflexão do Zé Carlos. A maior parte de nós, que fazemos parte dos países chamados avançados, somos pessoas de muita sorte. A maior parte de nós não dá por isso, não sei se é uma coisa boa ou uma coisa má.

Depois de eu me mudar para Memphis e especialmente depois de vir para Houston, eu tenho cada vez mais noção da minha boa sorte. Não há razão nenhuma para eu ter a vida confortável que eu tenho. Podem dizer-me que eu trabalhei para isso, o que é verdade; podem dizer-me que eu sou capaz, o que é verdade; podem dizer-me que eu já tive muito azar e a minha sorte vem desse azar, o que também é verdade; mas o mundo está cheio de pessoas trabalhadoras e capazes com episódios de grande azar no passado, que não conseguem ter uma vida minimamente digna. A boa sorte insiste em não as visitar, por mais má sorte que tenham. Como ser humano, não há nada que me diferencie dessas pessoas a não ser o sítio onde eu nasci e a época em que nasci. São esses dois factores que me fazem "especial" e esses dois factores não dependem do meu esforço ou da minha capacidade intelectual.

Tenho o hábito de conversar com as empregadas de limpeza nos sítios onde trabalho. Cumprimento-as sempre. Quando começo a conversar com elas, muitas delas assustam-se pois estão habituadas a trabalhar e a ser ignoradas por quase toda a gente. E depois eu falo com elas em espanhol, apesar do meu espanhol ser autodidacta, pois eu nunca estudei espanhol formalmente. A última senhora que limpava os nossos gabinetes era da Guatemala. Tem dois filhos, que ela conseguiu trazer para os EUA ilegalmente, como ela. Um dos filhos dela, quando atravessou o deserto, viu muitos corpos de pessoas que tinham falecido durante a viagem; o outro filho não reparou ou não viu nada. Eles vieram em alturas diferentes, talvez o que viu tivesse vindo por uma rota mais perigosa. Ela não me falou da experiência dela. Eu não sei o que pensar acerca dessas pessoas que faleceram na viagem. As suas ossadas estão no deserto, é aí a sua campa. Ninguém vela pela dignidade dessas pessoas, como velam pela dignidade das pessoas que morrem em acidentes de aviação. Não há diferenças entre uns e outros a não ser o sítio de onde vêm, que, por outro lado, determina, muitas vezes, a cor da sua pele.

Das nossas cores constroem-se diferenças entre pessoas que, na sua essência, são iguais. Mesmo na Europa há diferenças entre brancos. A minha prima é meia-holandesa e meia-portuguesa e é casada com um holandês e vive nos Países Baixos. Um dos filhos dela, uma criança extremamente bonita, tem o cabelo louro escuro e os olhos castanhos. Ela tem medo que ele seja discriminado só por a cor dos olhos dele ser castanho. Ela, branca, de cabelo e olhos castanhos, filha de mãe loura, já se sentiu alvo de descriminação.

Quando não é pela nossa cor que nos pegam, é pela roupa que vestimos. Uma amiga, em Portugal, conta-me histórias da escola dos seus filhotes, em que há pais e outros alunos que "falam" dos alunos de famílias com menos recursos por causa das roupas de marca. Algumas crianças chegam a assediar as outras. A roupa de marca não faz com que um idiota deixe de ser idiota; apenas faz dele um anúncio grátis da marca de roupa--poder-se-ia dizer que faz dele um idiota ainda maior, mas eu tenho a tendência a ver as coisas de forma diferente das outras pessoas.

No fim, tudo isto são construções artificiais. A minha mãe dizia-me frequentemente, que o único requisito para se morrer era estar vivo. E assim é. Não importa a roupa que vestimos ou as nossas cores, todos nós teremos uma morte. Para alguns, os vivos tentar-lhes-ão proporcionar uma morte com "dignidade"; para outros não haverá essa sorte na morte, assim como não houve na vida.

2 comentários:

  1. "falam" dos alunos de famílias com menos recursos por causa das roupas de marca

    Não entendo: criticam-nos por usar roupa de marca ou por usar roupa sem ser de marca?

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    1. Os alunos com menos recursos não têm dinheiro para usar roupa de marca, ergo são seres inferiores à luz de quem valoriza marcas.

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