quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

Antiamericanismo

Não sei donde vem o antiamericanismo e, sobretudo, a ideia abstrusa de que os americanos são uma cambada de ignorantes. Nunca percebi como é que uma cambada de ignorantes pode ser acusada de criar uma “cultura global”. É um bocadinho contraditório, não?

Na Europa, estas “ideias” aparecem hoje mais associadas à esquerda. Em abono da verdade, boa parte da direita sempre partilhou este tipo de preconceitos. Em 1941, escrevia João Ameal, um historiador e importante intelectual orgânico do salazarismo:

“Quando oiço apregoar com admiração as virtudes americanas, tenho um arrepio”. “Tenho pouco apreço por aquela gente e a sua civilização. Deu-me sempre a impressão de um grande bando de selvagens na posse de inventos extraordinários.”

Isto faz algum sentido? Como é que um “bando de selvagens” pode conceber “inventos extraordinários?

Também não é para entender. O antiamericanismo, na Europa, teve sempre pouco a ver com a razão.

3 comentários:

  1. Em primeiro lugar, esclareço que não acho que os americanos sejam ignorantes (quando muito, talvez não escondam tanto os seus ignorantes como a Europa).

    No entanto, penso que seria relativamente simples solucionar essas supostas contradições:

    1 - «como é que uma cambada de ignorantes pode ser acusada de criar uma “cultura global”»

    É só simplesmente assumir que os seres humanos são mais parecidos entre si nos seus interesses mais "primários" do que nos mais" elevados" (e penso que isso até pode fazer algum sentido); assim, quanto mais "rude" fosse uma cultura, mas fácil seria ter impacto global

    2 - «"Como é que um “bando de selvagens” pode conceber “inventos extraordinários?»

    Aqui temos pano para mangas; há pelo menos dois caminhos pelo qual isso seria possivel.

    Um é a tal clássica oposição "razão vs. valores espirituais" / "Zivilisation vs. Kultur" / "cultura técnica vs. cultura humanista" / etc.

    Se considerarmos que o que nos eleva da "selvajaria" não é o conhecimento cientifico-racional, mas o aperfeiçoamento moral, ou os "valores", ou as "maneiras", ou a “sensibilidade”, ou qualquer coisa assim, seria perfeitamente possivel a "selvagens" criar inventos extraordinários - têm a “ciência fria e mecânica”, mas falta-lhes aquele “algo mais” que distingue os “verdadeiros espíritos civilizados” (no fundo, depende tudo da nossa definição de “selvagem”).

    [diga-se que esta perspectiva parece-me ter tido, no espectro esquerda-direita, uma inversão de polaridade nas últimas décadas]

    Outra hipótese é irmos pela distinção entre o que o filósofo alemão Georg Simmel chamou de “cultura objectiva” e “cultura subjectiva” - a primeira são os conhecimentos existentes numa dada civilização, as segunda os conhecimentos que os indivíduos têm (p.ex., eu vivo numa sociedade que sabe fabricar telemóveis, mas eu – nem a maior parte das pessoas, suspeito – não sei fabricar um telemóvel). Ora, numa sociedade com uma elevada divisão do trabalho (e sobretudo se tiver um pequeno “núcleo duro” de “génios”), talvez seja possível a sociedade no seu conjunto conceber os tais “inventos extraordinários” (alta “cultura objectiva”) mas a maioria esmagadora dos indivíduos não saber quase nada excluindo uma restrita área de especialização (baixa “cultura subjectiva”).

    Diga-se que tanto essa ideia como a anterior chegaram a ser bastante populares nalguns sectores da filosofia alemã, e quase que aposto que, se formos pesquisar a “árvore genealógica” da tese do “americano ignorante”, iremos encontrar muita influência da filosofia alemã (à direita, de filósofos que sempre viveram na Alemanha, à esquerda de filósofos que a dada altura fugiram da Alemanha para... os EUA).

    Ou seja, a tese do “americano ignorante” até pode ser empiricamente falsa, mas não é irracional, sobretudo se tivermos em atenção quais são provavelmente as suas raízes intelectuais profundas.

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  2. Mesmo assim, não estou completamente convencido. Eu não diria que a “cultura global” é rude, penso que a palavra mais exacta é “sedutora”. Na massificação cultural há mais do que um efeito de identificação, há sobretudo um processo de sedução. E a capacidade de sedução não está ao alcance de qualquer um – lembro-me de ler algures um especialista de marketing (o Jacques Séguéla) dizer que dar prazer qualquer um pode conseguir (até um bruto, dizia Séguéla), basta conhecer as técnicas e tal. Mas saber criar desejo e seduzir só está ao alcance de alguns, porque envolve capacidades intelectuais, acima dos tais “instintos primários”.
    Além disso, nessa “cultura global” – estamos a falar, nomeadamente, dos filmes, da televisão e da música – há bastantes coisas de qualidade. Já para não falar dos excelentes escritores, artistas plásticos, compositores, etc. que os EUA produziram nas últimas décadas – sendo o Miguel uma pessoa culta, escuso-me a enumerar exemplos.,
    Sobre a possibilidade de um “bando de selvagens” conceber “inventos extraordinários” tem de facto muito que se lhe diga, À primeira vista, não faz sentido. O Nietzsche explicava o “milagre grego” com a escravatura, que permitia aos cidadãos concentrarem-se nas questões e valores mais elevados. Lembrei-me agora de uma explicação do Martin Amis sobre as tendências depressivas da literatura moderna. Dizia ele que antes (até há um século) os escritores tinham criados, Agora não. Têm de tratar dos impostos, do carro, das compras, das facturas, da lavandaria, dividir tarefas domésticas, etc. e, portanto, quando se sentam a escrever já estão com uma neura tal que é inevitável que isso passe para os livros. Peço desculpa por este desvio. Voltando aos americanos. Ao contrário dos gregos, não têm escravos – quer dizer, o Abraham Lincoln conseguiu acabar de vez com a escravatura. É uma democracia liberal (a primeira da história), com os cidadãos mais conscientes do mundo sobre os seus direitos. E tem a melhor elite científica do mundo (basta pensar na percentagem de prémios Nobel), cuja superioridade se tornou evidente apenas após a II Guerra Mundial, muito graças aos alemães que emigraram (ou fugiram do nazismo), como refere o Miguel. Onde quero chegar? Numa democracia liberal, não me parece possível produzir um escol científico desta qualidade e manter o cidadão médio (chamemos-lhe assim) num nível “selvagem”, seja qual for a sua definição.

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  3. Ah, é verdade, esqueci-me de dizer uma coisa: o Miguel tem razão quando diz que "esta perspectiva parece-me ter tido, no espectro esquerda-direita, uma inversão de polaridade nas últimas décadas."
    Essa inversão começou após a II Guerra. Até aí a maioria da direita era profundamente antiamericana, enquanto alguma da esquerda se revia, por exemplo, no New Deal do Roosevelt. A evolução não foi igual em todos os países europeus, mas sem dúvida que houve uma inversão, embora continue a haver sectores da direita que são antiamericanos (em França isso é muito visível)e da esquerda que não são.
    Bem, também me esqueci de dizer que, no essencial, estamos de acordo: os preconceitos em relação aos EUA e, sobretudo, em relação aos americanos não fazem sentido.

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