domingo, 16 de outubro de 2016

Which noble words must a man write down?

No passado dia 13 de Outubro, a Academia Nobel surpreendeu uma boa parte do mundo ao atribuir o galardão máximo da Literatura a Robert Allen Zimmerman, mais conhecido por Bob Dylan. A explicação do Comité sueco foi, como é habitual, lacónica: "por ter criado novas formas de expressão poética no âmbito da grande tradição musical norte-americana”.
Não se trata, por certo, do primeiro poeta a ser distinguido, mas alguém mais conhecido como músico e que tem uma vida rica em desastres pessoais, de conversão ao Cristianismo e que tem marcado sucessivas gerações de apaixonados pela música. Logo se ouviram “velhos do Restelo” a caricaturar a honra, alvitrando que a Academia estaria a vulgarizar o Nobel. Discordo desta visão, embora não esteja absolutamente deliciado com a escolha. Creio, na verdade, que os membros do júri mostraram uma ímpar capacidade de ler o mundo e de compreender que prémios como este devem estar onde as pessoas se encontram, junto dos sentimentos universais que, não apenas escritos ou lidos, são amplificados por uma voz inconfundível.
Só quem nunca prestou a devida atenção às letras das músicas de Dylan pode ficar atónito com o prémio. Mesmo sem um trabalho exaustivo que cabe aos críticos literários, julgo não errar ao crismar Bob o “poeta das coisas comuns”, no sentido mais expedito e belo da expressão. Canta o amor, “essa palavra de quatro letras” (Love is Just a Four-Letter-Word, 1967), sem um tom lamechas, necessariamente perscrutando as suas várias dimensões. Mas Dylan é, sobretudo, um homem que vivenciou boa parte do século transacto com distanciamento crítico. Trouxe, como outros, para a poética e para a música, as duas Grandes Guerras (Masters of War, 1963), o capitalismo sem escrúpulos, a criminalidade (The Lonesome Death of Hattie Carroll, 1964), o poder de Wall Street (“Os homens de negócios bebem o meu vinho”, in: All Along the Watchtower, 1968). Mas também a crítica ao imobilismo, o incentivo a uma sociedade civil organizada e a funcionar como efectivo poder balanceador dos “oficiais” (“A maior parte do tempo/ Nada mudaria ainda que pudesse”, in: Most of the Time, 1989). É um feroz adepto de uma justiça independente de classes, o que nos EUA e em todo o mundo é um ideário sempre incompleto. As iniquidades, a fome, a desigualdade baseada na raça, no género (veja-se a referência à simplificação estereotipada e à classificação sacana em All I Really Want to Do, 1964), não lhe são indiferentes: “Posso sorrir na face da humanidade” (idem). Apetece repeti-lo: “Quantos anos têm as pessoas de existir/ Até lhes ser permitido serem livres?”.
O poeta é, ainda, um cantador do divino (de entre tantos, Changing the Guard, 1978: “Onde o bom pastor se lamenta/ Homens e mulheres desesperados dividem-se”), um crente na paz (T.V. Talkin’ Show, 1990). A sua ligação ao Cristianismo demonstra-se por um bom conhecimento bíblico: não há nenhum cabelo da tua cabeça que caia sem que Deus o saiba e autorize (Every Grain of Sand, 1981), a traição de Judas, a destruição do Templo, a ira do Senhor. Fá-lo sem qualquer mácula extremista, com um profundo humanismo. O poema Watered Down Love, 1981, é uma espécie de versão aggiornata de uma das mais belas passagens do Livro cristão: a ágape grega de S. Paulo aos Coríntios. Dylan revela o rosto humano do divino, um Deus compassivo e misericordioso, de bondade e clemente. Longe de tantas outras visões muito típicas no seu país de origem. Quem aborda estes temas não pode passar ao lado da dimensão temporal: “Se amanhã não fosse um tempo tão distante,/ Então a solidão nada significaria para ti” (Tomorrow is a Long Time, 1963). Interessante ainda é a personificação de um Deus que acompanha o homem nas maiores carnificinas como os conflitos bélicos declarados ou a Guerra Fria: em todos, Ele “está ao nosso lado” (With God on Our Side, 1963).
Da política traça um retrato fiel: arte de sobrevivência, de imposição pela posição ocupada, de troca de favores, mas também, de quando em vez, de nobilíssimo exercício do poder.
Por certo Bod Dylan não seria o escritor que mais mereceria receber o Nobel, certo que estes “merecimentos” são sempre muito relativos. Um pouco por todo o mundo, existem pessoas que escrevem com mais profundidade e riqueza, com um verdadeiro sobressalto intersticial. Tal não retira o mérito do actual Prémio, simplesmente obriga-nos, como sempre deve acontecer, a colocá-lo em perspectiva. Quantos escritores já não partiram sem nenhum reconhecimento da Academia sueca e, nem por isso, deixam de marcar, de forma indelével, o destino dos povos e aquele traço civilizacional que nos vai distinguindo de outros seres? Quem em Portugal não encontraria outros candidatos tão bem ou melhor posicionados, no mundo da Lusofilia e, claro está, no espaço linguístico-cultural de outros Estados?
Relativizemos a importância da medalha e das honras de Alfred Nobel. Todos sabemos que galardões como este têm sempre um significado político-social e económico, mas essa é a natureza última da natureza humana e, em especial, dos nossos tempos. As vendas costumam disparar, assim como as traduções, a cerimónia tem o seu quê de interessante e os discursos proferidos oscilam entre o enfadonho e inspirador. Neste último grupo, perdoe-se o orgulho nacional, está sem dúvida o do nosso Saramago.

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