segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

Sobre o quociente familiar e conjugal

Já tentei escrever sobre este assunto umas duas ou três vezes, mas desisti. Ao fim de alguns parágrafos o texto fica demasiado complicado e com demasiadas tecnicalidades, em que as nossas leis fiscais são férteis. Não vejam nisto uma queixa, é graças a essa complexidade que a minha mulher é tão bem paga.

Vou, pela última vez, tentar escrever alguma coisa a este respeito onde consiga explicar o que penso. Simplificarei ao máximo, tentando sempre que as simplificações sejam explícitas. Por exemplo, vou falar do quociente familiar como se cada criança valesse por 1 adulto (e não uma 0,3, como foi proposto) e vou esquecer deduções específicas. No fim, retomarei estas duas questões.

Em Portugal, um casal pode pagar IRS conjuntamente. Como as taxas de IRS são progressivas, se uma pessoa que ganha 1.000€ se casar com outra que ganha 9.000€, o casal passará a pagar menos impostos no total. Como apresentam declaração de IRS conjunta, a taxa de imposto que pagam corresponde ao seu rendimento médio (ou seja, 5.000€). É, no entanto, fundamental perceber que o imposto que pagam é sobre os 10.000€. Ou seja, pagam exactamente o dobro dos impostos de alguém que ganha 5.000€. Se os impostos fossem proporcionais, e não progressivos, dividir o rendimento por 1, por 2 ou por 30 daria sempre a mesma taxa.

Faz sentido que assim seja. Considera-se que um casal em que um dos cônjuges ganhe 1.000€ e outro ganhe 9.000€ deve pagar os mesmos impostos que um casal em que cada um ganhe 5.000€, dado que o orçamento familiar é exactamente o mesmo, 10.000€. Isto tem implicações engraçadas. Suponha que um dos cônjuges está desempregado e que não tem rendimentos. Se esse desempregado estiver casado com alguém que ganha 9.000€, então a taxa de IRS correspondente a 4.500€. Mas se estiver casado com alguém que ganha 5.000€, a taxa corresponderá a 2.500€. Dada a progressividade da taxa de IRS, a redução dos impostos a pagar é maior no caso do casal mais rico.
Usando a argumentação que se tem usado a respeito do quociente familiar para os filhos, concluir-se-ia que o Estado dá mais dinheiro pelo desempregado casado com uma mulher rica do que ao desempregado casado com uma mulher pobre. Basta pensar dois minutos, para perceber que esta interpretação é absurda. O Estado fez uma escolha ideológica ao definir a progressividade da taxa de IRS e definiu que a um rendimento médio de 2.500€ correspondia uma dada taxa que é menor do que a um rendimento médio de 4.500€. A redução do imposto a pagar é uma consequência da redução do rendimento médio, causado pelo desemprego, conjugada com a progressividade do IRS. Sem progressividade, não haveria qualquer redução de impostos. Ora a progressividade existe para penalizar os rendimentos mais altos. Concluir que, pelo contrário, beneficia os mais ricos é, simplesmente, absurdo.

É aqui que entram as crianças. Não faz qualquer sentido que um homem que ganha 2.500€ e viva sozinho pague uma taxa de imposto mais baixa do que um homem que ganha 3.000€ e tem duas filhas a seu cargo. Os 3.000€ são a dividir por três pelo que a taxa de imposto a pagar devia ser a taxa que corresponde ao rendimento de 1.000€. E o Estado, ao definir as tabelas de IRS, considerou que a esses 1.000€ correspondia uma dada taxa. Mas, relembro, o imposto total incide sobre os 3.000€. É como se houvesse três pessoas que ganham 1.000€. É simplesmente isto que está em causa. Para efeitos fiscais, a unidade é a família. A questão é como se contam os membros da família. Contam-se só os adultos ou contam-se as crianças também?

Porque é que se propõe que cada criança valha apenas apenas 0,3 e não 1? Penso que o que estará na cabeça do legislador são duas coisas. Em primeiro, há economias de escala. Uma família de 4 não tem o dobro das despesas de uma família de 2. Em segundo, as crianças já recebem apoios do Estado de diversas formas, como vacinação gratuita, escola gratuita, universidades subsidiadas, etc. Considerando que já há um conjunto de transferências do Estado para as crianças então é razoável que aplque um coeficiente inferior a 1. Mas, ainda assim, terá de ser maior do que zero, a não ser que se parta do princípio que o Estado fornece tudo o que uma criança precisa. Imagino que o valor de 0,3 por cada criança represente este compromisso (demasiado tímido, na minha opinião).

O que é verdadeiramente absurdo é considerar como uma benesse que o cálculo do rendimento per capita de uma família seja feito da forma correcta.

Qual a oposição que eu esperaria de um partido de esquerda? Eu esperaria que o PS rasgasse as vestes perante a ideia de que uma criança de uma família monoparental valha apenas 0,15. Enfim, esperaria que o PS exigisse o respeito por todo o tipo de famílias e de ter o seu rendimento per capita correctamente calculado.

Pedir deduções à colecta específicas por cada filho é má política. O IRS é um excelente instrumento para financiar o Estado. As políticas de combate à pobreza são muito mais eficazes se forem feitas com apoios directos, seja, por exemplo, com o complemento solidário dos idosos seja com o abono de família, se se quiser apoiar as famílias que têm filhos.

Só para terminar, gostaria de dizer que, como princípio geral, sou contra a teia de deduções, descontos e benefícios fiscais no IRS. Isso é uma forma de o Estado interferir nas nossas escolhas. Se as pessoas são suficientemente adultas para pagar impostos, então também deverão ser suficientemente adultas para gastar o seu dinheiro como quiserem sem serem beneficiadas ou penalizadas pelas suas escolhas.

7 comentários:

  1. "Pedir deduções à colecta específicas por cada filho é má política. O IRS é um excelente instrumento para financiar o Estado. As políticas de combate à pobreza são muito mais eficazes se forem feitas com apoios directos, seja, por exemplo, com o complemento solidário dos idosos seja com o abono de família, se se quiser apoiar as famílias que têm filhos."

    Embutir essa políticas no IRS tem a vantagem de reduzir para metade o trabalho administrativo, tanto da parte do Estado como dos cidadãos (em vez de ter o Ministério dos Finanças a calcular quanto vai cobrar a cada pessoa e o Ministério da Segurança Social a calcular quanto vai dar a cada pessoa, faz-se a operação toda de uma vez); admito que (pelo menos nos moldes em que o IRS atualmente funciona) tem a desvantagem (que no caso de políticas antipobreza admito que é relevantissima) de deixar de fora quem nem ganha o suficiente para pagar IRS.

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    1. "Embutir essa políticas no IRS tem a vantagem de reduzir para metade o trabalho administrativo"

      Como o IRS está neste momento em Portugal não dá. O IRS só funciona num sentido: cobrança de imposto, o mais que pode fazer é reduzir a cobrança de impostos, mas isso não chega para combater a pobreza. Se o IRS tivesse um escalão com taxa negativa, então daria. Mas já deu para ver que esse assunto ainda é mais explosivo do que o do quociente.

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    2. Caro Miguel Madeira,

      Acabei há dias um livro muito interessante sobre o sistema de "welfare" no Reino Unido ("Good times, bad times", por John Hills) e uma das coisas supreendentes para quem nunca felizmente passou pela situação de depender do mesmo é a questão da orçamentação doméstica. Para muitas famílias, a orçamentação é, quando muito, semanal, pelo que o pagamento de prestação ao mês é problemático.

      Ao transferir o "abono" sob a forma de abatimento fiscal (que aliás sugeri num comentário ontem ao post original do LA-C), isso resulta numa orçamentação anual, i.e., não é a melhor maneira de apoiar as famílias que realmente necessitam.

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  2. Concordo com o argumento do Luis. Acho que introduzir um coeficiente familiar não tem nada de errado e transporta a progressividade para um campo em que é considerado algo mais próximo do rendimento per capita familiar.
    No entanto, há duas questões a considerar a propósito da reforma do IRS no actual momento. E estas, tendo em conta as alterações que se fizeram nos últimos anos, e a limitada margem de manobra orçamental que existe têm também quer ser vistas de forma marginal, isto é, como mudança possível face ao que está. Admitindo que muitas mudanças desejáveis não são exequíveis no curto prazo.
    E neste contexto há duas criticas que podem ser apresentadas.
    A primeira é que esta foi apresentada como uma reforma para a promoção da natalidade. E neste contexto, de munições limitadas, podemos questionar se a despesa fiscal (perda de receita) que esta introduz é a forma mais eficaz de promover a natalidade. A resposta é que é óbvio que não. É um tiro ao lado. Em 10 medidas de apoio à natalidade, provavelmente nenhuma devia incluir o IRS. E a incluir, uma medida de apoio fixo por filho (proposta alternativa) é melhor, pois dá proporcionalmente mais a quem tem menos (que é o grupo em que as restrições financeiras são mais activas como factor limitador da natalidade), e seria mais fácil de implementar num sistema de devolução prévia (com redução imediata da retenção na fonte). Uma politica de natalidade a sério deve olhar mais para apoios sociais, medidas no mercado de trabalho, horários de trabalho, leis laborais, apoio à família, espaços e custos de creches, infantários, etc.
    A segunda objecção está relacionada com a restrição orçamental que existe. Não há muita margem. E neste contexto ter uma politica de devolução de impostos em que 80% da despesa fiscal beneficia as pessoas que estão entre os 20% mais ricos pode ser criticado quando se cortou 40% nas prestações do Rendimento Social de Inserção, em que 80 ou 90% da despesa beneficia pessoas que estão entre os 5% mais pobres e carenciados do país. Pode-se dizer que então não se pode fazer nada antes de apoiar estes pobres entre os mais pobres. É óbvio que apoiar os mais pobre não é a única função que o Estado deve cumprir. Mas se estamos a falar de redistribuição de apoios e encargos é muito estranho estarmos a cortar 40% num apoio aos mais pobres dos mais pobres, ao mesmo tempo que a despesa pública primária em percentagem do PIB se mantêm semelhante à de 2011, e em cima disso virmos dizer que, em ano de eleições, há margem para reduzir encargos fiscais de forma enviesada a favor das famílias com maior rendimento.
    Apenas como disclaimer: a introdução do coeficiente vai-me favorecer bastante.

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    1. Decl prévia - Falo apenas como eleitor e contribuinte!
      As medidas de promoção de natalidade, antes do mais devem ser justas e éticas, pois só assim produzirão alguma eficácia, sem "perturbação e perversidade social". De outra forma, a medida mais eficaz seria furar os preservativos distribuídos no SNS, medida que penso ninguém apoiará. O coeficiente familiar é da mais elementar justiça, deveria estar próximo de um (0,7-0,9) e nem deveria ser elencada como uma medida direta de apoio à natalidade - é uma medida de dignificação da criança na sociedade e na família (passa também a ser considerada do ponto de vista económico e fiscal como um cidadão), que só poderá ter uma entropia positiva sobre a natalidade, mas cujo alcance é muito mais lato.
      O ponto de vista pedagógico do artigo do L A-C, torna facilmente perceptível, de como é injusto um sistema fiscal, como o atual, em que a criança é equiparada, em desvantagem, à compra de um computador ou de um PPR. Os argumentos técnico-políticos de M.C. (cujo ponto de vista em geral aprecio!), parecem-me passar ao lado da questão essencial - é ou não justo e correto o quociente familiar? Se isso provoca perda de receita fiscal, compense-se aumentando por exemplo as taxas base (se achar isso praticável!?), mas nunca desistindo da ideia.
      Manter uma injustiça (o atual sistema fiscal), porque de momento dá jeito, é um inaceitável ponto de partida para uma decisão política.
      Por fim uma declaração de intenções - Pondero seriamente votar PS nas próximas eleições, mas o facto de percepcionar a possibilidade de vir a ser anulado o coeficiente familiar, será motivo suficiente para mudar de ideias, como penso acontecerá com dezenas ou centenas de milhares de portugueses.

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  3. Pegando no que o Manuel Cabral escreveu, eu diria que os proponentes políticos da medida não foram muito claros em qual o seu motivo - o principal (talvez o único?) argumento foi "apoio à família", "favorável às famílias", etc., e se há expressão cujo significado no discurso político é vago é "família"... Isto é, acho que nunca se percebeu bem se o objetivo era promover a natalidade, eliminar uma eventual injustiça em famílias com o mesmo rendimento per capita (ou mesmo com o mesmo rendimento e número de membros, apenas com diferentes laços jurídicos ou biológicos entre si, como nos exemplos do CGP n'O Insurgente) terem taxas diferentes, se proteger a família "porque sim"..., etc. (isto é, não me pareceu claro se os argumentos eram mais utilitários ou mais "de justiça").

    De qualquer maneira, não acho que duas famílias, uma maior que a outra, mas com o mesmo per capita, estejam exatamente na mesma situação, e não apenas por causa das economias de escala e dos apoios estatais às crianças, mas também por um motivo mais profundo:

    A causa disto tudo é termos um sistema fiscal progressivo, mas porque é que temos impostos progressivos? A resposta clássica será algo na linha de "combater as desigualdades", mas isso apenas remete para outra pergunta: porque é que queremos combater as desigualdades? Há várias respostas a isso, mas no geral (sobretudo quando a resposta é mais com argumentos "de justiça" do que utilitários) têm implícita a ideia que muita da desigualdade resulta de factores não totalmente controláveis pelos indivíduos em causa (se houvesse um consenso social de que ser rico ou pobre dependia apenas da vontade de cada individuo, de certeza que as politicas igualitárias seriam muito menos populares); e é aí que está grande parte da diferença entre uma família com dois filhos em que os pais ganham 600 euros por mês (per capita de 300 euros), e uma família com 8 filhos em que os pais ganham 1500 euros por mês (per capita de 300 euros) - por norma, podemos admitir que a variável "tamanho da família" é algo sobre qual temos muito mais controlo do que a variável "rendimento global" (não digo que seja uma regra absoluta, mas tende a ser assim); outra forma de explicar o que quer dizer é que podemos considerar que uma família com rendimentos elevados mas que, por ter muitos filhos, acaba por ter um per capita médio ou até baixo continua a ser à mesma uma família com rendimentos elevados, que simplesmente decidiu usar esses rendimentos para sustentar muitos filhos, tal como os podia ter usado para coleccionar garrafas de vinho vintage (possível contra-argumento: mesmo que os país decidam quantos filhos vão ter, os filhos propriamente ditos - que também são afetados pelos impostos que os pais pagam - não tiveram voto nessa decisão; e de qualquer maneira o meu argumento de que as situações não são idênticas se calhar só seria relevante se estivéssemos a falar de um quociente familiar de "1" por filho, o que não é o caso)

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    1. A questão aqui pode ser vista do ponto de vista da despesa e se calhar nem tanto do rendimento. Deverá o Estado considerar que os gastos por filho são maioritarimente fixos (i.e. não dependem do estrato ou meio social da família) ou são variáveis (uma família de classe média-alta tem custos superiores com os filhos do que uma família de classe média-baixa, p.e.x)?

      No primeiro caso, o que faz sentido é ou uma dedução fixa (não à colecta, mas ao rendimento colectável) ou acabar com as deduções e transferi-las para um abono. No segundo, uma redução na taxa (o tal do coeficiente). De notar que a situação actual - dedução à colecta - favorece as famílias de menores recursos DESDE que paguem IRS.

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