quinta-feira, 1 de outubro de 2015

Sou de esquerda?

De acordo com a definição de Boaventura Sousa Santos, sou claramente de esquerda, bem como a larga maioria das pessoas que conheço. Claro que politicamente estou numa posição muito distinta de BSS. Ou seja, este texto (como é comum em muitos textos de BSS) assenta e dá origem a um equívoco. A razão do equívoco é que BSS sugere que só as políticas que defende concorrem para a promoção dos objectivos que enuncia e que reproduzo aqui:
luta contra a desigualdade e a discriminação sociais, por via de uma articulação virtuosa entre o valor da liberdade e o valor da igualdade plasmada no equilíbrio entre os direitos civis e políticos e os direitos sociais, económicos e culturais; defesa forte do pluralismo, tanto nos media como na economia, na educação e na cultura; democratização do Estado por via de valores republicanos, participação cidadã e independência das instituições, em especial, do sistema judicial; luta pela memória e pela reparação dos que sofreram (e sofrem) formas violentas de opressão; defesa de uma concepção forte de opinião pública, que expresse de modo equilibrado a diversidade de opiniões; defesa da soberania nacional e da soberania nacional de outros países; resolução pacífica dos conflitos internos e internacionais.
Mas, de facto, a distinção entre a esquerda e a direita está cada vez mais na escolha das políticas para alcançar aqueles objectivos. A via da esquerda portuguesa (e de BSS) para melhorar a sociedade continua a ser mais Estado, mais despesa. Para a maioria da esquerda, mais despesa é bom, menos despesa é mau. No entanto, como se viu nas últimas décadas em Portugal, mais despesa e mais Estado, em muitos casos, só serve para promover os interesses dos mais próximos do poder - sejam sectores económicos ou corporações.  
O Estado é essencial no combate às desigualdades e na promoção da igualdade de direitos, liberdades e garantias. Mas, porque os recursos são escassos, é preciso uma avaliação cada vez mais criteriosa da despesa pública. Para essa avaliação dois princípios são essenciais: quais são as funções essenciais do Estado (ou seja, em que áreas deve o Estado intervir?); e qual é o benefício que de facto os destinatários retiram dessa intervenção. 
Colocar dinheiro dos contribuintes na TAP não é certamente a forma de promover os objectivos enunciados por BSS. Aumentar nesta fase o investimento em obras públicas também não. Ter aceitado o pedido de apoio da Caixa Geral de Depósitos ao BES também não teria contribuído para os objetivos enunciados por BSS. Num mundo global, em grande e rápida mudança, não mexer nas leis laborais, de forma a melhorar a competitividade, também não. Não cumprir o memorando assinado com a troika também não (a menos que garantissem outra forma de financiamento de salários, pensões, subsídios de desemprego, dos serviços públicos em geral, e do sistema bancário).
Enfim, talvez porque os portugueses compreenderam a importância destas e doutras medidas do Governo, a esquerda mostra dificuldades em reconhecer o país em que vivemos, e em perceber o que parece estar a acontecer nestas eleições. Dada a situação em que Portugal se encontrava, aquelas e outras medidas foram importantes para promover muitos dos objectivos que BSS enuncia, e que são certamente partilhados pela generalidade dos portugueses. Sejam eles de direita ou de esquerda.            

20 comentários:

  1. Esse texto do BSS demonstra a superioridade moral que a esquerda julga ser só dela.

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  2. Ser de esquerda, é defender uma "articulação virtuosa entre o valor da liberdade e o valor da igualdade", mas quem é que não defende isto em termos gerais e abstractos? A questão é como se faz essa articulação no concreto, a qual depende das circunstâncias, da cultura e história do país, da situação internacional, etc.. Não há nenhuma definição universal para essa articulação, depende da época e do lugar. Mas, claro, vindo de BSS a articulação tinha de ser "virtuosa", seja lá o que isso for.

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  3. A esquerda portuguesa não só não conhece o país, como não conhece o mundo...

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  4. Belos debates que nos tivemos sobre isto... No fim, tiveste alguma responsabilidade pela meu abandono da tralha esquerdista!
    Abraco
    V

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  5. "A descrição do BSS está (como é habitual nele) cheia de "palha", mas se a filtrarmos e deixarmos só o que me parece o essencial ("luta contra a desigualdade e a discriminação sociais (...) democratização do Estado por via de valores republicanos [e] participação cidadã e independência das instituições (...); luta pela memória e pela reparação dos que sofreram (e sofrem) formas violentas de opressão; (...) defesa da soberania nacional e da soberania nacional de outros países; resolução pacífica dos conflitos internos e internacionais.”) parece-me mais ou menos o que normalmente a esquerda defende em teoria (mesmo que na prática muitas vezes não o aplique) - tirando talvez aquela parte da "soberania nacional", que é muito ambígua ("direito dos povos à autodeterminação" talvez ficasse melhor).

    Quanto a posições como "O Estado é essencial no combate às desigualdades e na promoção da igualdade de direitos, liberdades e garantias" (em muitos blogs de direita que leio regularmente suspeito que tal seria suficiente para chamar o Fernando Alexandre de socialista) ou «defender uma "articulação virtuosa entre o valor da liberdade e o valor da igualdade"» (imagino que muitos direitistas não-tradicionais acham que só a liberdade interessa e que alguns direitistas tradicionais achem que a liberdade e a igualdade não passem de slogans maçonicos para atacar a ordem romano-católica, ou coisa assim) penso que não são tão consensuais assim (bem, imagino que o Fernando esteja implicitamente a só incluir pessoas com opiniões políticas minimamente normais).

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    1. A defesa da soberania nacional é um valor de esquerda? As voltas que o mundo um dá. Longe vão os tempos do internacionalismo da esquerda e o do nacionalismo da direita.
      A "luta pela memória e pela reparação dos que sofreram (e sofrem) formas violentas de opressão", é de esquerda, ai sim? E a memória das vítimas dos estados comunistas? Presumo que a memória é muito seletiva e só funciona quando o opressor não é de esquerda.
      "O Estado é essencial no combate às desigualdades e na promoção da igualdade de direitos, liberdades e garantias". Qualquer liberal do século XVIII ou XIX defendia isso. O Adam Smith, Stuart Mill, etc., liberais em termos económicos, também são, afinal, de esquerda?

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    2. "A defesa da soberania nacional é um valor de esquerda? As voltas que o mundo um dá. "

      Por isso é que pus «tirando talvez aquela parte da "soberania nacional", que é muito ambígua ("direito dos povos à autodeterminação" talvez ficasse melhor).» Note-se que mesmo os esquerdistas que defendem os Estados Unidos Socialistas da Europa ou a Federação Socialista Mundial tendem a apresentar isso como uma confederação voluntária decidida pelos seus povos constituintes (veja-se que as constituições de países como a URSS e, se não estou em erro, a Jugoslávia, diziam que se as repúblicas quisessem sair, era só pedirem).

      «A "luta pela memória e pela reparação dos que sofreram (e sofrem) formas violentas de opressão", é de esquerda, ai sim? E a memória das vítimas dos estados comunistas? Presumo que a memória é muito seletiva e só funciona quando o opressor não é de esquerda.»

      Bem, quando o opressor é de uma fação de esquerda distintinta da fação de esquerda que está a falar, até me parece que por vezes são ainda mais barulhentos que os direitistas a falar (no tempo da guerra fria, creio que anarquistas, conselhistas, trotskistas e sociais-democratas até gastavam muito mais tempo a falar da repressão na Europa de Leste do que a direita - e veja-se que, aparentemente, nenhum direitista ocidental consegui escrever criticas ao comunismo tão influentes na cultura popular como o esquerdista Orwell). Mas o meu ponto não é tanto esse, mas mais que, quando desvalorizam opressões passadas, os esquerdistas normalmente fazem-no negando pura e simplesmente que essas opressões tenham existido ("fome na Ucrãnia? Calúnias!"), sem renunciar teoricamente ao principio de "luta pela memória e reparação..."; já a atitude, "sim, sim, os negros/judeus/arménios/etc. podem ter sido muito oprimidos, mas já é altura de pararem com esse choradinho" parece-me vir mais normalmente da direita.

      "O Adam Smith, Stuart Mill, etc., liberais em termos económicos, também são, afinal, de esquerda?"

      O Stuart Mill não tenho grandes dúvidas em o classificar na esquerda; o Adam Smith não sei (nem que seja por ele ter largamente vivido antes do surgimento do conflito esquerda-direita); já agora, também me sinto tentado (mas com cautela) a pôrr o David Ricardo na esquerda (na altura, penso que ele era um bocado um ideólogo da aliança capitalistas-trabalhadores contra os proprietários rurais, o que seria a posição de esquerda da época)

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    3. Os conceitos de direita e esquerda são datados, difusos e móveis e, se calhar, de pouca utilidade. O que hoje é considerado de direita já foi antes considerado de esquerda e vice-versa (a questão da soberania é apenas um exemplo). Esqueçamos os extremos que se tocam (tirando a questão da emigração, a Frente nacional de Le Pen tem muitas semelhanças no seu programa económico com o Bloco e o PCP: são contra o capitalismo, a globalização, o euro, são a favor de nacionalizações, etc.). Talvez o melhor critério para distinguir a direita democrática da esquerda democrática seja a questão da igualdade versus liberdade, como escreveu Norberto Bobbio. A direita dá preferência à liberdade e a esquerda à igualdade. Daqui decorre que a esquerda acredita mais nas virtudes do Estado e a direita acredita mais nas virtudes do mercado. Nesse sentido, o Adam Smith nunca poderia ser de esquerda. O problema é que os conceitos se sobrepõem. Esta distinção do Bobbio até serviria se ficássemos só pela liberdade económica, mas há outras “liberdades”. Uma pessoa pode acreditar nas virtudes do mercado e ser um conservador em termos de costumes (César das Neves), mas também pode ser um progressista, como o Stuart Mill no século XIX (e nesse sentido, percebo por que motivo o Miguel o considera de esquerda, ou seja, o Mill seria de direita em termos económicos e de esquerda nos costumes). Podemos baralhar ainda mais as coisas. Há muita gente de direita (conservadores em termos de costumes) e que desconfia também do mercado (e não estou a falar da extrema-direita). Mais: o conservadorismo, que costuma ser associado mais à direita, também existe em muita da esquerda, que não quer mudar nada e conservar o que existe neste momento (mais um valor que pode estar a passar de um lado para o outro).

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    4. Ah, é verdade, também se utiliza muito o critério sobre a visão da natureza humana. A direita padeceria de um "pessimismo antropológico" e a esquerda tem uma visão mais optimista sobre o homem. Uma vez mais, caímos em contradições. O liberalismo económico é associado neste momento à direita, e eu pergunto: há alguma visão mais optimista do homem e da sociedade do que a do liberalismo económico. O Adam Smith inspirou-se muuito nos estóicos (em especial os romanos Cícero e Séneca), onde foi buscar ideias como a harmonia do universo e da sociedade, do mal pode nascer o bem, etc. Nesse caso, nessa perspectiva, afinal, o Adam Smith também é de esquerda

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  6. "O que hoje é considerado de direita já foi antes considerado de esquerda e vice-versa"

    Não sei se haverá muitos casos específicos de "vice-versa" (isto é, valores tradicionalmente associados à direita que tenham passado para a esquerda); haverá alguns (talvez, p.ex., uma certa sensibilidade anti-industrial), mas é mais comum o oposto.

    "Talvez o melhor critério para distinguir a direita democrática da esquerda democrática seja a questão da igualdade versus liberdade, como escreveu Norberto Bobbio. A direita dá preferência à liberdade e a esquerda à igualdade."

    Esse critério é muito popular em certos meios, mas eu acho-o um péssimo critério - é verdade que, a partir do momento em que se exclui fascistas e anarco-sindicalistas, podemos efetivamente dizer que o centro-direita é mais liberal na economia e o centro-esquerda mais intervencionista: mas em questões de costumes e lei-e-ordem costuma ser ao contrário.

    "A direita dá preferência à liberdade e a esquerda à igualdade. Daqui decorre que a esquerda acredita mais nas virtudes do Estado e a direita acredita mais nas virtudes do mercado."

    Isso parece-me um non sequitor parcial - realmente, é natural que uma preferência à liberdade leve a uma preferência pelo mercado; já não me parece tão liquido que uma preferência pela igualdade leve a uma preferência pelo Estado - a preferência pela igualdade levará a uma atitude caso-a-caso face às intervenções do Estado (leis anti-discriminação - a favor; leis anti-imigração - contra; leis proibindo as empresas de despedirem grevistas - a favor; leis restringido as greves - contra; etc.).

    "o conservadorismo, que costuma ser associado mais à direita, também existe em muita da esquerda, que não quer mudar nada e conservar o que existe neste momento (mais um valor que pode estar a passar de um lado para o outro)."

    Acho que aqui é conveniente distinguir entre "conservadorismo" (isto é, uma oposição abstracta à mudança, e que acha que as mudanças concretas só devem ser empreendidas se o seu beneficio compensar os custos e riscos intrínsecos ao ato de mudar) e um simples "situacionismo" (isto é, defender a ordem vigente, não por qualquer defesa de principio da ordem ou da tradição, mas simplesmente por se gostar dessa ordem concreta) - a mim parece-me que o que é mais comum à esquerda será o segundo, e mesmo isso se está a inverter (se dos anos 80 para a frente, o que tinhamos era governos de direita a querer liberalizar a economia e a esquerda a resistir, de há poucos anos - meses? semanas? - para cá a coisa parece ter voltado ao normal, com esquerdistas a quererem mesmo nacionalizar empresas, cancelar dívidas, etc. em vez de apenas defenderam as "conquistas" antigas).

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    1. Deixo aqui uma definição de Michael Oakeshott em On Being Conservative: «Ser conservador consiste em preferir o familiar ao desconhecido, o que já foi tentado ao que ainda o não foi, os factos ao mistério, o actual ao possível, o limitado ao ilimitado, o próximo ao distante, o suficiente ao superabundante, o conveniente ao perfeito, a felicidade presente à bem-aventurança utópica. Uma propensão para usar e usufruir o que está disponível, o que se tem, em vez de desejar ou procurar outra coisa; deleitar-se com o que se apresenta, mais do que com o que já foi ou com o que pode ser. As relações e as lealdades familiares serão preferidas ao fascínio de vínculos mais proveitosos. O adquirir e o aumentar serão menos importantes do que o guardar, o cultivar e o usufruir. O pesar provocado pela perda será mais agudo do que a excitação da novidade ou da promessa. Trata-se de estar à altura da nossa própria fortuna, de viver de acordo com o nível dos nossos próprios meios, de ficar contente com a exigência de uma maior perfeição que seja conforme a nós e às nossas circunstâncias».

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  7. "há alguma visão mais optimista do homem e da sociedade do que a do liberalismo económico"

    eu dá-me a ideia que talvez haja dois tipos de liberalismo económico, que até podem defender as mesmas políticas mas com argumentos diferentes - há os otimistas, que dizem sobretudo "a economia pode funcionar bem sem precisar de intervenção do estado", e os pessimistas que dizem mais "a intervenção estatal vai é ainda piorar o que até pode já estar mal"; p.ex., o Hayek, que pelo pouco que sei da obra dele, parece concentrar-se mais nas falhas/defeitos/limites da intervenção do estado (o fatal concept e essa coisa) do que propriamente nas virtudes do mercado, é capaz de ser um típico "liberal pessimista"; outro que não tenho mesmo dúvidas será o João César das Neves, que de vez em quando expõe a tese de que o progressismo nos costumes e o intervencionismo económico são ambos o resultado da tendência a acreditar no poder supremo do homem, enquanto acreditar que há limites ao poder da vontade humana levará a defender o conservadorismo social e o liberalismo económico.

    Mais um ponto que era para ficar no outro comentário mas só me lembrei agora - a ideia que tenho é que o Stuart Mill (pelo menos a dada altura) defendeu o que chamou "capitalismo na produção, socialismo na distribuição", e que terá até tido algumas simpatias autogestionárias - foi também por isso que o pus na esquerda (e a parte de ter escrito que os Conservadores eram o "stupid party" também ajuda, mesmo que no contexto até possa não querer dizer grande coisa...)

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  8. Depois dos comentários do José Carlos não tenho nada a acrescentar. Em algumas acepções serei certamente de esquerda. Noutras serei de direita. E há muitas dimensões em que não saberei em que faixa me situar!

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  9. Se nos situarmos no campo da esquerda e da direita moderadas, uma das principais diferenças é mesmo a de definição de liberdade. E penso que é por isso que liberal na Europa quer dizer de direita e nos EUA liberal é sinónimo de esquerdista.
    Isaiah Berlin explicou isso muito bem, com os conceitos de liberdade positiva e negativa. A liberdade negativa tem muito mais a ver com o assegurar que o estado não se mete na nossa vida, não criando obstáculos nem interferindo nas nossas escolhas. Eu diria que a direita privilegia estas liberdades. Já a liberdade positiva tem a ver com a capacidade do indivíduo poder tomar as rédeas da sua vida.
    Ao obrigarmos alguém a frequentar a escolaridade obrigatória estamos a interferir com as suas liberdades negativas mas, ao mesmo tempo, estamos a dar-lhe instrumentos para ser mais livre no futuro, dado que com uma boa educação terá muito mais por onde escolher.
    Quero com isto dizer que grande parte das políticas de esquerda que são feitas em nome da igualdade (rendimento social de inserção, por exemplo) podiam ser defendidas com o mesmo afinco, e se calhar com mais eficácia, em nome da liberdade (positiva).

    Finalmente, um aspecto que ainda não foi aqui focado, grande parte da direita em Portugal usa o discurso da liberdade simplesmente como disfarce para substituir o papel do Estado pelo da Igreja. Desde entregar hospitais a misericórdias a retirar apoios sociais entregando o combate à exclusão a organizações dirigidas da paróquia passando pelos cortes no ensino público ao mesmo tempo que aumenta as transferências para escolas privadas, grande parte delas de índole religiosa.

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    1. Usando esse critério, onde é que encaixas, por exemplo, o Stuart Mill? Era liberal em termos económicos (logo de direita), era progressista (logo de esquerda). Como sabes, o Berlin preferia as liberdades negativas. Em última análise, cada um deve ter a liberdade de se autodestruir e o suicídio seria o exemplo extremo. A liberdade positiva é um conceito engenhoso e que deve muito ao Rousseau. Por exemplo, nesse sentido, é legítimo proibir o consumo de álcool com o argumento de que não se está a tirar liberdade a um indivíduo, mas a ajudá-lo a libertar-se de um vício e, portanto, a ajudá-lo a ser livre. É um conceito perigoso, paternalista e que pode levar às maiores tiranias, ainda por cima sempre sob a capa das melhores intenções - a de ajudar o homem a tornar-se livre no futuro.
      Se calhar, mesmo assim, prefiro o critério do Bobbio, sobre a posição em relação à igualdade, apesar, e concordo contigo, se intersectar com a liberdade positiva. A direita tende a ver as desigualdades como naturais e inevitáveis (os indivíduos são diferentes, tem capacidades diferentes, sempre houve pobre e ricos, os de cima e de baixo, etc.) – mas, lá está, caímos no tal pessimismo, que me parece incompatível com o liberalismo económico. A esquerda vê a desigualdade como algo eminentemente social e, portanto, corrigível. E o Estado, claro, é o grande instrumento dessa correção. A igualdade choca com a liberdade e esse é o grande problema. Por exemplo, num exemplo extremo, se o Estado obrigar toda a gente a vestir de amarelo ou a andar de bicicleta acaba com a desigualdade, mas também com a liberdade – ou melhor, a desigualdade de facto não acaba, porque alguém decidiu e esse alguém está numa situação de maior poder. A questão é onde se traça a linha. Até onde estamos dispostos a sacrificar a nossa liberdade em nome da igualdade?
      Pessoalmente, sou liberal numas coisa, conservador noutras (a idade não perdoa), social-democrata noutras e estou sempre disposto a mudar de opinião se as circunstâncias mudarem, como dizia o Keynes. Devo ser o que, filosoficamente falando, se chama um pragmático. Acho que as circunstâncias têm muita força.

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    2. Acho que pôr a distinção na questão liberdade positiva ou negativa tem o mesmo problema do que por na questão igualdade ou liberdade - isso é fundamentalmente uma diferença entre socialistas e liberais, mas não me parece que seja a melhor forma de abordar a diferença entre socialistas e democratas-cristãos ou conservadores; e convém não esquecer que fora das faculdades de economia, "direita" significa sobretudo conservadorismo ou democracia-cristã, não liberalismo (já agora, um ponto que talvez fosse merecedor de reflexão - creio que tanto o Edmund Burke como o Álvaro Cunhal preferiam falar de "liberdades" do que de "Liberdade").

      Quanto à liberdade positiva poder levar às maiores tiranias, creio que todas as restrições à liberdade negativa do Joaquim implicam também uma restrição à sua liberdade positiva (se ele é impedido de beber álcool, então não tem a capacidade de beber álcool, embora a inversa não seja verdadeira), logo parece-me que uma defesa coerente da liberdade positiva também implicará limitar ao mínimo necessário (claro que este "mínimo necessário" dá pano para mangas) as restrições à liberdade negativa - à partida, dá-me a ideia que se a defesa da liberdade positiva for conjugada com a ideia que os indivíduos são perfeitamente lógicos e racionais (ou, alternativamente, que não sabemos quem é mais ou menos racional), não dá grande ajo a restrições paternalistas (limitar a liberdade negativa do Joaquim para aumentar a sua liberdade positiva) apenas a restrições do tipo "limitar a liberdade negativa do Joaquim para aumentar a liberdade positiva do Pedro", mas com a chamada "liberdade negativa" acontece a mesma coisa.

      A minha maior objeção à distinção entre liberdade positiva e negativa é que muitas das ausências de "liberdade positiva" também têm, em ultima instância, uma restrição de "liberdade negativa" - afinal, se alguém não pode ir a uma piscina por ser pobre e não ter dinheiro para pagar a entrada, isso significa que, em ultima instância, se ele tentar ir à piscina, homens armados (ou no mínimo musculosos) vão impedi-lo de entrar na piscina ou obrigá-lo a sair. Ou seja, essa distinção tende a esquecer que a autoridade do Estado sobre o seu território e do proprietário sobre a sua propriedade são coisas muito parecidas - em ambos os casos há alguém com autoridade sobre uma parte do mundo físico e sobre as pessoas que estejam lá, e com possibilidade de recorrer à coação física para impor a sua autoridade (o fundo o Estado é uma propriedade em ponto grande, e uma propriedade - nomeadamente imobiliária - só não é um estado em ponto pequeno porque tem o Estado por cima). Nesse aspeto, acho que tanto anarco-sindicalistas (que acham que tanto a autoridade dos proprietários como a autoridade do Estado são opressivas) como conservadores (que acham que a vida em sociedade em feita de subordinações e dependências, desde a subordinação dos filhos aos pais à subordinação dos cidadãos ao Estado, e que as subordinações derivadas da propriedade são apenas mais umas a juntar à coleção) parecem-me ter uma visão mais correcta da coisa do que os liberais que tendem a ver as relações estabelecidas a partir da propriedade (como patrões-empregados, senhorios-inquilinos, titulares de patentes - concessionários autorizados, etc) como se fossem simples contratos entre indivíduos independentes.

      Um post que escrevi há uns anos sobre a questão da liberdade positiva e negativa:

      http://ventosueste.blogspot.pt/2011/07/liberdade-negativa-e-positiva.html

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    3. Estamos a discutir as diferentes acepções de Liberdade, mas, tamb+em sobre a Igualdade se pode ter a mesma discussão.
      De que igualdade estamos a falar? Igualdade perante a lei? Igualdade de rendimentos? Igualdade de oportunidades?
      Quando acima falava sobre liberdade positiva penso que essa noção se sobrepõe bastante à noção de igualdade de oportunidades.

      PS todos sabemos que estes conceitos,quando levados ao extremo, podem justificar todo o tipo de sociedades absurdas e ditatoriais. Estou a falar sobre o que distingue a direita moderada da esquerda moderada, ou seja, estou a falar de quem tem tendência a dar mais ênfase num lado do que no outro, nem em gente que põe toda a ênfase num só ponto.

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    4. Sim, basicamente é uma questão de ênfase. A única maneira de atenuar (mas sem resolver) o problema é acrescentar sempre mais um adjectivo ao termos direita e esquerda. E teríamos direita liberal, direita conservadora, direita democra-cristã, extrema-direita; esquerda liberal, esquerda democrática, esquerda socialista ou social-democrata, esquerda radical ou extrema-esquerda. mesmo assim, há sempre sobreposições, Mas, basicamente, é mesmo uma questão de ênfase, mais à igualdade de oportunidades (esquerda liberal, socialista) ou mais à liberdade (direita liberal, democrata-cristã). Agora, qual é a tal articulação "virtuosa", para voltar às palavras de BSS, depende de muita coisa: da cultura e costumes de um povo, da sua história, das possibilidade económicas, da demografia, da situação internacional, da tecnologia, etc. Esse ignorar das circunstâncias é que às vezes também me parece mais característico da esquerda, da portuguesa, pelo menos

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  10. Uma passagem de Stuart Mill sobre economia: "If, therefore, the choice were to be made between Communism with all its chances, and the present [1852] state of society with all its sufferings and injustices; if the institution of private property necessarily carried with it as a consequence, that the produce of labour should be apportioned as we now see it, almost in an inverse ratio to the labour—the largest portions to those who have never worked at all, the next largest to those whose work is almost nominal, and so in a descending scale, the remuneration dwindling as the work grows harder and more disagreeable, until the most fatiguing and exhausting bodily labour cannot count with certainty on being able to earn even the necessaries of life; if this or Communism were the alternative, all the difficulties, great or small, of Communism would be but as dust in the balance." (o que ele escreve a seguir relativiza muito esta passagem, mas duvido que se possa chamar de direita a quem escra isto, mesmo se para apresentar "terceiras vias" nos parágrafos seguintes).

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