quarta-feira, 2 de março de 2016

Je suis Charlie Hebdo, mais pas Henri Renard

Eu não sei se o livro do Henrique Raposo nos ensina alguma coisa sobre o Alentejo e os alentejanos, mas parece-me que nos deu uma lição sobre os portugueses: cultura democrática e pluralismo é coisa que escasseia em Portugal. E, com esta frase, começo também eu a sentir o vilipêndio, mas prossigo, explicando-me. Em causa, não está o conteúdo. Eu não li o livro, não sei o que diz, não sei em que tom o faz. Também não vi o vídeo do programa do Boucherie. Mas nada disso interessa porque eu sou pela liberdade de expressão. E ser pela liberdade de expressão significa que reconheço o direito à existência de todas as opiniões, mesmo as que considero abjectas. E, com coerência, também reconheço o direito à indignação provocada por tais opiniões. Apelar ao boicote ao livro? Muito bem. Querer que a venda do livro seja proibida? Muito mal e péssimo sintoma. Curiosamente, aposto que muitos dos signatários da petição para impedir a publicação de Alentejo Prometido tiveram fotografias de perfil facebookiano a dizer que eram o Charlie Hebdo. Tiros e petições são meios diferentes, mas partilham o fim, que é o de silenciar as opiniões que desagradam.

Em Portugal, ter uma opinião contrária a alguém facilmente se confunde com dizer mal dessa pessoa, estar contra ela. Dizer "o roxo é a cor mais bonita" torna-se sinónimo de afirmar que "quem prefere o vermelho é uma besta". A discussão é sempre pessoalizada [entendam o meu "sempre" como uma generalização hiperbolizada, por favor] e as ideias perdem o seu lugar. Mas mais. Parece haver uma confusão entre o que é uma opinião expressa e o que pretende ser factual. Se o roxo ser a cor mais bonita é coisa subjectiva - mas nem por isso impossível de discutir, apesar do que diz o ditado -, já o poder tranquilizante do verde tília remete para explicações neurológicas e evidência empírica. Sempre com a noção de que até os factos podem ser contestados (ou ainda andaríamos com o Sol a girar à nossa volta).

Neste Portugal que eu retrato, as escolhas ideológicas desapareceram e só sobraram as opções técnicas. E há as opções técnicas certas e as opções técnicas erradas. As opções técnicas certas são defendidas pelas pessoas que estão certas. As opções técnicas erradas são defendidas pelas pessoas que estão erradas. E as pessoas que estão erradas devem calar-se.

17 comentários:

  1. Tal como Henrique Raposo, a Sara confunde o Género Humano com o Manuel Germano, generaliza precipitadamente. O Alentejo e os alentejanos não cabem em duas ou três impressões pessoais dos filhos do êxodo de 60 que habitam as periferias de Lisboa. E 10 milhões de pessoas não se caracterizam pelas reacções espatafúrdias da meia dúzia que alimenta a vitimização de um qualquer artista de circo que vive de arrufos mediáticos. Aqui há de tudo.

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    1. Caro NG,
      Qualquer generalização não pretende negar o "aqui há de tudo". Obviamente, a descrição que eu fiz não é carapuço que todo o português enfie e lhe fique bem. Aliás, este blog e os colegas que nele escrevem atestam-no. Aqui cultiva-se o respeito pela diferença e aceita-se que nem todos pensamos do mesmo modo.
      O meu texto, embora inspirado pelos acontecimentos em torno do livro do Henrique Raposo, não resulta deles. Ou melhor, não resulta somente deles. Envolve a minha própria experiência pessoal, inclusivamente. Decorre das conversas de café e nos transportes públicos. Baseia-se no acompanhamento do debate político. Socorre-se dos comentários que leio nos jornais online. E a percepção que tenho é esta mesma: há pouca cultura democrática em Portugal, não pela elevada abstenção, mas pelas posições do dia-a-dia. Por exemplo, quantos portugueses acha que se sentem à vontade para, nos seus empregos, manifestar discordância relativamente a opções tomadas?!

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    2. É, Sara. Concordo que há franjas da população com cultura democrática diminuta. Mas acho esse exemplo do HR um bocado anedótico. Veja, por exemplo, como uma petição para silenciar José Sócrates na televisão, na altura, a única voz de contraditório consistente ao discurso político dominante, recebeu perto de 150 mil assinaturas. Mas isso não escandaliza ninguém nesta casa.

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    3. Está enganado. Não foi aqui, mas foi no facebook que me insurgi contra esse disparate. Um absurdo querer calar aquele traste.

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    4. Ah, foi no facebook. Aqui só ficaram para registo as pedradas que me atirou para tentar repelir destas paredes imaculadas a opinião de quem considera JS um bom Primeiro Ministro, vítima da expiação colectiva de frustrados e ignorantes. Bom, reconheço que nada apagou. Cumprimento-o por isso. De outras grandes salas do debate cívico português, por exemplo, o Insurgente e o Nada os dispõe à acção, já não não poderei dizer o mesmo. Vendo bem, a Sara tem razão. A falta de cultura democrática não é coisa só de povéu.

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    5. "Ah, foi no facebook."

      Sim, foi no FB.

      " Aqui só ficaram para registo as pedradas que me atirou para tentar repelir destas paredes imaculadas a opinião de quem considera JS um bom Primeiro Ministro vítima da expiação colectiva de frustrados e ignorantes"

      Sim, preferia que não usasse este blogue para defender um escroque daqueles. Mas nada posso fazer quanto a isso.

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    6. "Ah, foi no facebook."

      Mas se não gosta do FB, também neste blogue encontrará entradas, da minha autoria, a argumentar a favor de José Sócrates no que respeita aos abusos que sofreu com a prisão preventiva.

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    7. Felicito-o por isso. Para mim, no debate que é público, essa é a linha vermelha onde começa a decência da vida cívica portuguesa.

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    8. Caro NG,
      Se leu bem o meu primeiro parágrafo, há-de concluir que eu respeito a sua defesa de José Sócrates e respeito as críticas que o Luís faz a essa defesa e as críticas que o NG faz a essas críticas e por aí fora, ad aeternum, contando que se mantenha a boa educação.
      Quanto ao facto de ninguém nesta casa se ter escandalizado com a petição relativa a José Sócrates. Eu não tenho presente o teor dela, mas chamo a atenção de que a RTP é um canal público e isso pode fazer diferença. Mera hipótese, porque, como disse, não sei do que tratava, mas esse também não era o meu ponto. Falando por mim, posso dizer-lhe que as minhas indignações são tantas que não há tempo para me dedicar a cada uma delas. Portanto, não assuma, por exemplo, que a mutilação genital feminina é assunto que não me escandaliza só porque não me leu aqui sobre ele.

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  2. Eu vi/ouvi (e bem) o vídeo (5 minutos), consultei, em diagonal, algumas dezenas de comentários de base e de partilha no Facebook, li cuidadosamente as impressões de uma pessoa confiável que leu o livro, li, eu mesmo um brevíssimo extracto do mesmo, li duas petições inanes e, por alto, uma amostra de comentários dos seus subscritores ou do público. E, não menos, visitei a minha memória profunda para relembrar a razão de ter lido, há vários anos, e com agrado, alguns artigos "a tempo e a desmodo" pelos quais não voltei a ter curiosidade.

    Dado que, para mim, a retórica agressiva não queria dizer o que parecia a outros, nem a sua origem, cruzei mais alguns dados tendo percebido que a sua origem básica está no título seleccionado pelo editor de uma famosa publicação on-line, bem antes da entrevista lembrada o que, evidentemente, não se deve a Henrique Raposo.

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  3. Sara, olhe que o seu colega de blog Luís Gaspar escapa a essa caracterização: para ele, tudo é político, técnico é que é coisa inexistente. O que, claro está, pode ter as mesmas repercussões práticas de silenciamento.

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    1. Vera, não percebo porque tratas a Sara por "você". Olha que ela vive no estrangeiro e é uma tipa modernaça (com quem converso muito nos bastidores). Aposto que preferirá ser tratada por tu, não é Sara? Beijinhos às duas...

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    2. O problema das palavras é que significam coisas diferentes para pessoas diferentes :) Para mim tudo é político, mas acho que a minha deinição do que significa "político" seria diferente da tua.

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    3. A política deve vir sempre antes da técnica. A política tem sempre a ver visões e opções diferentes do que deve ser a comunidade ou sociedade em que vivemos. Por exemplo, quando de discute a construção de um aeroporto, primeiro é preciso discutir se há ou não coisas mais prioritárias para o país, se esse dinheiro não faria mais falta noutro lado. Mesmo a localização do aeroporto é política antes de ser técnica. Por exemplo, pode-se entender que deve ficar longe da capital para desenvolver uma região, mesmo não sendo essa a melhor opção em termos de gestão. Só depois de se decidir se o aeroporto é ou não uma prioridade, uma prioridade mais prioritária do que as outras prioridades, o local, etc. é que devem entrar os técnicos na conversa.

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    4. A economia normativa devia guiar a positiva. Mas o problema é que o que guia são os interesses pessoais de quem tem o poder de decidir e, havendo uma justiça ineficaz e um enquadramento legal inadequado, o país não consegue sair desta ratoeira.

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  4. Sim, Luís, tinha-me esquecido que isso das palavras significarem coisas diferentes para pessoas diferentes é especialmente verdade entre nós.
    Dizer que a política deve vir antes da técnica já pressupõe que política e técnica são coisas distintas. Algo que subscrevo. Mas digo como a Sara: há muita confusão entre as duas e acho que isso decorre de se ter diabolizado a ideologia. Para recorrer à metáfora das cores que ela usou. Eu posso contratar uma decoradora para me ajudar a escolher de que cor pintar a parede da sala. Dela o que se espera é que diga que cores vão cansar, quais as que transmitirão tranquilidade, qual o efeito que produzirão em termos de noção de espaço. Isso é técnico. Que eu prefira uma cor que me dê energia em vez de uma que me relaxe é uma opção pessoal. Para a analogia, política. Eu não acho que uma deva guiar a outra. Ambas me parecem ser importantes e acho absolutamente legítimo que a política não se submeta à técnica. Mas o inverso também é verdade e preocupa-me que digam às decoradoras "justifique-me que o amarelo é a cor certa para esta parede".

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