sexta-feira, 18 de dezembro de 2015

A banca americana

Vi, nos últimos dias, comentários de pessoas que acham ridículo que o estado assuma o risco da má gestão bancária e até empreste dinheiro a bancos falidos. Eu acho também ridículo a compensação dos CEOs dos bancos comerciais, quando o risco de má gestão é assumido pelos contribuintes, logo há um incentivo em fazer empréstimos arriscados que têm um retorno alto ou maximizam lucros no curto prazo, pois a gerência beneficia quando o retorno é alto, e chuta as perdas para os contribuintes quando a coisa corre mal. Já me disseram que os bancos americanos fazem exactamente o mesmo tipo de empréstimos que se faz em Portugal, o que não é totalmente verdade.

Conseguir um empréstimo através de um banco comercial, aqueles que recebem depósitos de pessoas normais, é difícil. Por exemplo, financiar uma casa nesses bancos acontece mais quando vendemos uma outra casa e ficamos com algum dinheiro para dar de entrada na casa que queremos comprar ou quando temos poupanças suficientes. Num banco que recebe depósitos, o normal é dar de entrada 20% do valor da casa, por exemplo. Um banco comercial americano é extremamente conservador e oferece taxas de hipotecas muito mais baixas porque são muito mais cuidadosos do que outros sítios. É por isso que o refinanciamento da hipoteca do Ben Bernanke foi rejeitado várias vezes. Para além disso, os bancos comerciais eram obrigados a ter boas reservas para minimizar problemas de corrida aos bancos.

Há empréstimos feitos por bancos comerciais em Portugal, com financiamento a 100% mais 10% para redecorar a casa, etc., que nunca seriam feitos por um banco comercial americano; poderiam ser feitos por uma empresa de hipotecas, que empacotam vários empréstimos para criar activos de investimento, mas nesse caso não haveria depósitos de pessoas comuns em risco directamente. Note-se que estes empréstimos, por serem mais arriscados eram usados para financiar pessoas que não tinham muito bom crédito, nem rendimentos muito altos, nem muitas poupanças, e alguns eram directamente assegurados pelo estado americano porque era uma forma de apoiar quem tinha pior situação económica e também quem comprava casa pela primeira vez. E mesmo assim, como se viu, o sistema falhou em 2008, nos EUA.

Uma história simplificada de algumas coisas que aconteceram em 2008:

Os bancos comerciais normais não falharam por causa destes empréstimos convencionais; os empréstimos convencionais começaram a falhar com o desemprego e a depreciação dos preços imobiliários causados pelo falhanço do mercado de empréstimos esotéricos. A falha do sistema bancário em 2008 veio desses empréstimos mais arriscados e, especialmente, porque as empresas que criavam esses empréstimos não observavam os critérios de diligência na avaliação de quem contraia um empréstimo. Desses empréstimos criaram-se activos derivados, que supostamente mitigavam o risco. Só que esse risco foi avaliado presumindo que se tratava de empréstimos menos esotéricos, onde havia um grande cuidado em seleccionar a qualidade das pessoas a quem se iria dar empréstimo. A aldrabice era passada às agências de rating e os activos eram mal classificados.

O que se fez, do ponto de vista analítico, foi usar dados de um tipo de população para se fazer inferência numa população de tipo diferente. Por exemplo, em medicina, seria o equivalente a testar um tratamento em porcos e dizer que os resultados se aplicavam a humanos directamente, sem se fazer nenhum estudo com humanos--isso iria causar muitos problemas em humanos porque o tratamento não tinha sido calibrado para humanos.

De volta à banca, esses activos derivados estavam em bancos de investimento e alguns bancos de investimento também eram bancos comerciais porque se repeliu, em 1999, parte do Glass-Steagall Act de 1933, que proibia que os bancos comerciais mantivessem negócios na área de investimento. O tamanho do problema e a promiscuidade entre a parte comercial e a parte de investimento contribuíram para os problemas nos bancos comerciais muito mais do que a má gestão de risco por parte da banca comercial pura.

6 comentários:

  1. Por acaso, ando a ler, neste momento o "after the music stopped", de Alan Blinder. A ideia com que fico é que, entre outras coisas, a catástrofe aconteceu porque os que julgavam estar a fazer gestão de risco estavam afinal a jogar num casino, sem o saber. Um bom exemplo disso foi o fartote de CDS vendidos pela AIG que tiveram que ser cobertos pelo contribuinte. 182 biliões de dólares para apagar o fogo na maior seguradora do mundo, onde supostamente trabalham os gestores de risco mais competentes do mercado, não é coisa pouca.

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  3. Outro exemplo, o Washington Mutual, um banco com 300 biliões de dólares de activos, carregado de hipotecas pôdres, foi para brejo em 2008.
    O Bernanke não conseguiu o empréstimo para a casa porque os bancos estão escaldados. Fosse no tempo do Greenspan ainda lhe tinham oferecido crédito para mais uns quadros.

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    1. Se fores ver a história de WaMu, irás ver que eles entraram na área de investimento através de aquisições em 2005 e expandiram essa área. Mais uma vez, o problema foi um banco comercial ter também actividades de investimento. Foi a parte de investimento que colocou em causa a parte comercial.

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  4. Excelente análise, Rita! Os problemas complexos não têm uma solução única, têm normalmente um rendilhado de soluções e remendos parciais, soluções essas que, por não serem "mágicas", se tornam difíceis de abordar e pouco "sexy" aos olhos da opinião pública. Mas neste caso há de facto uma solução quase mágica (embora de grande dificuldade de execução, claro): é imprescindível reintroduzir um Glass-Steagall Act versão 2. e arranjar uma forma de manter as operações mais especulativas inteiramente lícitas e legítimas mas ao mesmo tempo retirar o dinheiro da banca comercial dessas operações. E é bastante interessante que sejam os países ditos mais neoliberais (EUA e RU) que tenham tomado a dianteira dessa discussão (incluindo alguns dos mais proeminentes banqueiros e, se não estou em erro, o banqueiro que foi em grande medida responsável pela revogação da lei, cujo nome agora não me recordo).

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