A última vez que o país esteve assim foi há 60 anos, quando LBJ nationalizou a National Guard do Alabama para proteger os manifestantes pró-direitos civis em Selma, Alabama. Mas a causa actual do Presidente não é virtuosa como a de LBJ. Vivemos um capítulo negro da história dos EUA, mas isso já sabíamos.
Um blogue de tip@s que percebem montes de Economia, Estatística, História, Filosofia, Cinema, Roupa Interior Feminina, Literatura, Laser Alexandrite, Religião, Pontes, Educação, Direito e Constituições. Numa palavra, holísticos.
terça-feira, 10 de junho de 2025
Escalação
sexta-feira, 30 de maio de 2025
Uma clareza ambígua
O texto de Manuel Carvalho no Público que referi no post anterior procurou responder a um texto de João Miguel Tavares sobre o "cordão sanitário" a aplicar ao Chega. Francisco Mendes da Silva, co-signatário do abaixo-assinado "A clareza que defendemos" criticado por João Miguel Tavares, respondeu hoje.
Quando foi publicado, em 2020, o manifesto "A clareza que defendemos" pareceu-me, contrariando o título, muito pouco claro. Mesmo concordando com o princípio (a não "amálgama" entre o centro-direita e o populismo/iliberalismo) e com o que pensei que implicasse ("não é não"), pareceu-me um texto demasiado genérico. Se estava a falar (também) do Chega, por que razão não o explicitava? (Era um manifesto de âmbito mundial?) A que tipo de não "amálgama" se referia? Rejeição de coligações? Rejeição de acordos parlamentares? Rejeição de iniciativas legislativas conjuntas? Outras?
No texto de hoje, Francisco Mendes da Silva escreve: "O abaixo-assinado não defendia qualquer princípio estratégico de relacionamento entre os partidos do centro-direita português e o Chega. Nem sequer falava especificamente de Portugal." Parece-me que estas frases confirmam a minha suspeita: apesar do título, "A clareza que defendemos" era, pelo menos nos seus efeitos práticos, um texto ambíguo.
quinta-feira, 29 de maio de 2025
A propósito do Chega e da superioridade moral
Comentário do ChatGPT (na pele de professor de ciência política, o que talvez influencie o resultado) ao texto de Manuel Carvalho no Público de hoje:
A posição do autor insere-se numa linha clássica da teoria democrática que considera que há limites inegociáveis na convivência política: os partidos que colocam em causa os próprios fundamentos do regime democrático liberal não devem beneficiar da mesma legitimidade substancial que os demais. Esta é uma tese com eco em autores como Giovanni Sartori, que distinguiu entre “partidos do sistema” e “partidos contra o sistema”.
A crítica à proposta de normalização do Chega — implícita ou explícita — é apresentada com coerência. O autor parte do princípio de que a democracia liberal não é neutra em relação aos valores: tem compromissos normativos claros, nomeadamente com a dignidade humana, o pluralismo e o respeito pelas minorias. Assim, recusar a paridade moral com partidos que promovem discursos xenófobos, racistas ou autoritários não é um gesto de sectarismo, mas sim um ato de defesa da própria democracia.
É particularmente relevante a distinção entre o respeito institucional devido aos mandatos democraticamente obtidos (isto é, o reconhecimento formal do direito de representação parlamentar) e a recusa de legitimação política mais ampla, por exemplo através de alianças ou negociações estruturantes. Esta distinção ajuda a evitar tanto o perigo da exclusão antidemocrática quanto o da normalização acrítica.
No entanto, pode apontar-se uma fragilidade na forma como o autor lida com o eleitorado do Chega. Ainda que admita que nem todos os votantes aderem convictamente ao programa do partido, a proposta de aplicar-lhes igualmente a “receita da superioridade moral” pode ser interpretada como moralismo desmobilizador. A ciência política ensina-nos que os comportamentos eleitorais são multifatoriais, e muitos eleitores recorrem a votos de protesto por frustração com o sistema, sem adesão ideológica profunda. Uma resposta democrática eficaz requer não apenas confronto argumentativo, mas também escuta ativa e políticas que respondam aos problemas reais que geram descontentamento.
Em suma, o texto apresenta uma defesa articulada e rigorosa da exclusão moral do Chega da esfera da normalidade política, ancorada numa conceção normativa da democracia. Contudo, para além da rejeição moral, o desafio democrático passa também por oferecer alternativas políticas credíveis e eficazes que evitem o crescimento do voto protesto e da apatia cívica.
Na mesma sequência, pedi um comentário ao facto de o líder do PS defender a não viabilização do governo da AD. Aqui está a parte final:
A legitimidade da posição do PS depende, em última instância, da coerência do seu discurso: se defende que o Chega representa um risco para a democracia, então tem de assumir as consequências dessa avaliação — o que inclui o dever de impedir o seu acesso ao poder, mesmo à custa de viabilizar um governo de centro-direita que considere imperfeito.
Recusar ambas as soluções — nem Chega, nem PSD — pode ser lido como uma postura de purismo político que ignora a lógica de compromisso característica das democracias parlamentares. Como argumentou Norberto Bobbio, a democracia não é o reino da pureza moral, mas do equilíbrio entre legitimidade, legalidade e compromisso.
A defesa da não negociação com o Chega mantém-se legítima enquanto defesa dos princípios democráticos. No entanto, para ser politicamente consequente, implica um certo grau de compromisso entre os partidos que partilham esses mesmos princípios. A recusa simultânea de negociar com o Chega e de viabilizar um governo do PSD sem Chega pode enfraquecer essa defesa, abrindo espaço precisamente ao que se pretende evitar: a entrada do Chega em zonas de influência e poder institucional.
Em última análise, a responsabilidade democrática não é apenas denunciar os perigos, mas agir para os impedir — mesmo que isso implique compromissos difíceis.
quarta-feira, 28 de maio de 2025
PEEC
O processo entrópico em curso (PEEC) continua e recomenda-se e até tem alguns episódio cómicos. Há semanas, o Walmart informou Trump que não podia adiar aumentar os preços para sempre por causa da guerra das tarifas e Trump "aconselhou-os" a engolir o aumento de custos. A luta contra Harvard também continua, com a suspensão, na semana passada, de admissão de alunos internacionais. Em poucas horas, apareceram várias notícias a especular que talvez o filho de Trump se tenha candidatado a Harvard e tenha sido desconsiderado e o presidente se estivesse a vingar. Hoje, a administração Trump cancelou o agendamento de entrevistas para vistos escolásticos, o que afecta todas as universidades que tenham alunos ou docentes internacionais a quem precisem de dar visto.
domingo, 25 de maio de 2025
Dois artigos do Público sobre o voto no Chega resumidos pelo ChatGPT
Com base nos artigos "Zanga, racismo ou medo fazem o Chega crescer em Sintra" e "Voto no Chega foi expressão de 'decepção total'", publicados no jornal Público hoje e no passado dia 20, respectivamente, pedi ao ChatGPT que resumisse as razões apresentadas por eleitores do Chega para votarem neste partido. O resultado, ordenado da razão mais importante para a menos importante, foi o seguinte:
1. Concordância com propostas (ou perceções) políticas concretas (com destaque para a imigração)
2. Desilusão com os partidos tradicionais (PS e PSD)
3. Apreço por André Ventura (comunicacional e pessoal)
4. Desejo de mudança radical e “abalo ao sistema”
Segundo o resumo do ChatGPT, as pessoas que não votaram no Chega apontaram as seguintes razões para o apoio dos eleitores a esse partido:
1. Desinformação e influência mediática
2. Voto de protesto, ressentimento e abandono
3. Racismo e preconceito
4. Ausência dos partidos no terreno
5. Reconfiguração socioeconómica e exclusão
quinta-feira, 15 de maio de 2025
O futuro (ou já o presente) da academia, powered by ChatGPT
recebi hoje este email:
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quarta-feira, 23 de abril de 2025
Quase carapaus
Na sexta-feira passada, a Administração Trump decidiu lançar o isco de como correriam as coisa se Trump despedisse Jerome Powell. Perante a possibilidade, os mercados reagiram negativamente e o dólar continuou a cair. É cada vez mais consensual que o estatuto dos EUA e do dólar como refúgio dos investidores está muito abalado e talvez destruído por uns bons anos, se é que alguma vez o volte a recuperar. Na terça-feira, a Casa Branca veio meter água na fervura indicando que os EUA já têm alguns acordos comerciais quase firmados com o Japão, e a Índia, mas sem grandes detalhes--ou seja, uns acordos algo por alto. Scott Bessent também ajudou a acalmar os mercados dizendo que era óbvio que os EUA e a China se acabariam por entender porque eram as maiores economias do mundo, etc. E finalmente, de tarde, lá veio o anúncio de que Jerome Powell não ia ser despedido, o que apaziguou ainda mais os deuses do mercado.
Na economia real, os portos de Los Angeles e Long Beach, na Califórnia, estão a perder bastante volume vindo da China em reacção ao anúncio da guerra das tarifas. As pequenas empresas estão completamente em pânico porque dependem da manufactura chinesa para as suas vendas. Trump cancelou a isenção de taxas alfandegárias dee pacotes que entram nos EUA com valor inferior a $800 (isenção de minimis) e a DHL deixou de aceitar pacotes de valor superior a $800 destinados aos americanos porque agora estão sujeitos a uma maior burocracia. (Isto não vos lembra a saga de enviar pacotes do estrangeiro para Portugal?)
A cereja no topo do bolo são as últimas estimativas de crescimento do PIB para a economia americana e mundial: a americana é esperada crescer 1.8%, em vez dos 2.7% estimados em Janeiro. Imaginem a matemática disto! O primeiro trimestre, que teve um Janeiro bastante optimista, é esperado ter um crescimento do PIB negativo, o segundo trimestre parece que também vai ser negativo por causa da guerra comercial, dificuldades na fronteira que mandam os turistas para trás, medo de voar dentro dos EUA, despedimentos na função pública, e agora também no sector privado, etc. As únicas notícias positivas são aumento de vendas de carros e outros itens para evitar as tarifas., que tem um efeito bastante temporário. Resumindo, para a estimativa se concretizar, o segundo semestre tem de bombar para colmatar o crescimento perdido e ainda adicionar o que falta, o que é bastante improvável.
A única coisa que faz parar esta administração são as más notícias da economia, do dólar, e da bolsa e, por sorte, houve a falta de visão de começar pela parte mais destrutiva e depressiva, em vez de alimentar a bolha da bolsa com cortes de impostos e aumento da dívida. Quanto às questões sociais, o que Trump faz apenas serve para alimentar a base e não dá para fazer oposição porque são questões que fragmentam a opinião pública. O Clinton tinha razão: a única forma de ganhar apoio é pela economia.
Há no entanto alguma luz ao fim do túnel: os tribunais e o SCOTUS não parece que estão dispostos a dar uma carta branca permanente à Administração. E a sociedade civil também não: Trump tentou tirar financiamento a Harvard, se a universidade não largasse certas práticas consideradas "woke" ou anti-semíticas. Harvard recusou, Trump cancelou o financiamento de 2.3 mil milhões de dólares e ameaçou retirar o estatuto de entidade com fins não-lucrativos. Harvard acabou por processar a Administração Trump, mesmo depois de esta ter dito que a carta que tinha sido enviada a Harvard não era final e tinha sido enviada em erro.
É um pouco misteriosa a razão pela qual a Administração decidiu recuar nas exigências a Harvard, mas a universidade tem um "endownment" de 53.2 mil milhões de dólares, e decerto que parte deve estar investida em dívida pública americana. Na semana passada, os jornalistas começaram a especular estratégias de como a universidade poderia resistir a Trump. No final, a estratégia adoptada foi a tradicional: os tribunais. Tem algum risco, mas se funcionar também cria precedente que pode ajudar outras instituições.
Imaginem se nos EUA tudo dependesse de financiamento público, mas não houvesse independência das instituições como acontece em muitos países. Estaríamos mais fritos que carapaus.
segunda-feira, 7 de abril de 2025
Ainda a Segurança Social Americana
Jacarandágate
Andava eu pelo Instagram a tentar relaxar antes de ir para a cama quando aparece o Carlos Moedas a tentar explicar o Jacarandágate. Dizia ele que as árvores em questão estavam demasiado danificadas para serem transplantadas. Ora antes do parque de estacionamento abortar, a justificação para o projecto era que as árvores não estavam em risco porque iam ser transplantadas -- em Março e Abril.
- Ninguém transplanta árvores caducifólias em Março e Abril. Se é para haver transplante, este teria de ser feito no outono ou inverno, quando as árvores estão em dormência. Quero ver estas árvores que transplantaram agora a sobreviver o calor sufocante de verão, quando não tiveram tempo nenhum para desenvolver raízes no novo local de plantio. Espero bem que haja um plano de irrigação para as coitadas. Ou seja, este projecto não envolveu ninguém com competências técnicas em agronomia ou paisagismo.
- Os jacarandás são uma das imagens mais populares de Lisboa e é comum encontrarem-se fotos nas redes sociais. Eu não me admiraria que um dia Lisboa desenvolvesse um turismo sazonal de reconhecimento mundial só para visitar a cidade quando as árvores estão em flor. Turismo desse tipo é comum noutros países: as tulipas na Holanda, as cerejeiras em flor no Japão e em Washington D.C., a folhagem de outono na Nova Inglaterra, etc. Ou seja, quem é a alma que achou que isto ia ser uma boa ideia?
- O país vai a eleições em breve. Quem é que decide ir para a frente com um projecto que é óbvio que não vai ser popular meses antes de eleições? Ainda por cima cortar árvores vistosas para enfiar mais outro parque de estacionamento, como se esse parque fosse fazer uma enorme diferença.
sábado, 5 de abril de 2025
A vermos grego
Agora entrámos mesmo na dinâmica de uma Administração Trump, com ele a todo o gás em direção ao abismo ao mesmo tempo que metade do país lida com a situação através de comédia ou da ridicularização dos acontecimentos.
No caso das tarifas a comédia tem sido fenomenal, não só porque Trump impôs tarifas a ilhas sem habitantes humanos, mas também atingiu uma ilha com apenas uma base militar com pessoal americano e britânico. O James Surowiecki, que eu acho um dos melhores escritores de peças de opinião sobre a economia, descortinou a metodologia de Trump que, aparentemente, é algo que é sugerido pelos algoritmos de inteligência artificial (isto da inteligência artificial merecia um post, mas tenho andado preguiçosa).
Em resposta ao Gotcha, a administração divulgou uma fórmula matemática manhosa cheia de letras gregas, em que dois dos parâmetros se cancelam e no fim ficamos apenas com o rácio do défice comercial dos EUA com um país dividido pelo volume de exportações de bens desse país para os EUA--esse rácio é o que Trump denota de tarifas e outras barreiras comerciais actuais cobradas aos EUA, mas obviamente que não é tarifa nenhuma.
Quanto ao valor lúdico do caos actual, acho que estamos conversados. Resta apenas dar uns passos atrás e ver o contexto mundial de forma objectiva. Em 2024, a economia americana representava 26% do PIB mundial--é enorme, apesar de a proporção já ter sido mais alta. Ao contrário do que os europeus pensam, o nível de vida americano é bastante alto e consome muitos recursos.
Por exemplo, no outro dia, tive um jantar da minha vizinhança e uma das organizadoras dizia que, para facilitar a vida à senhora onde o jantar se iria realizar, ela ia comprar pratos, copos, e talheres de plástico, daqueles a imitar vidro e cerâmica que depois se deitam fora, para assim não se ter de lavar loiça. Super-comum nos EUA. Há famílias que só comem de pratos descartáveis, apesar de toda a gente ter máquina de lavar louça. E isto é apenas um exemplo de muitos. Para além de ser péssimo para o ambiente é mau para a alocação mundial de recursos--grande parte da economia mundial serve as preferências americanas, mas as políticas de Trump irão ajudar a modificar algum deste comportamento.
Estas políticas apesar de péssimas para os americanos não têm necessariamente de ser más para o resto do mundo porque os americanos ao perderem poder de compra irão colocar menos pressão nos recursos mundiais, o que deflaciona os preços para o resto do mundo, dado que a economia americana era tão grande e irá encolher imenso. Se Trump avançar com tudo o que ele já começou, não me admiraria se encolhesse mais de 10% e, se calhar, 20% é ser conservador.
O capital já está a fugir para a Europa depois de anos em que saía da Europa para alimentar a bolsa americana. Desde que a Europa aja de forma fria e contida, irá atrair capital, investimento e turismo. E com as modificações da política de imigração americana, a Europa também tem a oportunidade de atrair cérebros e mão-de-obra (bem sei, os portugueses têm horror a imigrantes porque são xenófobos: a população portuguesa mal tem aumentado, ou seja, os que entram compensam os que saem; o que há é mais pessoas em algumas cidades porque a infraestrutura é má em sítios mais pequenos, mas é natural que tal seja temporário). Não nos podemos esquecer que os americanos beneficiaram imenso, no século passado, da fuga de cientistas e outros quadros superiores da Europa para os EUA. Agora o oposto pode acontecer. Há bastante potencial para a Europa crescer mais depressa e o euro ficar mais forte como moeda de reserva.
Há uma enorme nuvem na economia mundial que é a questão das criptomoedas. Acho provável que à medida de as pessoas entram em pânico, haverá mais fuga de capitais desses "activos" que apenas têm valor especulativo, o que pode causar uma séria crise financeira mundial para além dos problemas que o Trump já está a criar.
Como se dizia durante a crise subprime: as crises são oportunidades. Pena que Portugal nem governo tenha. Se continuar assim, fica ainda mais atrasado.
domingo, 30 de março de 2025
Suspense
domingo, 9 de março de 2025
Fase do bisturi
Passámos da fase do serrote à fase do bisturi porque o pessoal não "gostou" do que ele estava a fazer porque acharam o exercício demasiado aleatório. Claro que se ele não tivesse feito nada, estas pessoas diriam que o governo federal não criava valor nenhum e tudo o que fazia era desperdício, logo corte-se à vontade, que foi a campanha de Trump.
A fase do bisturi é mais perigosa do que a do serrote porque não é tão visível. É como aquelas pessoas que um dia acordam e notam que têm uma dorzita e, vão a ver, e roubaram-lhes vários orgãos ou enfiaram-lhes um quilo de drogas no abdómen com ajuda de um bisturi. Se lhes tivessem serrado um braço com um serrote era mais visível e ainda dava para ir ao hospital tentar salvar a coisa. Mas a ignorância dá conforto a muita gente, por isso é assim que vamos para a frente, às cegas.
A última estimativa do PIB do primeiro trimestre, datada de 6 de Março, continua negativa, mas em vez de se estimar diminuir 2.8% versus 2024T4, melhorou para -2.4%, que é o que eu chamaria de "dead cat bounce". No dia 17 actualiza outra vez e já começam a aparecer dados de Fevereiro, pois sai o Advance Retail Sales (vendas a retalho preliminares) de Fevereiro; sai também a actualização das vendas e os níveis de inventário de Janeiro. E depois actualiza outra vez no dia 18.
terça-feira, 4 de março de 2025
Nem o zero nos salva!
Saiu mais uma actualização da estimativa do PIB americano na Segunda-feira e a taxa de crescimento baixou de -1,5% to -2,8%. Parte do efeito tem a ver com muitas empresas estarem na expectativa de nova guerra comercial e começaram logo a preparar-se para essa eventualidade, mas também é verdade que Trump e Musk não perderam muito tempo para iniciar hostilidades para com a economia americana.
"The GDPNow model estimate for real GDP growth (seasonally adjusted annual rate) in the first quarter of 2025 is -2.8 percent on March 3, down from -1.5 percent on February 28. After this morning’s releases from the US Census Bureau and the Institute for Supply Management, the nowcast of first-quarter real personal consumption expenditures growth and real private fixed investment growth fell from 1.3 percent and 3.5 percent, respectively, to 0.0 percent and 0.1 percent."
Fonte: Atlanta Fed
Tenho de confessar outra vez a enorme admiração que tenho pela forma como os EUA estão organizados: é mesmo "a government of the people for the people." Em poucos dias é informação pública os resultados do que eles estão a fazer, os media estão a funcionar, os dados estão a sair, e os mercados estão a começar a reagir, apesar do enorme ataque que está a ser feito ao governo federal. E daqui a uns dias, quando as pessoas começarem a ver as contas de investimento e poupança-reforma a diminuir, os telefones em Washington não vão parar. Duvido que os membros do Congresso consigam regressar aos seus estados sem serem assaltados por um milhão de perguntas, isto se não forem corridos a tiro. Afinal, as armas servem para alguma coisa. Eu sou contra o uso de armas, mas quem com o ferro fere com o ferro será ferido. É como o Einstein dizia: "God does not play dice with the universe" e nós também somos parte do universo.
E por falar em jogos, o Gary Kasparov publicou uma peça de opinião super-interessante na revista The Atlantic, na qual diz que a pressa de Musk e Trump revela um calculismo perigoso. Eu acho que a preferência pela rapidez é mais circunstancial do que calculada e é inata a estes dois personagens: o Trump porque está interessado em criar atenção 24/7, pois era isso que lhe dava dinheiro nos reality shows; o Musk também já agia assim de antemão como ficou bem ilustrado pelo seu desempenho no Twitter. Se eles tivessem agido de forma mais lenta e calculada, os efeitos do que estavam a fazer seriam menos claros e penso que seria bem mais perigoso.
O NYT publicou um artigo acerca de como surgiu o DOGE que também recomendo e onde sugere que Musk quer substituir o governo por Inteligência Artificial. Só que ele está a despedir e a eliminar muitas funções que recolhem dados que depois se tornam públicos. O governo americano presta ajuda a cidadãos e empresas, mas em troca exige que estes lhe forneçam dados--muitas pessoas desconhecem este pequeno, mas bastante importante detalhe. Sem dados públicos não há IA e é por isso que é mais fácil para a IA ser treinada em letras do que em economia. Os livros estão muito melhor organizados e disponíveis do que os dados de economia.
Mas Musk já cometeu este erro antes: Musk tinha acesso a bastante informação que era publicada no Twitter e que podia ser minada, mas como alienou os utilizadores, estes sairam ou deixaram de publicar, logo o valor do Twitter como prestador de informação diminuiu. Agora está prestes a fazer uma coisa semelhante com os dados do governo federal.
É bom que eles partam tudo. Por um lado, porque assim é mais provável que não aguentem o barco durante quatro anos a fazer coisas destas, logo livramo-nos de boa. Depois, o mundo está mais bem preparado para uma crise, pois durante a crise sub-prime muitos bancos centrais em todo o mundo contrataram pessoas com enfoque em macroeconomia e modelos que simulam a economia, logo ao menos a nível da política monetária há talento com década e meia de experiência que nos pode guiar nestes tempos tão incertos. Depois, isto vai doer tanto que é natural que os Democratas sejam eleitos durante 8 anos e construam um sistema novo, como aconteceu quando Hoover perdeu a reeleições e Roosevelt foi eleito por dois termos consecutivos. Vale a pena ler sobre a governação de Hoover. E sim, estou a contar com este episódio levar a uma depressão da economia.
segunda-feira, 3 de março de 2025
Gente fina, finalmente!
No Sábado, fui fazer mais 3,5 horas de voluntariado no Victory Garden de Collierville; no total éramos 22 voluntários. (Preciso de completar 40 horas antes de Agosto para ter a certificação de Master Gardener.) Plantámos cebolas, alface, couve, nabos, rabanetes, e acelga suíça. Enquanto trabalhávamos, estávamos em amena cavaqueira: era o tempo que anda estranho com tempestades frígidas anuais que destroem árvores, arbustos, e outras plantas perenes; o sítio em que tínhamos nascido; os estados em que já tínhamos vivido, há quanto tempo estávamos em Memphis; se era melhor água da chuva armazenada ou fresca para regar (não chegámos a acordo), etc.
Uma das voluntárias teve um neto recentemente: um bebé que nasceu quatro semanas prematuro e que passou cinco dias em cuidados intensivos, mas já está em casa. A avó mencionou várias vezes (eu ouvi-a pelo menos duas) que estava com receio de apanhar sarampo e transmitir ao neto, pois estava prestes a apanhar o avião para o ir visitar em Boston. Para quem não sabe, os EUA estão com um surto de sarampo que começou em Lubbock, West Texas, numa comunidade menonita que não vacina as crianças. Entretanto, mais pessoas apanharam um pouco por todo o país, e uma das crianças até já morreu, mas é difícil saber a verdadeira dimensão do problema por causa de Trump et al.
Acho extremamente provável que se desencadeie um número bastante maior de casos, o que seria bastante sério para os americanos porque há muitas pessoas que nunca tiveram ou não estão vacinadas. É o preço de se ser mais desenvolvido do que Portugal: eu fui vacinada e, mesmo assim, tive porque quase todos os miúdos tinham naquela altura e as mães até queriam que tivessem. A minha mãe não fez esforço nenhum para eu ter e a minha avó, que cuidava de mim, nem gostava que eu brincasse com outras crianças, logo é um bocado misterioso como apanhei. O certo é que o médico disse que ainda bem que eu estava vacinada porque foi bastante forte. A boa notícia é que agora estou imune.
Com o pessoal ainda saturado da pandemia COVID, poucas pessoas andam a ligar aos casos de sarampo. A notícia actual de maior importância é o falhanço de um acordo entre os EUA e a Ucrânia. Apesar de eu ser americana, não apoio a posição dos EUA e fiquei feliz que a Europa tivesse finalmente mostrado alguma capacidade de liderança. Num ápice, os europeus reuniram-se, comprometeram-se a gastar mais dinheiro para ajudar a Ucrânia, e até disseram que o objectivo era terminar com a guerra para poderem entrar em acordo com os EUA. Faz lembrar aquela definição de diplomacia: 'Diplomacy is the art of telling people to fuck off in such a way they look forward to the journey.' Gente fina é outra coisa!
sábado, 1 de março de 2025
GDPNow
Os dados dos relatórios que estão a sair correspondem à actividade de Janeiro e só saltou a tampa ao Trump a 31 de Janeiro, ou seja, Fevereiro tem dados bem piores, mas só saberemos a partir do final de Março e, nessa altura, o PIB do primeiro trimestre já estará feito.
“We think the bull market is intact. But we have also cautioned that volatility would likely be higher this year,” said David Lefkowitz at UBS Global Wealth Management. “Therefore, we have been highlighting that short-term hedges may be worth considering.”Fonte: Bloomberg
segunda-feira, 24 de fevereiro de 2025
A desordem
Toda essa infraestrutura de suporte da economia está a ser desmantelada pela administração Trump e, para além disso, todo o aparatus federal que facilita negócios, como as garantias do governo federal para obtenção de seguros em zonas de risco de catátrofe, ou até de financiamento na obtenção de casa está sob ameaça. Até o pessoal dos parques naturais responsável por encontrar pessoas perdidas ou que tenham sofrido acidentes, está a ser despedido, porque não é considerado essencial.
O pessoal do Internal Revenue Service vai ser reduzido durante a época alta de processamento de impostos de rendimento. A FEMA (Federal Emergency Management Agency), que foi o calcanhar de Aquiles de George W. Bush por causa das falhas de resopsta ao furacão Katrina, também vai sofrer cortes com a época de tornados praticamente aí, e a 1 de Junho a começar a época de furacões. Na agricultura, a USAID não vai comprar as commodities americanas que servem para apoiar os países mais pobres, mas mais cortes são previstos. Depois há também o detalhe de o governo federal americano recolher e produzir dados e relatórios que medem a actividade económica e as condições reais não só nos EUA, como em outros países, sendo provável que muitos desses relatórios e dados tenham os dias contados devido aos cortes no pessoal de tantas agências.
Os meus contactos em universidades americanas, indicaram-me que as universidades e pequenas empresas ligadas a pessoal das universidades que dependem de financiamento para investigação e disseminação de informação científica já começaram a cortar pessoal e em gastos de viagens e contratação de pessoal. Na semana passada, foi anunciado que Trump vai despedir os directores do serviço postal nacional (USPS) e vai colocar o serviço sob o Departament of Commerce.
Os americanos não conseguem funcionar assim, pois é um povo que gasta imenso dinheiro em recolha e analise de dados e gestão de risco. Quando estas medidas de Trump e Musk começarem a ser sentidas em termos de incerteza, a actividade econonómica irá desacelerar e talvez até parar. Na Sexta-feira, o processo pode já ter começado: os primeiros relatórios de entidades privadas que tentam antecipar os relatórios oficiais do governo americano já indicam que a actividade econonómica está a desacelerar.
O último inquérito de actividade da S&P indica que a actividade económica expandiu mais lentamente, a um nível equiparável ao de Setembro de 2023. O inquérito das expectativas de inflação dos consumidores aceleraram para 3.5%, o nível mais alto dos últimos 30 anos. O mercado accionista fechou em queda e os bonds, que oferecem mais estabilidade, em alta (yields das treasuries baixaram, logo o seu preço aumentou). Esta semana é provável que a correcção continue, dado que Musk irá continuar a despedir funcionários públicos federais (na Sexta-feira enviou outro email a pedir que os empregados indiquem o que fazem para que seja avaliado se devem ficar no emprego), para além da retórica de entrave ao comércio internacional de Trump.
A administração também está a tentar fazer mudanças em entidades que são consideradas independentes do poder executivo, o que levanta a possibilidade de haver mudanças a nível da Reserva Federal e afectando a política monetária americana. Com os despedimentos da função pública, qualquer implementação da política fiscal está comprometida. Mesmo que daqui a semanas ou meses haja vontade de passar políticas fiscais de apoio à economia, não há como as concretizar. Aguarda-nos caos e desordem, mas pode ser que algumas pessoas consigam *finalmente* entender o papel do governo federal na economia americana.
quarta-feira, 19 de fevereiro de 2025
Um oitavo de polegada
É verdade que há desperdício, mas o governo federal também gasta imenso dinheiro em controle de desperdício; aliás o custo de encontrar e controlar desperdício no governo federal é mais alto do que o desperdício que ocorre e que se evita. Nesta administração, acha-se que o remédio para se eliminar desperdício é parar tudo: já se começou a despedir a função pública e a suspender gastos em investigação, daqui a umas semanas é quase certo que nem toda a gente irá receber pensões, nem apoio financeiro para gastos médicos ou educação ou apoio a aquisição de casa, nem que se possa contar com o governo para assistência em caso de catástrofes naturais, etc. Ou seja, está a demantelar-se todo o sistema de controle de risco e de estabilização da economia americana que foi criado no último século.
Soltei os cães na minha amiga. Como é possível ainda no outro dia ela me ter perguntado porque é que não há investigação médica para certas doenças de mulheres e ela votar num traste como o Trump, é a terceira vez que vota nele, não me pode dizer que não gosta do homem. Só que não gostava do Biden e será que eu achava melhor que ela não votasse. O Biden não era o candidato, respondi-lhe, eu também não gosto dele e não votei nele nas primárias. Mas ela também não gostava da Kamala e não gosta do Trump, mas o Trump era um oitavo de polegada (3,18 mm) melhor do que os outros e vai tudo correr bem.
terça-feira, 4 de fevereiro de 2025
O elefante e a porcelana
Não se pode dizer que o governo deferal seja um governo perfeito, mas não é a incompetência que dizem que é e nem sequer serve apenas os americanos. Os funcionários públicos dos EUA, no geral, são das pessoas mais prestáveis e com sentido de missão. Muito deles foram voluntários em programas como o Peace Corps, em que foram para outros países para trabalhar com pessoas desfavorecidas, aprenderam outras línguas, fizeram amigos de outras culturas, etc. Nos EUA, quase ninguém sai da escola e consegue um bom emprego se não demonstrar ter uma consciência social. Isto apesar de o resto do mundo ver os americanos como uns capitalistas selvagens, sem ponta de dever cívico.
Talvez a melhor forma de ver como o resto do mundo beneficia do que os EUA fazem e estão a deixar de fazer seja mesmo suspender tudo e atirar o país e o resto do mundo para o caos. Na primeira vez que Trump governou, houve oposição que apenas impediu que as pessoas vissem as verdadeiras consequências do que Trump propunha e niguém aprendeu a lição, logo talvez assim consigamos sair deste tipo de "groundhog day". Não vai ser um processo agradável, mas dá para ver que há pessoas que vão acabar bastante mal e não acho que sejam os coitados do costume.
E quem vai salvar o país? Obviamente que vai ser o sistem financeiro, tal como aconteceu quando a Administração Bush passou anos a abusar do poder. Talvez as pessoas já se tenham esquecido do caso de Valerie Plame, por exemplo, uma agente secreta da CIA cuja identidade foi revelada por motivos políticos pelo gabinete do VP Dick Cheney. E claro, a invasão do Iraque, e outros episódios mais. Na altura, o mundo ergueu-se contra os EUA, mas se não tivesse havido o crash de 2008, duvido que o mundo tivesse ficado melhor. Aguardemos o crash.
sábado, 1 de fevereiro de 2025
Uma semana que vale anos
Entretanto, as audiências já retomaram o foco em Trump: os agentes do FBI que tenham estado envolvidos em investigações relacionadas com Trump vão ser despedidos. Foi também anunciado que amanhã é o início oficial da nova guerra comercial; os alvos serão a China, o México, e o Canadá. Há uns minutos também saiu a notícia que o Justive Department despediu os "prossecutors" envolvidos na investigação do golpe de 6 de Janeiro de 2020. E ainda temos mais umas horinhas antes de terminar Sexta-feira.
O Warren Buffet já mudou o portefólio para dinheiro e mandou as acções à fava por uns tempos. Está à espera que o mercado entre em saldo, o que me parece não ter de demorar muito.
sexta-feira, 24 de janeiro de 2025
Nem com capa se escapa
Os incêndios de Los Angeles poderão dominar esta presidência dada a escala da tragédia e o facto de as perdas para as seguradoras serem bastante significativas, logo haverá transferências da indústria seguradora [os hubs da indústria seguradora nos EUA são Des Moines (Iowa), Hartford (Connecticut), e Phoenix (Arizona), mas indirectamente gente de todo o sítio porque há instrumentos financeiros ligados a estas apólices cujo objectivo é mesmo esse: dispersar o risco] para as vítimas na Califórnia. O mais provável é que, depois de receberem as indemnizações, muitas das vítimas irão aproveitar e sair da Califórnia. Algumas ficarão nos EUA, mas outras poderão sair do país. E isto a juntar aos que sairão porque não querem viver nos EUA de Trump.
A juntar a isto, Trump parece estar interessado em promover as indústrias da inteligência artificial e a das criptomoedas, logo podemos contar com uma ou duas bolhas que devido ao efeito acelerador de Trump ainda devem estourar durante o seu mandato. Pessoalmente, não sou fã de nenhuma destas duas indústrias, mas não há como escapar.
terça-feira, 21 de janeiro de 2025
Um caco, mas...
Nota-se que os actuais residentes também fogem da cidade: pouca gente anda pela Baixa e os sítios mais dinâmicos são ao pé de centros comerciais estilo americano, que ficam no que antes eram arredores. Não sei se alguma vez voltará a ser uma cidade com uma Baixa a sério, mas tenho especial apreço pela Loja das Meias que ainda não desistiu da sua localização na R. Ferreira Borges.
É um bocado misterioso como é que, num país e cidade com tantas regras e impedimentos legais, é possível haver uma cidade sem qualquer planeamento urbano. Os prédios são erigidos ao calhas, os espaços verdes são insuficientes ou inexistentes e os que existem não servem qualquer função para além de ocupar espaço. Os jardins de outrora como o Parque Manuel Braga à beira rio ou o Jardim da Sereia continuam uma sombra do que já foram. Também se destruíram os canteiros no Largo da Portagem, e os da Avenida Sá da Bandeira idem. A calçada está danificada em vários sítios, por exemplo, na R. Lourenço de Almeida Azevedo, algumas almas empreendedoras decidiram colocar cimento a tapar alguns dos buracos das calçadas.
Depois, continua-se com a circulação rodoviária na Baixa da cidade completamente ilógica. Deus nos livre de haver um acidente grave ou um incêndio na Baixa porque os carros de bombeiros e ambulâncias demorarão mais do dobro do tempo necessário a chegar ao local do sinistro. Claro que talvez tentem salvar as vitimas indo em sentido contrário, se tiverem espaço.
Mas houve algum progresso. Finalmente, os prédios à beira rio cuja obra estava há décadas embargada foram terminados, um absurdo ter demorado tanto tempo a resolver o assunto. Também parece que vai haver mesmo um metro que afinal é uma carreira (não tem nada a ver comigo) de autocarros porque não há dinheiro para fazer um metro a sério, apesar de se ter andado a estudar o assunto há décadas com gente muito bem paga.
E, finalmente, há um Centro de Arte Contemporânea de Coimbra, criado em 2020, ao pé do Arco de Almedina. Gostei bastante da ideia, só é pena quase ninguém o visitar porque passa despercebido, mas dizem que está num espaço temporário. Idem para o Museu Municipal de Coimbra -- Edifício Chiado, mesmo ao pé, mas a esse vou lá sempre que passo pela cidade porque alguém tem de apoiar a iniciativa e é um sítio simpático para além de ser um edifício bastante icónico da Baixa de Coimbra, desenhado pelo atelier do Eiffel. Misteriosamente, para entrar nestes dois estabelecimentos tem de se pagar com cartão multibanco português ou dinheiro porque a máquina não aceita cartões estrangeiros.
Sim, é uma cidade universitária, mas talvez na era da inteligência artificial consiga untrapassar os limites da natural.
segunda-feira, 20 de janeiro de 2025
Auspícios
Em termos de trabalho, os dias 5-12 do mês costumam ser os piores e nunca planeio nada pessoal para esta altura, mas Janeiro é um mês mais lento e, ao contrário de muitas pessoas, apesar de o meu trabalho ter algum stress, também é uma forma de eu relaxar e quase meditar. É basicamente uma metodologia para lidar com incerteza, que me permite a ilusão de controlo e de redução de ansiedade. Dá jeito ter um escape diário assim, especialmente quando a nossa vida pessoal se vira de pantanas.
Antes de ver o meu pai, não sabia se era necessário falar com ele e dar-lhe permissão para morrer, mas quando o vi achei que continuava com votade de viver. Estava com um aspecto péssimo, parecia uma múmia, com os músculos da cara distorcidos, o corpo encolhido, não conseguia fechar a boca. Falei com ele normalmente e tentei relaxá-lo, não demonstrei estar chocada com a sua aparência. Não era construtivo. Ao fim de meia-hora de conversar com ele, a cara já estava mais relaxada e a parecência física já estava a retornar. Ao despedir-me deixei-lhe instruções de que dependia dele o que iria acontecer a seguir. Nessa altura, ele ainda estava em estado crítico e não era claro se iria sobreviver.
Na Segunda-feira, estava muito melhor e fiquei mais descansada porque já estava fora do período crítico. Não sei se pareço ou se sou insensível, mas nesse dia trabalhei até à meia-noite e estava tão cansada que foi fácil adormecer apesar do jet-lag. Também não gosto da emocionalidade destas situações, sempre me incomodou desde que me conheço.
Os meus colegas de trabalho foram super-atenciosos, recebi mensagens da Turquia, Brasil, EUA, a perguntarem se estava bem, se havia alguma coisa que poderiam fazer por mim. Quando ainda não sabíamos que o meu pai tinha pneumonia, disse a uma colega americana pelo Teams a minha suspeita e ela imediatamente perguntou-me se ele estava mais para o sentado do que o deitado e eu dei instruções à minha irmã pelo WhatsApp para levantar a cama. Quase de instantâneo, o meu pai conseguiu respirar melhor. Essa minha colega é mais velha do que eu e o pai dela tem mais de 90 anos, mas ainda está operacional e em melhor forma do que o meu que só tem 80.
Até agora, temos tido imensa sorte, pois apesar de no Natal e Ano Novo haver poucos médicos e enfermeiros a trabalhar (também havia uma greve), todos foram atenciosos, pacientes, e abertos às nossas dúvidas e perguntas. Quando perguntei a uma enfermeira se dava para fazer um raio X aos pulmões ela disse que só um médico o poderia pedir e pouco tempo depois o médico apareceu e falou com a minha irmã. No dia seguinte, quando voltei a ver o meu pai por videoconferência, ele já estava medicamentado para a pneumonia. Alguns dias depois, no último dia que o vi antes de regressar aos EUA, eu e a minha irmã achámos que havia outra coisa nova, talvez uma infecção urinária ou algo parecido e voltámos a falar com o enfermeiro de serviço a quem expressámos a nossa preocupação e no dia seguinte, já estava a ser medicamentado para uma infecção na próstata.
Convenhamos que o factor sorte é enorme e quando há tanta coisa a "avariar" ao mesmo tempo começa a tornar-se muito difícil apanhar tudo. Nas notícias, é comum ver-se notícias do que falha, as coisas que correm bem não merecem a mesma atenção. Mas também é uma questão de preparação da família. Por acaso, há anos li um livro chamado "How We Die" que relata algumas das formas em que o nosso corpo falha levando-nos a morrer. Esse livro ajudou-me a compreender a doença da minha mãe na altura e agora também me ajuda com o meu pai, quanto mais não seja, para ter alguma bagagem para poder conversar com os médicos e enfermeiros de forma mais informada.
Para mim, é impossível não pensar na minha mortalidade quando confrontada com a mortalidade dos meus pais, mas desde há muito que tenho tendências mórbidas e que me tenho preparado para o inevitável. A meu ver, era importante ter recursos suficientes para que os meus pais pudessem ir para um lar ou se precisassem de cuidados mais especializados. Mesmo assim, não foi perfeito e agora acho que teria sido importante que o meu pai tivesse tido algum tipo de fisioterapia enquanto estava no lar e eu não arranjei isso. E, nos últimos meses, quando falei com ele ao telefone e ele me dizia que estava com dificuldade em falar, não suspeitei que houvesse algo a acontecer no seu cérebro. Mas pronto, talvez essa lição seja importante para mim própria daqui a uns ano -- só que eu sou péssima a pedir ajuda, ainda tenho muito a aprender.
quinta-feira, 2 de janeiro de 2025
10 anos
A maior diferença que sinto desde então é a realização de que as coisas que eu esperava para o mundo e para Portugal não se irão concretizar durante a minha vida ou sequer alguma vez. Cada ano que passa, é mais claro de que estamos num rumo perigoso, talvez porque a geração que viveu as guerras mundiais está a morrer e as novas gerações não têm noção do equilíbrio ténue que é preciso ser feito para manter a paz. Os direitos das mulheres estão a retroceder ou a não avançar e frequentemente penso quão agradecida estou de não ter filhos.
Hoje celebra-se a última noite de Hanukkah e, desta vez, acendi as velas durante os oito dias. É um exercício que para mim não é religioso, pois não sou crente, mas é dos poucos rituais que gosto de efectuar porque sinto imensa paz. Há três anos, quando a saúde da minha vizinha Birchie piorou e não sabíamos se ia sobreviver, acendi as velas a maior parte das noites como forma de lidar com a limitação de pouco ou nada poder fazer para ajudar. Também este Hanukkah tem sido inquietante porque a saúde do meu pai piorou e hoje a primeira coisa que fiz assim que acordei foi ligar o telefone para ver se tinha alguma mensagem a dizer que não tinha sobrevivido a noite.
Já há alguns dias que tinha um pressentimento de que algo não estava bem. Hoje passei parte do dia a negociar comigo própria acerca de como proceder em relação a o ir visitar. Parte de mim acha que se o for ver, ele pode ver isso como permissão para morrer; outra parte, acha que se morrer já não sofre mais; mas também há a possibilidade que, se eu o visitar, ele ainda melhore e adiamos a morte mais um tempo. É por estas e por outras que a minha mãe dizia que eu era tão lenta que era boa para ir buscar a morte.
A última vez que fui a Portugal vi a Sónia pela última vez, e este episódio com o meu pai tem me dado alguma sensação de déjà vu.