sexta-feira, 26 de agosto de 2016

Deixem-nas ser livres

Antes do mais, uma declaração. O que penso sobre isto não tem uma base racional. O que penso é uma ramificação do que senti quando vi as imagens de uma praia em França, onde uns polícias armados obrigaram uma mulher a despir o que trazia vestido, perante o olhar da filha pequena. O que penso sobre o assunto é basicamente o resultado de racionalizar o que senti, e o que senti foi que aquilo, aquela barbárie, não pode estar bem. O que quer que pensasse antes sobre esse assunto, ou outro qualquer, se não for compatível com o que senti ao ver aquelas imagens, também não pode estar lá muito bem.

Hoje, o Luís Aguiar-Conraria no mural dele deu o exemplo da escravatura. É um exemplo desafiante. O que fazer aos indivíduos que, no momento da sua libertação, preferem continuar a ser escravos? Ou, tirando dramatismo à questão, o que fazer se alguém estiver disposto a trabalhar à borla para outra pessoa? Devemos deixar? O que lhe respondi foi que devíamos fazer o que já fazemos, que é: nada. Um tipo, como bem sabemos, pode infelizmente trabalhar à borla. Mas não é legalmente obrigado a isso: pode sair quando quiser. Há pouco, o Luís mostrou-me, e não era difícil, que eu estava a ser incoerente, porque basicamente o que estava a dizer era incompatível com a defensa de um salário mínimo. E ele tem razão, estava a ser incoerente. Mais: eu defendo não só um salário mínimo, mas toda a kriptonite anti-liberal a que tenho direito, incluindo quotas de emprego para mulheres, tectos salariais para CEOs, e, bom, profissionalmente mal estaria se não defendesse uma série de regulações económicas que interferem com a liberdade de duas partes definirem inteiramente os termos de um acordo que as obrigue. 

Como resolver este aparente paradoxo? Novamente, o meu critério é simples: se o que penso não é compatível com o choque que senti ao ver aquelas imagens da praia, então não pode estar certo. E como eu acho difícil estar errado quando defendo que ninguém deve trabalhar para um empregador à borla, tem de haver aqui alguma forma de distinguir as situações. E há. O que é uma sorte, para mim. O que defendo é a regulação do poder entre partes que estão em condições desiguais. Defendo que uma empresa que produz eletricidade não a deve poder vender ao preço que bem entende, porque os consumidores não têm como comprá-la a mais ninguém. Defendo que um trabalhador não possa aceitar ser pago abaixo de um limiar mínimo, porque há o risco sério de ele não ter outra opção que não aceitá-lo. Mas não defendo que um membro do casal tenha de exigir pagamento por meter a louça na máquina ou ir deitar os miúdos. E porque é que não defendo isso? Ele não pode ser coagidos a fazer esse trabalho? Pode. Mas há uma fronteira que temos de definir, não é? O Estado não vai interferir em cada relação de poder. Mas deve interferir naquelas onde uma das partes, porque quer ou sem querer - argumentaria que é irrelevante -, não tem opção que não a de prescindir da sua liberdade. A única liberdade que acho não deve poder ser exercida é a de deixar de ser livre.

A relação da mulher com a cultura muçulmana é desigual. É óbvio. E em muitos países ela não tem opção que não a de deixar de ser livre. Mas isso não é verdade na sociedade francesa. Ela tem a opção de deixar o marido, se for o caso, e, se for chateada, tem a opção de ir à polícia. É verdade que pode haver toda uma porrada de razões pelas quais ela continua a usar a burka, e algumas podem não ser boas. Pode ser que nunca tenha tido auto-estima suficiente, ou conhecimento de que há uma outra realidade. Pode ter medo do inferno. Pode achar que é a única forma de ser acolhida na comunidade onde vive. Mas ela pode escolher uma vida inteiramente diferente, se assim quiser. A escolha de não ser livres, para ela, é inatingível. É que, ao fazer essa escolha, está a ser inteiramente livre - está a exercer a sua liberdade, sem a perder no caminho. A qualquer altura, pode mudar de ideias, e ninguém pode fazer nada que a impeça disso. É a beleza das sociedades onde há liberdade. Não ser livre não é uma opção. Ser livre é. Uma opção. Não pode ser obrigada a isso.  

Qualquer outra imposição exercida sobre ela terá de conviver com a imensa ironia de acharmos que podemos obrigar alguém a ser livre.

12 comentários:

  1. Luís, não vou comentar o fundo do seu texto, só umas pequenas observações sobre o seu primeiro parágrafo. Fui ver outra vez as fotografias para ter a certeza do que vou dizer:

    Não há filha pequena nenhuma nas fotografias. O Guardian descreve o que se vê nas fotografias (uma senhora sozinha) e conta outra história que se passou com uma senhora chamada Siam e os dois filhos pequenos. Mas o Daily Mail, esse sim, inventa a história de fio a pavio conjugando vários casos e estas fotografias. Foi esse artigo que eu vi primeiro e, provavelmente o Luís também. Muito eficaz, visivelmente.

    Não tira nem põe nada para a questão de fundo, claro. Mas não está lá filha pequena nenhuma.

    (Não é que eu seja particularmente desconfiada do mundo. Mas conheço a técnica mortífera do Daily Mail de outras histórias que segui em tempos)

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    1. Se assim foi, foi erro meu de análise. Retiro a parte da criança, então. Não afeta a substância, a meu ver.

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  2. "A relação da mulher com a cultura muçulmana é desigual. É óbvio. E em muitos países ela não tem opção que não a de deixar de ser livre. Mas isso não é verdade na sociedade francesa. Ela tem a opção de deixar o marido, se for o caso, e, se for chateada, tem a opção de ir à polícia."

    Isto que dizes não me parece nada incoerente. Mas, e foi este o corolário que retirei no meu artigo no Observador, isso implica que sejas contra que se trate a violência doméstica como crime público, ou não?

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    1. Este comentário foi removido pelo autor.

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    2. Sem querer substituir-me ao LF, digo que há mulheres que não depôem contra maridos que, comprovadamente, as espancaram ou maltrataram de outras maneiras. Ninguém pode fazer nada sobre isso, porque se trata do direito ao silêncio (DS) sobre o cônjuge.

      Ora, face a FACTOS como este alguns defendem que a Violência Doméstica (VD) deve deixar de ser crime público (CP) passando a depender de queixa dos ofendidos - crianças, homens, MULHERES, namorados/namoradas e velhas/os.

      Face aos MESMOS factos outros defendem que a VD deve continuar a ser CP, porque os danos daquela sobre os ofendidos são tão graves que acabam por ser quase irreparáveis - por exemplo nenhuma indemnização é suficiente. O que, no seu entender, NÃO é irreparável é o dano sobre a sociedade – dizem eles que o esquecimento do caso a prejudicaria devendo o Tribunal cuidar dela, condenando os criminosos mesmo que as suas vítimas queiram perdoá-los. Ora quer o LA-C, quer o LG defendem isto, digo eu.

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    3. Não acho que implique isso, Luís. Quanto muito, implicaria o sado-masoquismo não ser criminalizado, o que, acho eu, não é. Mas a violência doméstica não é desejada pela outra parte. É feito contra a vontade da vítima. Mesmo que a vítima preferisse não fazer queixa, a violência contra ela tem de ser punida.

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    4. "É feito contra a vontade da vítima. Mesmo que a vítima preferisse não fazer queixa, a violência contra ela tem de ser punida."

      Nesse caso porque é que nem toda a violência é crime público? Lamento, mas o motivo para que a violência doméstica seja crime público é mesmo por causa de se considerar que a mulher ao não apresentar queixa pode estar a ir contra a sua verdadeira vontade.

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  3. Luís, não irei tocar no fundo do seu post dado já o ter feito num comentário que acabei de escrever a outro post. Faço este comentário, porém, porque há duas coisas no seu escrito que me merecem algum reparo.

    O meu primeiro reparo refere-se ao seu primeiro parágrafo que, sinceramente, arrepiou-me. Nem sempre o que sentimos vai de encontro ao correcto para o maior bem. Todos somos humanos, todos nos comovemos com certas situações e circunstâncias. Eu próprio não sou nada mole e comovo-me muito facilmente, até. Olhe, vi um clip no youtube daquele miúdo há três ou quatro dias na ambulância em Aleppo e tive uma pena imensa dele e do que está a sofrer. Mas ter sentido isto levou-me a desligar a racionalidade? Claro que não. É que mesmo sem ver clips sei que há muitos milhares de miúdos mais em sítios bem piores do que este e em condições muito piores. Mas esses não aparecem na televisão nem no youtube. É, aliás, por isto que acho todo este circo montado em redor dos refugiados Sírios um insulto a todas as centenas de milhar de refugiados que há pelo mundo fora, muitos também da Síria, mas que estão em condições muitas vezes piores do que aqules que conseguem, ainda assim, alcançar a Europa. E, claro, embora muitas cenas destas me comovam, também não esqueço que deixar entrar gente em massa no ocidente tem impactos a vários niveis que têm que ser muito bem acautelados. Sob pena de estar a criar problemas muito mais graves para o futuro não muito longinquo, sequer. Em tudo na vida mas muito em particular em assuntos sensiveis como este, agir ou pensar os assuntos de forma emocional é receita certa para a asneira. Tudo isto tem que ser decidido de forma muito racional, muito ponderada, com pinças até. Algo nada compativel com deixar o coração meter-se nestes assuntos. Afinal - e contrariamente ao que diz - o que sentimos nem sempre é compativel com a posição racional atingida após estudo e ponderação. E é normal que não seja. A realidade é muito mais complexa, multi-facetada e dinâmica do que o coração pode absorver com uma imagem ou um clip feitos até especificamente para apelar à lagrimita fácil.

    O meu outro comentário tem a ver com o seu penúltimo parágrafo. Sim, é verdade que para os nossos olhos ocidentais a forma como a mulher é tratada nas culturas islâmicas afigura-se-nos ultrajante. Mas, Luís, experimente perguntar a uma mulher muçulmana conservadora, daquelas que vive num meio assim se ela o sente dessa forma. Surpreender-se-á com a resposta. E não é por falta de auto-estima ou por não conhecer outras realidades. É precisamente por ter valores e conceitos diferentes dos nossos e por conhecer e recusar outras realidades que não sente o uso até mesmo da burka como ultrajante ou insultuoso. Em várias sociedades islâmicas sentem-no como darem-se ao respeito. Para os ocidentais é muito dificil entender outros conceitos e modos de vida mas eles existem. Ao não os entenderem não percebem porque é que as coisas são assim e, pior, os danos que causam ao tentarem inverte-las.

    Não se entenda o meu parágrafo anterior como defesa do uso da burka ou seja lá do que for do género no espaço público na Europa ou nos EUA. Não o é, de todo. É, simplesmente, um alerta para não se cair no erro do bondoso escuteiro que tentou ajudar a velhota a atravessar a rua mas a boa senhora, realmente, não queria sequer atravessa-la. Um alerta para não se tentar implementar soluções totalmente absurdas dado o contexto específico das coisas e que acabam a criar ainda mais problemas.

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    1. Zuricher, claro que não devemos mover-nos apenas pela parte emocional mas, em casos extremos como este (onde há bons argumentos para cada lado), ajuda a recentrar a questão ter uma reação emocional tão forte, tão límpida, perante a manifestação prática do problema que analisamos.

      Quando ao segundo ponto, eu concordo que haja valores e conceitos diferentes. Aliás, se o Zuricher me desse uma lista dos valores e conceitos das sociedades onde vivemos, eu provavelmente não concordaria com uma parte deles. Mas acho que nada que sugeri vai contra a coexistência de vários valores diferentes dentro da mesma sociedade. Pelo contrário, certo?

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    2. O medo que eu tenho das reacções emocionais em pessoas que não têm, ou por personalidade ou por treino, a possibilidade de as desligar...

      Sim, valores diferentes podem existir numa mesma sociedade. Sempre e quando os das minorias não colidam com os das maiorias e sempre e quando as minorias não tentem sobrepôr os seus aos das maiorias. Quando alguma destas coisas sucede há imediatamente conflitos que podem escalar com relativa facilidade.

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  4. Acerca do salário mínimo, creio que o seu objetivo não é tanto proteger o trabalhador individual que aceitaria trabalhar por menos que ele, mas proteger o conjunto dos trabalhadores da concorrência uns dos outros (ou seja, obrigar os trabalhadores a funcionar como um cartel); não estou certo que o mesmo mecanismo se possa aplicar aos trajes femininos islâmicos, p.ex.

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    1. "creio que o seu objetivo não é tanto proteger o trabalhador individual que aceitaria trabalhar por menos que ele, mas proteger o conjunto dos trabalhadores da concorrência uns dos outros "

      Estamos a dizer o mesmo.

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