quinta-feira, 10 de março de 2016

A vida privada dos políticos

Numa crónica de 1993 intitulada “Figuras públicas”, Vasco Pulido Valente (VPV) relembra-nos que nos séculos XVIII e XIX dominava na política uma moral aristocrática. Aos políticos tolerava-se tudo, excepto a cobardia e a homossexualidade. Ninguém queria saber quantas amantes tinham ou se eram bêbados e corruptos. Fora a Inglaterra (mesmo aí houve excepções como Lloyd Georges), a “ladroeira” da classe política era geral e socialmente aceite. Tudo começou a mudar no século XX com a ascensão da moral pequeno-burgesa. À semelhança do bom chefe de família, os políticos deviam ser austeros, castos, sóbrios, honestos. É claro que os limites morais impostos aos políticos variam de época para época e nos últimos tempos variaram a um ritmo alucinante. Kennedy teve infindáveis amantes, todos os jornalistas sabiam disso e nenhum quis saber. Clinton quase se desgraçava por causa de uma estagiária.  
Como disse o Carlos Duarte num comentário a este a este post da Rita, não há nenhuma correlação entre a competência de um político e a sua vida privada. Basta, de facto, saber um bocadinho de história para chegar rapidamente a essa conclusão. Grandes bebedolas, promíscuos e até corruptos foram excelentes políticos e governantes. Ou não. Políticos de uma profunda honestidade e castidade trouxeram muitas vezes desgraças, tragédias e calamidades sem fim. Ou não. Significa isto que os políticos têm direito a uma vida privada como qualquer outro cidadão? Não, de acordo com VPV e eu subscrevo.
Primeiro, ao contrário do que alguns políticos parecem pensar, os media não são agências de publicidade, que só devem mostrar o lado “humano e positivo”. Quem se quer promover, mostrando, por exemplo, a família, a casa, as férias, não se pode depois queixar que, de caminho, os media andaram a vasculhar a ver se também descobriam esqueletos no armário. Quem com ferro mata, com ferro morre. Segundo, numa democracia representativa, o eleitorado tem o direito de saber tudo sobre quem os representa: convém assegurar que os poderes recebidos pelos eleitos para servir a sociedade e o Estado não são usados para benefício próprio. Terceiro, manter em segredo a vida íntima pode, ao contrário do que parece, ser fatal para um político e, pior, muito pior, constituir um perigo para a sociedade. Um criminoso pode usar informação secreta sobre certos “hábitos desviantes” de, por exemplo, um ministro importante para o chantagear e, assim. obter vantagens pessoais à custa do bem-comum. Por mais voltas que se dê, numa democracia representativa, um político tem de viver dentro dos limites morais do eleitorado, ainda que esses limites possam parecer absurdos a muitos. E, para nosso bem, para bem da sociedade, é fundamental que os media nos informem sobre as “transgressões” morais dos políticos. 

17 comentários:

  1. Ó José Carlos Alexandre, para quem tem interesse em fazer avaliação moral da intimidade de outras pessoas, a actividadade que melhor preenche a sua vocação talvez seja ministrar o sacramento da reconciliação num confessionário. O nosso bem colectivo precisa de quem dê a cara por propostas e as cumpra quando é escolhido. Se fôr um bandido condenado ou um santinho de altar pouca diferença faz.

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  2. Não consigo concordar com nada disto.
    Não somos seres infantis que precisam de acreditar que o "paizinho" é perfeito. Ninguém é perfeito, nem sequer os santos (andam para aí a dizer umas coisas da madre Teresa e também do papa João Paulo II...)
    Uma pessoa que queira servir o seu país na Política não deve ser obrigada a ter uma vida privada absolutamente limpa e sem mancha, e não deve ser sujeita à devassa.

    Também não poria toda a responsabilidade no lado das escolhas do político. É certo que há quem use a vida privada para ter mais-valias políticas (o que está errado!), mas também é certo que casamentos, filhos, exibições de vidas privadas felizes aumentam o volume de vendas. E exibições de vidas privadas infelizes vendem ainda mais. Há a responsabilidade do político que entra nesse jogo, mas também há um negócio do lado do "jornalismo", baseado na lógica do big brother, que é muito nocivo para o país.

    Quanto ao terceiro ponto da argumentação: para não correr o risco de ser vítima da chantagem de revelar algo que ele quer esconder, o político deve revelar tudo o que quer esconder?!
    Mais lógico seria punir o chantagista com uma pena exemplar, para deixar claro que ninguém tem o direito de fazer chantagem revelando factos da vida privada de cada um.

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    1. Helena,
      Atenção, pessoalmente estou-me nas tintas, por exemplo, para a vida sexual dos políticos, não me interessa mesmo nada. Mas isso não interessa nada para o caso, o que interessa são os limites morais de uma sociedade em cada época, ou melhor, em cada momento. E os políticos têm a obrigação de saber quais são esses limites. Por exemplo, não há muito tempo quiseram crucificar o Passos Coelho porque devia 5 mil euros à segurança social. Ora, 10, 15 anos antes ninguém em Portugal se interessaria por um pormenor desses, mas agora há muita gente que se interessa - com certeza essa maior sensibilidade do povo português à corrupção e a esses "pequenos desvios" dos políticos deriva da crise e da austeridade. Deveriam os jornalistas ter ignorado a dívida do primeiro-ministro? A minha resposta é não. Também acho interessante esse discurso de acusação que diz que os jornalistas querem é vender papel, como se isso fosse mais condenável do que querer "caçar votos". Aliás, é bom que os media vendam porque é a única maneira de assegurarem a sua independência em relação ao poder político e a outros poderes e não serem facilmente silenciados quando as notícias não interessam aos poderosos. Sobre condenar os chantagistas. Com certeza que sim, mas isso também não anula nada do que eu disse. Não quero correr o risco de ficar dependente da coragem do político chantageado em denunciar o chantagista.

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    2. A Helena chegou para pôr ordem nesta casa.
      Os limites morais da actuação de um político são a fidelidade ao projecto que leva a votos, incluindo a coerência da sua vida pública com as propostas que defende (por exemplo, é de interesse público conhecer as dívidas ao Estado do político que defende penhoras robotizadas dos cidadãos que as têm). É imoral uma sociedade que procura nessa actuação outros limites morais, ou tem uma moral que não presta para nada.

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    3. Oh, diabo, ainda só aqui estou há uma semana e já me querem promover a mestre-escola?!
      Deixe-me sossegadinha aqui no fim da fila, NG, que eu não quero arranjar sarilhos com os colegas. :)
      Quanto ao mais: concordo consigo.

      José Carlos Alexandre,
      o seu post é sobre a vida privada dos políticos. Dívidas à segurança social pertencem a outra categoria (e permutas de propriedades de valor diferente, para não pagar imposto, também; idem para "ajudas de custo" que mais parecem avenças por sabe-se lá que serviços...).
      Mesmo que a sociedade mude, e esteja mais atenta ao comportamento dos políticos, parece-me que não temos de misturar tudo - vida privada (relações, práticas sexuais, etc.) é uma coisa, práticas ilegais ou criminosas (desde fuga aos impostos até abuso sexual) são outra.

      Sobre a perversão de jornais que querem é vender: entre o jornalista escrever o que vende bem no mercado, e escrever às ordens do poder político, venha o diabo e escolha...
      Não vou desenvolver a comparação com a caça aos votos, porque nunca mais saíamos daqui. Mas mantenho: um jornal que se orienta por uma lógica de mercado e não hesita em furar qualquer limite de legalidade ou ética para o fazer, é um jornal que está a faltar à sua responsabilidade primordial de esteio da Democracia. Jornais a alimentar o mirone que há em cada um de nós?! Não, obrigada.

      Quanto ao chantagista: decididamente, tenho a atracção do caminho mais difícil. Odeio confissões públicas. Odeio devassas. Preferia que houvesse penas extremamente duras para os chantagistas, e um acordo entre os meios de comunicação social para que não se dê eco a essa gente, e para proteger a vítima da chantagem. Parece-me impraticável eu ser obrigada a confessar tudo o que fiz e não devia ter feito, desde que nasci até hoje, antes de assumir um cargo político, só para não correr o risco de ficar nas mãos de um chantagista.

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    4. As fronteiras da vida privada não são claras, nem fixas. As fronteiras que a Helena e o NG traçam são arbitrárias e dependem de sociedade para sociedade e de época para época. Esse é um dos meus pontos. Os políticos não podem é ignorá-las, sob pena de caírem em desgraça. Não tenho nenhuma simpatia pela imprensa dita sensacionalista. Murdoch fez a sua fortuna com "revelações" sobre celebridades. A "modernização" traz destas coisas. E não há nenhuma razão para acreditar que há mais mentecaptos em Inglaterra que em Portugal. Apesar de existir este tipo de imprensa, sou contra qualquer lei da rolha sob o argumento de protecção da privacidade de celebridades ou dos políticos em particular. Penso que no meu post explico porquê. Parece-me um exagero querer fazer em particular dos políticos vítimas dos jornalistas. A grande vítima dos media é o povo anónimo, que se por azar for apanhado num escândalo ou num crime qualquer (estão sempre a aparecer) não tem meios para se defender e não constitui qualquer perigo ou ameaça para os meios de comunicação. Prefiro mil vezes o jornalista que escreve para o mercado do que aquele que escreve às ordens dos políticos, este em bom rigor nem se devia chamar jornalista. Os jornalistas interessam-se por aquilo que pensam que pode interessar aos seus leitores e, nesse sentido, nenhum é completamente insensível ao mercado - ou, pelo menos, nenhum diretor de um media pode ser insensível ao mercado, a menos que não importe de ir à falência.

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    5. Já agora, pergunto ao NG se faz parte da vida privada de um político, na qual ninguém deve meter o bedelho, um ex-primeiro-ministro receber centenas de milhares (ou milhões) de euros de um amigo que esteve envolvido em mais de 20 negócios com o Estado no tempo em que o primeiro exercia funções governativas? Atendendo ao historial dos seus comentários, presumo que acha que isso é vida privada e que só interessa aos visados. Pois é, discordo e muitos milhões de portugueses devem achar o mesmo que eu. Como vê, as coisas não são tão simples. Solução? Os media que informem as pessoas e as pessoas que decidam. Se houver abusos dos media, existem tribunais e geralmente os poderosos têm dinheiro para bons advogados. Não se pode é criar uma lei geral da rolha. Tem de se analisar caso a caso. Não há outra solução numa sociedade democrática.

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    6. Interessa ao público saber se um político em funções tomou alguma decisão para benefício próprio directo e ilícito. Para isso, o Estado dispõe de orgãos de investigação criminal e juízes que recebem salários acima da média, alguns acima até do próprio Primeiro Ministro, para identificar com contornos precisos esses actos, formular uma acusação e submetê-la ao escrutínio público com a respectiva defesa. Passar anos e anos a atirar insinuações e construções romanceadas para orgãos de propaganda política, que alguns chamam jornais, anulando o efeito social de qualquer decisão em julgamento, torna a sua função dispensável. O facto de existirem amigos que emprestam dinheiro legal a outros amigos interessa apenas aos invejosos.

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    7. As trafulhices que desgraçaram Nixon parecem uma brincadeira de crianças quando comparadas com as enormes ilegalidades cometidas pela administração Reagan ou com as aldrabices na invasão do Iraque por Bush. Nixon hoje continua a ser um vilão da política americana e Reagan tornou-se uma referência. Lá está, Nixon, que muitos acham que foi um bom Presidente - um visionário até, para alguns - teve azar, foi apanhado numa época diferente da de Reagan, muito menos tolerante para esses abusos. Os jornalistas, em ambos os casos, cumpriram o seu dever: informaram o público e o público teve julgamentos diferentes. Sócrates, independentemente de ser ou não culpado, foi imprudente e teve azar. Azar, porque com a crise, que muita gente associa à sua pessoa, os níveis de tolerância dos portugueses baixaram dramaticamente em relação a casos de corrupção, negócios e transacções obscuras, pequenos desvios, pequenas falhas (como a de Passos Coelho à segurança social, mesmo quando essa falha é comum a centenas de milhares ou milhões de portugueses), compadrios, etc. Sócrates foi imprudente porque jamais devia ter aceitado um centimo que fosse de uma amigo envolvido em negócios de milhões com o Estado e porque decidiu viver à grande e à francesa enquanto a maioria dos portugueses penava. Lamento muito, mas todos estes factos merecem ser notícia. Os tribunais que julguem os aspectos legais, e cada um de nós que julgue Sócrates politica e moralmente

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    8. JCA, azar têm os desgraçados que atribuem os efeitos da maior crise financeira global dos últimos anos a uma pessoa, e aliviam a sua ignorância e frustração no vilipendio da sua figura. Essa expiação infantil, momentaneamente, pode iludir as consequências catastróficas de o ter deixado sozinho a bater-se contra a adversidade, mas creio que a história fará outro julgamento. Por exemplo, é impossível ouvir falar em mais um recorde de produção e exportação de electricidade de fontes renováveis, em Portugal, como foi anunciado esta semana, sem associar o nome Sócrates. São esse género de decisões que afectam o curso de um país. Não o lugar onde um estudante toma o pequeno almoço ou a relação com os seus amigos. O sucesso comercial dessas coscuvilhices do CM serão documentos importantes para ajuizar a alienaçao moral de uma sociedade que assistiu à violação do direito à privacidade como ferramenta de manipulação política.

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    9. Ouvi dizer que a CMTV está a transmitir e a comentar na jocosidade gravações de interrogatórios a JS, num processo que sequer tem acusação formulada. Acho sensacional que gente ilustrada, até Professores universitários, em Portugal, 2016, não se indigne, e até apoie, uma monstruosidade destas. Sem o Processo Sócrates não saberia como está pôdre a democracia do meu país.

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  3. "Prefiro mil vezes o jornalista que escreve para o mercado do que aquele que escreve às ordens dos políticos"

    Eu prefiro ter jornalistas que tentam dar notícias e políticos que tentam ganhar votos pela livre escolha das suas propostas. Políticos que procuram atingir os seus objectivos travestindo-se de jornalistas para manipular a informação, de modo a prejudicar os seus inimigos, é um sinal de imaturidade cívica da sociedade.

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    1. Eu acho um sinal de imaturidade ter políticos que não servem o povo, ou seja, não salvaguardam os interesses de quem lhes paga os salários, mas o povo deve agir de forma magnânima e olhar para o lado quando há prevaricação na vida privada dos políticos. Foram os políticos que decidiram prevaricar, logo devem estar dispostos a arcar com as consequências. Um povo magnânimo sujeito a políticos prevaricadores apenas convida a que mais prevaricadores cheguem ao poder.

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    2. Não. Um povo que se alivia a atirar pedras a quem se expõe corre o risco é de não ter ninguém capaz que se chegue à frente. Só os loucos.

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    3. Quando se critica o comportamento privado dos políticos está a fazer-se um julgamento sobre o seu carácter. Isso é muito importante e pesa também nas decisões de eleitorados como o americano. Não se vota apenas nas ideias e projectos do candidato; vota-se também no seu carácter. Senão cai-se na atitude brasileira do "rouba, mas faz obra" (e estamos a ver onde isso está a levar o Brasil, já agora).

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  4. Por fim, esqueci-me de escrever antes um pormenor relativo a um comentário da Helena Araújo. Diz a Helena que as dívidas à segurança social do Passos Coelho não pertencem à vida privada, pertencem a outra categoria qualquer. Muito bem. E eu pergunto à Helena Araújo: se por acaso alguém tivesse acesso aos seus rendimentos ou descobrisse uma pequena falha fiscal sua (tipo a do Passos Coelho, presumivelmente resultado de uma distracção) e publicasse essa informação aqui no blogue, não consideraria isso uma intromissão intolerável na sua vida privada? Presumo que sim, eu pelo menos consideraria. Ora isso só confirma a tese de que os políticos não têm direito a uma vida privada como qualquer outros cidadão.

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