terça-feira, 4 de outubro de 2016

A disputa transatlântica

Os EUA vão multar o Deutsche Bank devido ao papel que teve na crise financeira de 2008, pois foi um dos bancos que andou a vender MBS (mortgage-backed securities). Parte do combustível que alimentou a crise do subprime veio da Europa porque muitos bancos europeus queriam os retornos das MBS, dado que presumiam que o risco era pequeno: se as coisas fossem ao ar contavam com o governo americano os amparar. Por enquanto, não se sabe muito bem quanto irá ser o valor final da multa que o Deutsche Bank terá de pagar; houve um número astronómico anunciado ($14 mil milhões), mas isso irá ser negociado -- o número de ontem já era $5,4 mil milhões.

Mas não é tudo. O Deutsche Bank está também a ser investigado por outra razão pelo Departamento de Justiça dos EUA e pela Financial Conduct Authority do Reino Unido: a agência do banco em Moscovo ajudou à fuga de capital da Rússia através de "mirror trades":
"A company would buy securities from Deutsche Bank in Moscow for rubles at the same time as another entity owned by the same people in an offshore place like Cyprus, would sell the same shares for dollars via Deutsche Bank’s London office. The shares would then be transferred between the entities, completing the circle. The trades spirited money out of Russia at $10 million to $15 million a clip, according to the report. The end-users of the service weren’t revealed. Mirror trades, which aren’t illegal, can be used to aid money laundering and tax avoidance, or to violate sanctions."

Fonte: Bloomberg

Onde estão as autoridades da União Europeia? O banco é alemão, devia ser regulado pelo BCE e pelo Bundesbank, mas quem anda a investigar estas transacções, para ver se estão relacionadas com lavagem de dinheiro ou fugas a impostos, são as autoridades americanas e britânicas. (Mas não é o único banco em sarilhos. Neste momento, está a desvendar-se o escândalo do Wells Fargo, em que os empregados do banco eram incentivados a vender a todo o custo e acabaram por criar contas falsas e abrir cartões de crédito não autorizados só para gerar receita e satisfazer as suas quotas. E a Morgan Stanley, uma multinacional financeira, sofre do mesmo mal... Ambos estão a ser investigados pelas autoridades americanas.)

Disse Willem Buiter na Bloomberg Surveillance*, na Sexta-feira passada, que, neste momento, se trava uma "disputa transatlântica" em que as autoridades americanas querem que os bancos tenham reservas de capital bem apertadas, mas as autoridades europeias preferem algo mais relaxado. Porquê a diferença de preferência? Porque os EUA crescem e estão confortáveis com um certo nível de risco controlado e por isso os seus bancos têm reservas mais altas do que os bancos europeus. A União Europeia está estagnada e não tem grandes perspectivas de crescimento, logo pressupõe-se que aumentar as reservas bancárias retiraria dinheiro da economia o que agravaria a estagnação; mas há também o risco de, outra vez, o dinheiro sair da economia de outra forma: os bancos europeus canalizarem dinheiro para os EUA porque oferece melhor rentabilidade, o que aumenta o risco para a economia americana e pode alimentar outra crise financeira porque os bancos europeus não têm reservas para aguentar estarem expostos a muito risco -- é esse o medo das autoridades americanas.

*Se ouvem podcasts, aconselho vivamente o Bloomberg Surveillance; é diário e dura 30 minutos.

5 comentários:

  1. Há muito tempo que o sistema regulatório-judicial americano se transformou numa gigantesca máquina de extorsão, lubrificada por comissões milionárias às casas de advogacia, disparando a tudo o que mexe dentro e fora de portas. Note-se que a maioria destas penalizações aos bancos não são propriamente multas mas apenas montantes negociados para interromper investigações e retirar processos do tribunal. Para qualquer pessoa de bem, os bancos que operaram produtos financeiros tóxicos são tão culpados da sua deflagração como as autoridades de regulação cuja razão de ser era precisamente impedir a sua existência. Continuando a subir a este ritmo, o risco litigioso nos EUA irá tornar-se um poderoso repelente de investimento.

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    1. Não percebi. Então o melhor era os bancos fazerem o que querem e as autoridades americanas não fazerem nada para não aumentar o risco litigioso? Nos EUA a facilidade de litigar serve mesmo para desencorajar maus comportamentos. Parece que o NG acha bem que o Deutsche Bank venha para os EUA fazer o que quer...

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    2. O Deutshe Bank foi para os EUA fazer o que as autoridades deixaram. Algumas dessas próprias autoridades já reconheceram que um dos principais factores da eclosão da crise foi a profusão e ineficácia das entidades de supervisão (FED, FDIC, FOMC, FHA, OTC, OTS, SEC,...). Convidam para o jantar, passam uma rasteira e, com o nariz do convidado ainda a sangrar, obrigam-no a pagar a porcelana fina quebrada.
      Depois tem a questão dos critérios. O anúncio de multas que num dia são 15 biliões, noutro dia 5 biliões, noutro dia poderão nem existir, significa que a sua aplicação é arbitrária e com severidade ilimitada.
      Os europeus, os argentinos, os brasileiros, e muitas empresas americanas, comem e calam. Vamos ver o que esta cultura de litigiosidade consegue, agora, ao meter-se com a Arábia Saudita.

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  2. "Onde estão as autoridades da União Europeia? O banco é alemão, devia ser regulado pelo BCE e pelo Bundesbank, mas quem anda a investigar estas transacções, para ver se estão relacionadas com lavagem de dinheiro ou fugas a impostos, são as autoridades americanas e britânicas."

    Isto do meu ponto de vista é que é o ponto mais importante para os portugueses. A desigualdade de tratamento entre uma empresa alemã (deutsche Bank) e empresas portuguesas como o BES- Novo Banco, Banif etc pelas entidades europeias. Os níveis de exigência não são minimamente comparáveis.
    Entretanto o BCE/Comissão Europeia/Autoridades da Concorrência continuam a favorecer a criação de mais um banco demasiado grande para falhar (too big too fail - TBTF) o Santander. Acho incrível como é possível a Autoridade da Concorrência Portuguesa autorizar a OPA do Santander ao BPI. Ninguém fala excessiva concentração bancária em Portugal.

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  3. É um facto notório que a UE (em comparação com os EUA) tem estado atrasada no "julgamento" de crimes financeiros. A ver vamos como é que irão lidar com as "transações ao segundo".

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