Ao contrário do Luís, eu acho que o Ministério Público não está assim tão desamparado como se pensa. A primeira razão é que a sequência de eventos está correcta. A segunda razão é que isto tudo é medível: há dados sobre as taxas de juro, o número de leitores do blogue, a audiência do blogue, o número de posts que ligam a esse post, etc. É perfeitamente possível analisar os dados e ver se o post do NYT teve influência suficiente para mover o mercado. E é apenas isso que o Ministério Público tem de provar: que o post influenciou o mercado; é isso o que se chama manipular o mercado. Espero bem que o Ministério Público tenha feito o trabalho de casa antes de se lançar nesta aventura, mas isso é outra história.
A outra questão é a de intenção. É difícil provar malícia, mas pode-se mostrar que o Peter não agiu de forma imparcial. Acontece que o Peter não disse que tinha um interesse directo numa posição que beneficiaria se o mercado reagisse à informação que o Peter estava a dar ao mercado. Aqui entra a questão da ética por duas vias: a via do jornal e a via da indústria onde ele opera.
Qual é o papel do Peter quando escreve no The New York Times O que é que ele representa: os bons interesses do público, os interesses do jornal, os interesses da sua companhia, os interesses dos seus clientes na companhia? A não divulgação da posição que ele tinha dá a ideia de que não há qualquer conflito de interesse entre todas estas partes interessadas.
O público espera que quem escreva no The New York Times tenha bons níveis de reputação e de ética, a não divulgação da posição viola o princípio de confiança que os leitores põem no The New York Times. Podem dizer que há centenas de blogues que disseram o mesmo, mas um blogue que pertence a um orgão da imprensa deste calibre não é o blogue da esquina.
Para além disso, o jornal garante aos leitores um código de ética--eles até dizem que a integridade do jornal tem sido guardada durante mais de um século e os leitores devem esperar imparcialidade daquilo que lêem, a não ser que o jornal lhes dê informação em contrário. Ver ainda este documento do Times, de 2005, onde Bill Keller diz:
In addition to being a daily newspaper, we are a collection of magazines — actual magazines, and weekly sections that are magazine-like in their formats, their tone, their license to comment, not to mention their heavy reliance on freelance writers. My own view which I know is shared by the editors of the Magazine and the magazine-like sections — is that the standards of accuracy and fairness must be equally exacting across the contents of the paper.
Como o Peter não é jornalista, pode invocar desconhecimento destas questões, mas ele devia, no mínimo, ter informado o seu editor no NYT que ele era parte interessada, pois é essa a expectativa que o jornal cria nos leitores. Acho difícil de acreditar que alguém do calibre profissional dele não soubesse isto. Até porque, de certeza, que houve um acordo assinado onde este aspecto é focado.
Uma outra violação de ética a considerar é a do código de conduta de profissionais que agem na indústria financeira. Nos EUA, uma pessoa na posição do Peter é obrigado a ser certificado em ética, logo ele sabe bem que conflitos de interesse devem ser divulgados. Segundo o que li no Wall Street Journal, a empresa onde Boone trabalhava (Salute Capital Management, que tem sede nos EUA) fornecia informação acerca de oportunidades de investimento a Moore Capital, um outro hedge fund. Mais uma vez, é crítico o papel de Peter: será que ele pode ser visto como um analista de dívida?
No Código da FINRA (Financial Industry Regulatory Authority), a propósito de quem faz análise de instrumentos de dívida, lê-se o seguinte:
(4) A member must disclose in any debt research report at the time of publication or distribution of the report:(A) if the debt research analyst or a member of the debt research analyst's household has a financial interest in the debt or equity securities of the subject company (including, without limitation, any option, right, warrant, future, long or short position), and the nature of such interest;
[...]
(d) Disclosure in Public Appearances
(1) A debt research analyst must disclose in public appearances:
(A) if the debt research analyst or a member of the debt research analyst's household has a financial interest in the debt or equity securities of the subject company (including, without limitation, whether it consists of any option, right, warrant, future, long or short position), and the nature of such interest;
Fonte: FINRA Rules
No que diz respeito a divulgação de conflito de interesse, a indicação que a FINRA dá é que se deve sempre errar no sentido de divulgar essa informação. Isto até serveria os próprios interesses do Peter porque, mais tarde, ele poderia defender-se se alguém o acusasse de omitir informação de propósito. Mas ele não o fez e, não só escreveu aquele artigo no NYT, como escreveu outros noutros sítios como a Bloomberg. Isto não é o blogue da esquina...
Finalmente, a questão de Portugal ir ao ar independentemente do que Boone disse. Portugal tem hoje mais dívida do que tinha na altura e ainda não foi ao ar porque os prazos e as taxas de juro são suficientemente moderados (graças ao BCE) para o país conseguir gerir a sua dívida. Ou seja, o nível das taxas de juro é muito relevante--há um nível acima do qual Portugal não é viável. Mas se o mercado decidir que o país não é viável, a profecia auto-concretiza-se, ou seja, a direcção de causalidade é invertida.
P.S. Em resposta à questão de inside trading do Carlos no post do Luís, há uma escola de pensamento que acha que o inside trading cria mercados mais eficientes (ver aqui, por exemplo), mas eu acho isso discutível.