"There is one simple, direct way to deal with all types, and that is truthfully and honestly. We spend our lives trying to avoid the injuries and humiliations which our neighbors may inflict upon us. A waste of time. If we abandoned fear and prejudice, we could meet the murderer as easily as the saint."Henry Miller, "A Devil in Paradise"
Alguns meses depois de eu me mudar para Houston, fui a um alfarrabista perto do trabalho, que é considerado uma arca de tesouros. Eu adoro livros e adoro livros usados, mesmo sendo alérgica ao bolor, o que por vezes me causa espirros dentro de alfarrabistas e bibliotecas. Mas quando se ama uma coisa, suporta-se tudo, mesmo os espirros. O interior estava cheio de estantes, caixas, e mesas com livros. Havia alguma ordem, mas notava-se que era um local em progresso, onde muitos livros ainda não tinham sido arrumados na ordem natural das coisas. Foi lá que encontrei uma edição de 1956 de um livro de Franz Kafka, "The Trial". O livro não estava no sítio correcto; alguém o tinha deixado numa prateleira que ainda nem tinha sido catalogada. Não tinha preço marcado e a base da espinha do livro estava danificada e tinham posto fita-cola por cima para consertar o que não tinha conserto. De resto, o livro estava bem preservado e as páginas estavam bem seguras, dando a ideia que ninguém tinha lido este livro. Deixei-o ficar para trás, enquanto visitava o resto da livraria. Encontrei um catálogo do Metropolitan Museum of Art de Nova Iorque sobre a exposição de Toulouse-Lautrec, que decorreu de 2 de Julho a 29 de Setembro de 1996, que me interessou e decidi comprar. Depois fui à secção de literatura e encontrei uma cópia antiga de "Tropic of Capricorn" de Henry Miller, que também seleccionei. Regressei ao sítio onde tinha encontrado o livro de Kafka e levei-o comigo para perguntar o preço.
Quando cheguei à caixa, tive de esperar que outro cliente fosse atendido, até chegar a minha vez. Perguntei ao alfarrabista quanto era o livro de Kafka e ele, ao vê-lo, sorriu, e hesitou. Finalmente, disse que aquele livro era muito bom e era pena que a espinha estivesse danificada. Enquanto falava, colava mais fita-cola na espinha do livro, como se estivesse a tentar tratar de uma ferida. Via-se que o magoava ver aquele livro estragado. Após eu mencionar que o livro não estava no sítio correcto, disse que só uma pessoa que se interessasse verdadeiramente por livros o teria encontrado e teria mostrado interesse nele, dado estar em mau estado. Agradeceu-me por eu ter passado tanto tempo a ver os livros e convidou-me a voltar, pois reparou que eu tinha verdadeiro apreço. Depois mencionou que os livros que eu tinha seleccionado eram muito bons e pesados, não eram para qualquer pessoa, e disse que não se surpreenderia se um dia eu escrevesse um livro. Eu respondi-lhe com humildade, pois seria muito presunçoso da minha parte dizer que um dia eu seria escritora. Disse-lhe que apenas estava a tentar ler livros de melhor qualidade e que não tinha quaisquer outras pretensões.
Há livros para os quais nós temos de crescer até os podermos consumir e, por vezes, a falta de interesse por, ou a má impressão que temos de, um livro não está no livro em si, mas está em nós. Na primavera de 2004, morei oficialmente em Oklahoma City. Apenas lá ia aos fins-de-semana, pois durante a semana estava em Stillwater, a trabalhar na minha dissertação. Num dos fins-de-semana que lá fui, mostraram o documentário "Stone Reader" na biblioteca. No início do documentário, Mark Moskowitz, um leitor ávido, fala de como tentou ler "The Stones of Summer" de Dow Mossman quando era novo e não conseguiu. Mas, alguns anos mais tarde, voltou a tentar lê-lo e achou-o extraordinário. Tão extraordinário, que quis ler outras coisas de Mossman e, não as encontrando, iniciou uma busca do homem e disso fez um documentário. É mais ou menos assim que eu me vejo: tenho de me dar tempo para crescer até poder apreciar certas coisas com outra sensibilidade, na esperança de elas se tornarem extraordinárias a meus olhos.
Depois de conversarmos longamente, o alfarrabista ofereceu-me o livro de Kafka. A maneira como o livro tinha sido deixado foi como se tivesse sido um teste e eu tivesse passado o teste: ao demonstrar, pelos meus actos, que eu apreciava livros, eu era digna de o receber.
O meu livro preferido é, sem dúvida, "A Devil in Paradise" de Henry Miller, onde ele contrasta a maneira de encarar a vida dos europeus com a dos americanos. Acho que devia ser um livro de leitura obrigatória porque faz-nos mesmo avaliar a nossa atitude perante os desafios que a vida nos oferece. É uma exploração da ideia de copo meio-cheio/copo meio-vazio, que é uma metáfora característica da maneira de ser americana. Na sua essência, este livro é muito simpático para com os americanos, apesar de Miller saber, na pele, que as coisas não eram tão facilmente destrinçáveis entre bons e maus, e isso é transparente em outras das suas obras e na sua própria vida. Os Trópicos (Trópico de Câncer e Trópico de Capricórnio) de Henry Miller são as suas obras primas. O primeiro foi publicado, em França, em 1934, e foi censurado em vários países, inclusive durante três décadas nos EUA, por ser obsceno. Trópico de Capricórnio foi publicado originalmente também em França, mas em 1939, e foi banido nos EUA até 1961, pela mesma razão. Hoje em dia, ambos são considerados clássicos da literatura.
Ontem, estava a ler um artigo sobre a Whole Foods na Bloomberg e, lá pelo meio, os co-CEOs da Whole Foods falam da sua sociedade como sendo um "casamento sem sexo", uma piada sexual. Imediatamente pensei se alguém iria levar a mal ou iria penalizar a credibilidade dos dois homens. No meu último post, aludi à forma masoquista como algumas pessoas vêem Portugal, quando insistem em denotar Portugal como sendo o pior quando não o é. É praticamente impossível não pensar em sexo quando se pensa em masoquismo e no final do post eu referi-o, tentando fazê-lo de forma engraçada, até porque nós, aqui n'"A Destreza das Dúvidas" somos holísticos e isso inclui sermos especialistas em sexo, obviamente.
Depois desse post, recebi um email de um amigo meu, que me dizia "Mais um post com piadolas sexuais e ficas com a tua credibilidade pessoal abaixo de zero." Ou seja, como eu sou mulher, se quero ser credível, não me é permitido fazer piadas sexuais ou sequer mencionar sexo. Veja-se os comentários que foram feitos à crónica da Sílvia Baptista na "Maria Capaz", de título "Fodamos!" para ficarmos com a ideia de que mulheres respeitáveis não abordam este tópico. Aliás, segundo o meu amigo, é um "desperdício" do meu talento perder a minha credibilidade a falar de sexo, mesmo se o fizer de forma lúdica. O desperdício para mim está em tanta mulher antes de mim ter arriscado a vida, e muitas tê-la perdido, para que um dia, mulheres como eu, pudéssemos falar dos mesmos tópicos que os homens sem por isso sofrer consequências. É que antes de sermos Charlies, já éramos Malalas e Simones e Natálias, etc.
É interessante verificar que um homem que mal me conhece olha para um livro com conteúdo sexual que eu quero comprar e não me define como depravada; mas um amigo meu, que me conhece bem, olha para uma referência a esse mesmo livro como sendo uma mancha na minha reputação. É essencialmente o pensar rápido e devagar, que aborda Daniel Kahneman: o que nós vemos depende da nossa bagagem anterior, depende dos processos de pensamento automáticos que adquirimos ao longo da vida.
Simone de Beauvoir dizia que as mulheres só estariam no mesmo patamar que os homens na sociedade quando ganhassem tanto quanto eles. É uma visão um pouco optimista da natureza humana. Hoje em dia, há cada vez mais mulheres a ganhar o mesmo ou mais do que os homens, mas continuamos a discutir o que é um comportamento adequado para as mulheres em público. Ainda há muitos homens que têm uma clara preferência por ter mulheres que são "putas no quarto", passo a expressão, e seres cordiais e assexuais fora da intimidade doméstica. A realidade não é tão simples quanto isso e há cada vez mais mulheres que ou não se casam, ou não têm filhos, porque, simplesmente, não têm confiança nos homens ou não estão para os "aturar". Ler uma crónica bem disposta sobre este tópico, escrita por um homem, o Paulo Farinha.
Quando eu era miúda, a minha mãe costumava dizer-me: "Rita, nunca dependas de um homem!" Na altura, eu pensei que ela estivesse a referir-se ao aspecto monetário. Hoje, noto que ela não dependia monetariamente do meu pai, por isso não era o aspecto monetário que a preocupava, era outra a dependência em questão. O que ela me dizia era que a forma como eu me defino não pode ser uma função da forma como um homem ou os homens me definem. Talvez seja por isso que eu não me defina como mulher primeiramente, defino-me como pessoa. Ser mulher é incidental; ser pessoa é fundamental.
Agora sinto-me como se regressasse ao sétimo ano, durante o qual aprendemos o conjunto dos números negativos--é que, depois deste post, a minha credibilidade ficou abaixo de zero na opinião do meu amigo. Vá lá, agora fiz uma "piadola" matemática.