Na sequência da recente viagem de António Costa à Índia pude mais uma vez
constatar a singularidade do complexo colonial português. A maioria dos países
ex-colonizadores sente uma culpa característica ou, no máximo, uma indiferença
relativamente às nações que no passado colonizou. Portugal, pelo contrário,
sente ainda hoje um estranho orgulho no seu império passado. O mito criado por
Salazar permanece vivo, de uma forma que ultrapassa a mudança de regimes ou
ideologias políticas.
O dito mito assentava em dois ou três pressupostos básicos. A suposta
capacidade inata e única dos Portugueses para colonizar. A ausência de racismo
no processo de colonização. A invenção do “mulato”. Salazar fez realmente muito bem o seu trabalho
de construção da identidade nacional. Apesar da existência de alguns laços,
especialmente económicos, com as colónias anteriores à instauração do Estado
Novo, o Império enquanto símbolo da soberania, da razão de ser do regime
político vigente, e da mitologia nacional aparece em toda a força com a
edificação do Estado Novo.
Olhemos para alguns números. Num ensaio sobre o 25 de Abril, onde aborda a
questão da descolonização, Vasco Pulido Valente cita números que apontam para
um total de 15.000 (quinze mil) habitantes de Angola e Moçambique com origem na
metrópole em 1910. No final da II Guerra Mundial, os números ascenderiam,
então, a 70.000 habitantes brancos com origem na metrópole. De acordo com o
autor, apenas com o início da guerra colonial houve, de facto, um aumento
substancial do número de brancos de origem Portuguesa nas colónias. Os motivos
para a ausência de um número alargado de colonos são, para o autor, bastante
prosaicos. Os Portugueses não pretendiam emigrar para a África Portuguesa (o
que correspondia a um degredo económico à época). Pretendiam, isso sim, emigrar
para países ricos, onde pudessem, naturalmente, alcançar os seus sonhos
materiais, e ver-se livres da pobreza abjeta que grassava em Portugal. Países
como o Brasil, primeiro, e, mais tarde, França ou Alemanha. E, recentemente, o
historiador económico Nuno Palma tem desenvolvido excelente trabalho económico,
referente sobretudo aos séculos anteriores, que corrobora no essencial esta
visão. O “império colonial português”
durou na verdade 20 anos (dos anos 50 aos anos 70), sendo que metade deste
tempo foi em guerra para não se desintegrar. Por outras palavras, nós nem
quando éramos metrópole éramos metrópole!
É, pois, frequente (e interessante) vermos peças jornalísticas – como as
que se repetiram durante a última viagem do primeiro-ministro – a aludirem à
forma como ainda hoje se sente de forma fortíssima (!) a presença portuguesa em
Goa, Macau, África e no Brasil.
As peças jornalísticas da semana passada foram especialmente ridículas. Uma
peça de uma estação de televisão aludia à emoção de se sentir Portugal do outro
lado do mundo, nas ruas de Goa. Logo de seguida, entrevistada uma prima de
António Costa, esta teve de falar em inglês, uma vez que não sabia português. O
semanário Expresso apresentou uma entrevista ao Ministro da Economia, Manuel
Caldeira Cabral, onde este referia o habitual estribilho que Portugal deveria
aproveitar estes fortíssimos laços culturais passados para se estabelecer como
porta de entrada do investimento indiano na Europa. Esta expressão não será
estranha para ninguém. Já todos ouvimos – inúmeras vezes – que Portugal deve aproveitar
estes “laços” coloniais passados para se posicionar como porta de entrada na
Europa para investidores Brasileiros, Angolanos, Indianos ou Chineses. Eu
própria cheguei a aprender na escola e a debitar em testes – em pleno século
XXI – que Portugal deveria aproveitar a sua posição atlântica e ser uma
plataforma giratória entre a CPLP e a UE. Este é, pois, o grande desígnio geopolítico
de Portugal!
No fundo, a expressão “porta de entrada” revela simplesmente que esta gente
acha que Portugal deve continuar a ter um papel de metrópole a cumprir, onde os
laços comerciais são exclusivos com Lisboa, que, depois, tirará benefícios de
revenda os produtos e serviços das colónias. Manuel Caldeira Cabral, entre
muitos outros, acha mesmo que um investidor milionário indiano – que não sabe
português (nem a prima do Costa sabe!) – quando quer investir na Europa (por
exemplo, na Polónia) deve primeiro fazer escala em Lisboa, em vez de ir
directamente onde quer. Dizem-me, “sim, mas no caso dos investidores
brasileiros ou angolanos, a língua é um facilitador importantíssimo”. Bem, eu
lamento desiludir os meus leitores, mas creio que isso é igualmente uma fantasia.
Olhemos para o caso do Brasil. De facto, é o país onde mais se fala
português. Mas, dada a sua independência tão mais anterior, percorreu uma
história independente de Portugal que os Portugueses parecem esquecer. Foi, por
exemplo, um fortíssimo destino de emigração de italianos, alemães, holandeses e
japoneses, os quais contribuíram para o enriquecimento cultural, económico e
social do país. Nas zonas mais ricas do país (nomeadamente nos estados do Sul),
existem comunidades completamente bilingues, que mantêm laços culturais e
económicos com os seus respectivos países de origem. Para além disso, qualquer
pessoa com experiência em grandes universidades Americanas, testemunhará o
enormíssimo número de Brasileiros que lá estudam e se preparam para tomar as
posições de destaque no seu país de origem.
Por tudo isto, a ideia de que um investidor da elite Brasileira virá a
Lisboa “picar o ponto”, e pedir a autorização à metrópole, para entrar no
mercado Europeu, é simplesmente risível. Digamos que um país com uma Justiça em
frangalhos, um código fiscal sem qualquer previsibilidade, impostos altos, e
uma população pouco educada é de qualquer utilidade apenas porque fala a mesma
língua parece-me no mínimo duvidoso.
Será isto culpa de uma propensão portuguesa para mitos, um trabalho de
propaganda do Estado Novo muito bem feito, uma ausência de “julgamento”
histórico e público do real papel das figuras e elites do Estado Novo (Adriano
Moreira passa hoje no espaço público Português por um “grande humanista”)? Falta ainda uma reflexão
nacional sobre a extensão real do racismo nas colónias (recomendo, a este
propósito, o magnífico livro de Isabela Figueiredo “Caderno de Memórias
Coloniais”). Não sei.