sexta-feira, 4 de dezembro de 2015

Trabalho em Progresso (TeP)

Quando o meu amigo António me desafiou a traduzir "I Sing the Body Electric" para português, convenci-me imediatamente que não conseguiria, mas também -- imediatamente -- tive dúvidas. Era demasiado comprido e, quando penso em mim, acho sempre que não sou disciplinada, dedicada, produtiva, paciente... Estou sempre aquém do meu ideal de pessoa e todos os dias, na minha cabeça, há uma pequena batalha: uma voz que diz "Só desperdiças tempo, não fazes nada!" e outra que diz "Agora vais fazer X, depois Y, e por fim Z." E no meio disto tudo habito eu.

Hoje, por impulso, decidi que talvez valesse a pena continuar a tradução que comecei. A razão principal é que as traduções desse poema que encontrei em português -- acho que todas elas em português do Brasil -- não me satisfizeram em nada. Quando leio, o som das coisas tem muita importância e tem de haver alguma facilidade em as palavras rolarem da língua. Sou muito lenta a falar e, às vezes, algumas palavras atrapalham-me. Então depois de viver tanto tempo fora de Portugal, mais atrapalhada fico...

Tenho uma boca muito pequena (quem diria?) e a minha anatomia não é a melhor para falar depressa. Um dos meus médicos achava que eu devia ter aulas de dicção porque a forma como eu uso a língua afecta a estabilidade dos meus dentes, mas eu resisti. Talvez seja por isso que eu leio muito devagar, mas o que sinto quando leio também conta. Quando leio em voz alta (especialmente poesia) frequentemente perco o interesse porque não sinto prazer no som daquilo que leio.

Em "I Sing the Body Electric" noto a parcimónia de Whitman na escolha das palavras e na construção gramatical; mas quando leio as traduções em português, essa qualidade não sobressai. Parece que se tentou fazer uma tradução literal, mas sem ter em conta a forma, o som, e o sentimento do original. E, por isso, continuo a fazer a minha. Se calhar não agradará a mais ninguém, mas só precisa de agradar a mim.

2
The love of the body of man or woman balks account, the body itself balks account,
That of the male is perfect, and that of the female is perfect

O amor ao corpo de homem ou mulher frustra a descrição, o próprio corpo frustra a descrição,
O do homem é perfeito, e o da mulher perfeito é.

The expression of the face balks account,
But the expression of a well-made man appears not only in his face,
It is in his limbs and joints also, it is curiously in the joints of his hips and wrists,
It is in his walk, the carriage of his neck, the flex of his waist and knees, dress does not hide him,
The strong sweet quality he has strikes through the cotton and broadcloth,
To see him pass conveys as much as the best poem, perhaps more,
You linger to see his back, and the back of his neck and shoulder-side.

A expressão do rosto frustra a descrição,
Mas a expressão de um homem bem-feito surge não só no seu rosto,
Está também nos seus membros e articulações, está curiosamente nas articulações das suas ancas e pulsos,
Está no seu andar, na postura do seu pescoço, na dobra da sua cintura e joelhos, as roupas não o escondem,
A forte qualidade doce que tem sobressai do algodão e casimira,
Vê-lo passar transmite tanto como quanto o melhor poema, talvez mais,
Demoramos ao Demoramo-nos para ver as suas costas, e o verso do seu pescoço e perfil do ombro.

2 comentários:

  1. "frustra a descrição" é um bocado difícil de pronunciar... que tal "desafia a descrição" ou "resiste à descrição" ?

    Achei particularmente feliz a tradução das últimas duas linhas

    "Vê-lo passar transmite tanto como o melhor poema, talvez mais,
    Demoramos ao ver as suas costas, e o verso do seu pescoço e perfil do ombro."

    Seria correcto mudar o "demoramos ao ver as suas costas" para "demoramo-nos para ver as suas costas" ?

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    Respostas
    1. Obrigada, Pedro. Por acaso a tradução de "balks" é um bocado complicada porque pode tanto ser visto como uma hesitação ou como uma paragem e foi por isso que eu optei por "frustra".

      Acho que a tua tradução da última linha é mais fiel ao espírito do poema do que a minha. Irei mudar a minha para a tua. Obrigada... :-)

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