sexta-feira, 4 de março de 2016

Era dela...

Em 2008, era um dado adquirido que Hillary Clinton seria a candidata nomeada pelo Partido Democrata para as eleições presidenciais. Toda a gente dizia "The nomination is hers to lose". Só ela podia perder a nomeação porque era dela. A sua campanha foi uma desgraça e ela perdeu para um Senador com pouca ou nenhuma experiência política, Barack Obama. Sem dúvida que a vantagem de Obama é a sua "moralidade" e o país, naquela altura, atravessava uma enorme crise moral. Os americanos são um povo sonhador: gostam de pessoas que os inspirem, "people to look up to." E Obama tem uma história de vida que é um sonho americano -- Bill Clinton também tem uma -- e nunca tinha sido manchado por nenhum escândalo. Para além disso, a cor da sua pele é ela própria um escudo. Como atacar um homem de cor sem dar a impressão que estamos a ser racistas? Essa impressão já está bastante integrada no ADN americano.

Quando Hillary anunciou a sua candidatura a estas presidenciais, mais uma vez toda a gente disse "The nomination is hers to lose." E chegou a dizer-se que ela seria a vencedora das eleições sem dúvida absoluta. Quando se começa no topo, o único sítio para onde ir é o fundo, e Hillary começou a ir para o fundo. Havia questões acerca de ela ter usado um servidor privado para os seus emails; as ligações que os Clinton têm com o mundo de negócios; o facto de ela pertencer a Washington e Washington ser visto como um sítio disfuncional e imoral que não serve a América. Bernie Sanders tem a aura de moralidade que falta a Clinton e a sua luta contra Wall Street agrada profundamente a muita gente que esteve desempregada durante a Grande Recessão e aos jovens. Os jovens americanos estão enamorados com um papel de estado mais europeu do que americano por causa do que viram durante a recessão. Os meus amigos de Portugal dizem-me que eu não compreendo a desgraça que foi a intervenção da Troika, mas compreendo perfeitamente porque a desgraça que ocorreu nos EUA foi muito maior -- os EUA não têm o estado social que Portugal tem. Demorou oito anos para a economia americana recuperar; Portugal no quarto ano de recuperação já estava quase aos níveis que estava antes da crise. Os americanos não se esquecem dos períodos maus -- a preferência que têm por mercados de trabalho flexíveis e baixas taxas de desemprego são o resultado do elevado desemprego da Grande Depressão --, mas também não se lamentam, porque é um país habituado a reconstruir-se. Todas as catástrofes naturais que os atingem frequentemente apertam o tecido social e obrigam a sociedade a ajudar-se a si própria. Os americanos gostam de controlar, mais do que ser controlados, e os cidadãos querem decidir activamente quem merece ajuda. Depender do estado é visto como anti-americano.

A entrada de Donald Trump na campanha presidencial afectou muito o lado dos Democratas: travou o crescimento de Bernie Sanders e a queda de Hillary Clinton. Presume-se que Bernie Sanders não tem hipótese nenhuma contra Donald Trump. O efeito Trump é interessante a muitos níveis. Trump não é um homem de negócios; ele é um génio de marketing pessoal que se vende como sendo um homem de negócios. Apesar de todas as loucuras que diz, Trump alinha-se mais com os Democratas, tendo contribuído bastante para estes, inclusive para Hillary Clinton, até 2012. Também já doou mais de $100.000 à Fundação de Bill Clinton. Donald Trump, em 2008, descreveu Hillary Clinton publicamente como sendo uma mulher "very talented and very smart", o que entretanto já desdisse. Sejamos honestos: no que diz respeito a fazer campanhas eleitorais, ela não tem o apelo de Bill Clinton -- quando Barack Obama estava a perder terreno contra Mitt Romney foi Bill Clinton que o salvou --, Barack Obama, ou mesmo Bernie Sanders. Até há bastantes democratas que a odeiam profundamente e muitos porque acham que ela fez uma campanha porca contra Obama. Mas ela não assusta tanto como Donald Trump.

Posto isto, acho que há uma probabilidade não negligenciável que esta campanha de Trump sirva essencialmente para abrir caminho para Hillary Clinton e, no processo, destruir o Partido Republicano ou, pelo menos, criar condições para que este tenha um exame de consciência. Trump é megalomaníaco suficiente para orquestrar tal coisa. Os Republicanos distanciaram-se tanto do centro que, hoje em dia, é aceite que Ronald Reagan não ressoaria com o partido actual. E depois há a receita de governação: os Republicanos (não Trump) insistem que reduzir impostos irá criar crescimento, ao mesmo tempo que não põem de parte mais despesa militar. Essa receita, seguida por George W. Bush, não só não gerou crescimento, como ampliou a eventual recessão que atingiu o país em 2008. Note-se que a administração Clinton deixou o país com excedentes orçamentais. O tópico central da campanha Bush vs. Gore foi essencialmente uma discussão do que fazer com o excedente do Fundo da Segurança Social conseguido por Clinton. Bush defendia uma redução dos impostos, pois achava que o estado roubava dinheiro dos contribuintes ao manter aquele nível de impostos e o sector privado era muito mais eficiente a decidir onde gastar dinheiro do que o estado, logo isso só por si só deveria gerar crescimento. Isto vai contra a teoria económica em vários pontos: quando a economia está em pleno emprego, não há muitos sítios onde gastar dinheiro de forma a gerar crescimento -- normalmente gera-se inflação, mas com a China a exportar deflação para os EUA, a inflação foi controlada --, uma consequência da lei dos rendimentos marginais decrescentes. E depois reduzir impostos em épocas de expansão reduz o papel dos estabilizadores automáticos da economia, que eram mecanismos defendidos por Keynes e, como dizia Friedman, "We are all Keynesian now".

Um à parte acerca do papel dos estabilizadores automáticos: durante épocas de crescimento do PIB, a despesa pública em apoio social diminui (não há tanto desemprego) e as receitas fiscais aumentam o que desacelera o crescimento do PIB, mas também deveria permitir a acumulação de excessos fiscais que são usados para financiar despesas do estado durante períodos de recessão. Ou seja, os excessos fiscais durante épocas de expansão financiam a despesa pública durante épocas de recessão. Isto permite que o ciclo económico tenha uma variância menor: as recessões não são tão graves, nem os picos de expansão são tão eufóricos. Ora, ao reduzir o nível de impostos durante a época de expansão ao mesmo tempo que iniciava uma guerra financiada por dívida, o governo Bush ampliou a variância do ciclo económico: a expansão foi muito mais eufórica e a recessão que se seguiu muito mais profunda porque o estado não só não tinha excesso orçamentais acumulados, como tinha mais dívida pública. Também não ajudou que, por a bolha imobiliária ser tão eufórica, as poupanças de grande parte do mundo estavam a ser canalizadas para os EUA para financiar essa mesma bolha, diluindo a política monetária contraccionista da Reserva Federal que servia para arrefecer a expansão.

Nesta campanha eleitoral americana, encontramo-nos numa situação parecida a 2000. Não há qualquer dúvida que 2016 vai ser o pico do ciclo económico americano. Ultimamente, a maior parte dos indicadores estão melhores do que as expectativas dos analistas. É praticamente impossível os EUA expandirem muito mais do que isto. Mas há vários riscos no horizonte: há, mais uma vez, as poupanças do mundo a serem canalizadas para os EUA; há alguma dívida má que resultou do investimento na extracção de petróleo e gás natural de xisto; há muitas empresas que gastaram dinheiro ou endividaram-se a comprar as suas próprias acções para insuflar o seu preço e agradar aos accionistas, mas que não conseguem gerar grande crescimento através das receitas; há o ajustamento à nova tecnologia de produção de petróleo e de energias renováveis; a economia chinesa está fraca, endividada, e no processo de um ajustamento demográfico; a Europa está estagnada; América do Sul não tem grandes perspectivas de crescimento, etc. Mas há sempre o papel estabilizador do consumo dos baby-boomers americanos, os salários parece que estão finalmente com perspectivas de aumento, o desemprego está a baixar e já é difícil preencher algumas posições, e os EUA estão perto de se tornar independentes do exterior em energia. Podia ser pior, mas é preciso que o próximo Presidente seja uma pessoa que não abane muito o barco...

8 comentários:

  1. Mais ou menos isso. Só com a diferença de a maior parte das sondagens indicarem Sanders como o único que vence todos os candidatos republicanos. E, mesmo contra Trump, Sanders leva mais vantagem do que Clinton.

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    1. Obviamente, as sondagens estavam erradas. A Sra. Clinton está a dominar o Sr. Sanders.

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    2. O NG refere-se aos "match-ups" entre Sanders e Clinton, por um lado, e todos os candidatos republicanos, excepto o Kasich, pelo outro.

      As actuais médias do site Real Clear Politics são:

      Clinton 45,4% - Trump 42%
      Cruz 46,5% - Clinton 45%
      Rubio 48,5% - Clinton 43,5%
      Sanders 49,8% - Trump 41,8%
      Sanders 50% - Cruz 40,3 %
      Sanders 47,3 % - Rubio 44%



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  2. We are all Keynesians now

    «The phrase was first attributed to Milton Friedman in the December 31, 1965, edition of Time magazine.[1] In the February 4, 1966, edition, Friedman wrote a letter clarifying that his original statement had been "In one sense, we are all Keynesians now; in another, nobody is any longer a Keynesian."[2]

    Friedman's expression was purportedly a rejoinder to the 1888 claim of British politician William Vernon Harcourt that "We are all socialists now";[3] a declaration that was reprinted for a Newsweek magazine cover story in 2009.[4]

    In 1971, after taking the United States off the gold standard,[5] Nixon was quoted as saying "I am now a Keynesian in economics",[6] which became popularly associated with Friedman's phrase. » Wikipedia

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  3. Quanto à situação da economia americana, tens aqui uns gráficos interessantes:

    http://davidstockmanscontracorner.com/a-modest-proposal-gift-the-bls-to-the-democratic-national-committee-or-sell-it-to-cnbc/

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  4. Não. As sondagens que indicam Sanders a vencer todos os candidatos republicanos, melhor que Hillary, são as mesmas que apresentam esta a vencer as primárias do Partido Democrata. Vamos ver se será a melhor solução para travar os populistas republicanos.

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  5. Afinal a média do RCP também inclui o John Kasich:

    Kasich 47,7 % - Clinton 40,3%
    Sanders 43% - Kasich 42,5%

    Eu diria que, se John Kasich fosse o nomeado, os republicanos provavelmente ganhariam, e se fosse o Rubio, possivelmente ganhariam também.

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  6. «Note-se que a administração Clinton deixou o país com excedentes orçamentais».

    Sim, note-se (e desculpa se começo a ser chatinho ;-) ). O Clinton equilibrou o orçamento depois de os republicanos ganharem a maioria nas duas câmaras em 1994. Teve de negociar com eles e assim se equilibrou o orçamento. O mesmo se diga da reforma da segurança social, parte dela revogada pelo Obama. Se os democratas tivessem continuado na maioria, é duvidoso que tal tivesse sido conseguido.

    O presidente da comissão do orçamento da Câmara dos Representantes era, nada mais, nada menos, que o John Kasich, actual governador do Ohio e candidato presidencial.

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