sexta-feira, 22 de maio de 2015

Risco de SIDA na população portuguesa

As pessoas têm uma percepção errada de análise de dados. Análise de dados e estatística não nos dizem tudo o que sabemos, dizem-nos os limites do que sabemos e identificam muitas coisas que ainda não sabemos. Ou seja, em vez de responder a todas as perguntas, muitas vezes, a análise de dados levanta ainda mais perguntas. É por isso que no fim dos artigos científicos há uma secção onde se identificam os limites do estudo e o potencial para continuar a estudar.

Neste caso do SIDA e dos homossexuais, estão a usar-se pontos para construir tendências: tenta-se responder a um problema dinâmico usando análise estática. Foi por isso que Portugal acabou na bancarrota, foi por isso que a crise sub-prime estoirou. Já aprenderam a lição? Não, claro que não, continuamos na mesma como a lesma.

Porque é que o VIH é mais prevalente nos homossexuais? Por duas razões: (1) no passado este segmento da população tinha comportamentos mais arriscados e o vírus espalhou-se com mais rapidez; (2) entretanto encontraram-se tecnologias que permitem gerir a doença e a taxa de sobrevivência de quem é seropositivo aumentou.

O que é que isto quer dizer? Quer dizer que se estes dois factores mudarem, o nível de risco de contágio na população homossexual fica diferente. Que grande surpresa! Reparem, também, que à medida que o tempo passa, os homossexuais seropositivos mais velhos morrem e as gerações mais jovens não têm tanta prevalência de VIH, logo o número de portadores do vírus tem tendência a diminuir nos homossexuais. Mas porquê, ó Rita, sua maluca?

Então e o que é que mudou, perguntais vós? Mudaram os comportamentos de risco. Hoje em dia, o virus do SIDA espalha-se mais rapidamente na população heterossexual. Não acreditam? Leiam com os vossos próprios olhos este relatório das Nações Unidas de 2010, onde se estuda o vírus do SIDA nos países de língua oficial portuguesa. Diz lá, na página 101, o seguinte:

Do número total de infecções reportadas, foram reportados em

  • homossexuais: 1983-2007, 13%; 2006-2007: 9%,
  • heterossexuais: 1983-2007, 35%; 2006-2007: 44%,
  • consumidores de drogas injectáveis: 1983-2007, 47%; 2006-2007: 34%,
  • transmissão mãe-filho: 2006-2007: < 0,2%.
Do número total de casos assintomáticos de infecção VIH, foram reportados em
  • relações homem-homem: 1983-2007: 11%; 2006-2007: 19%.
  • em consumidores de drogas injectáveis: 1983-2007: 42%; 2006-2007: 19%.
  • relações heterossexuais: 1983-2007: 42%; 2006-2007: 60%.
  • transmissão mãe-filho: 1983-2007: 0,8%; 2006-2007: 0.9%

Depois, o relatório tem esta pérola:

A via heterossexual é o modo de transmissão mais freqüente, conforme mostra o gráfico 5. Outras vias de transmissão importantes são: por meio do compartilhamento de instrumentos para o uso de drogas injetáveis e a transmissão sexual entre homens que fazem sexo com homens. Até o ano de 2003, a transmissão do VIH pelo uso de drogas injetáveis foi o modo de transmissão mais freqüente (Gráfico 6).

Ou seja, percebem agora que o problema é dinâmico e não estático? Como se verifica ao ler o relatório, o nível de risco está a crescer nos heterossexuais e a diminuir nos homossexuais. O Instituto Português de Sangue acha por bem eliminar o grupo onde o risco desce e voltar a associar o VIH a homossexuais, quando devia estar a despender mais esforço em diminuir o risco nos heterossexuais. Como é que ao eliminar o grupo onde o risco diminui mais depressa se acaba com um risco total mais baixo? É pá, eu tenho dificuldades em fazer contas de cabeça, deve ser isso a razão porque isto não computa na minha cabeça... Porque é que vocês se admiram de Portugal ser um país pobre? Quem toma decisões pobres não costuma acabar rico.

Mas as coisas ainda são muito mais engraçadas do que isto! É que numa dissertação de 2003 identificaram-se os comportamentos sexuais dos jovens portugueses para avaliar o risco de VIH e, surpresa, ricos! Os jovens são muito descuidados. Eram uns malandrecos há 12 anos, acham que agora estão mais atinadinhos? Então eles até fazem canções sobre "Hoje ficas cá em casa, uma vez não são vezes." Para onde é que ela vai as outras vezes, meus amores?

Então diz a dissertação a propósito do SIDA que:

Verificámos que 74,4% dos adolescentes do meio não urbano adoptam um comportamento de risco, sendo o valor de 71,2% para os adolescentes do meio urbano. De salientar que 28,8% dos adolescentes do meio urbano têm um comportamento preventivo sendo este valor de 25,6% para os adolescentes do meio não urbano.
[...]
Verificámos que 90,6% dos adolescentes do meio urbano têm atitudes de risco, sendo este valor de 83,3% para os adolescentes do meio não urbano. De salientar que 16,7% dos adolescentes do meio não urbano têm atitudes preventivas, sendo este valor de 9,5% para os adolescentes do meio urbano.
[...]
Face aos resultados observados e da análise efectuada, é urgente uma maior contribuição de todos na prevenção da SIDA, proporcionando uma informação adequada e persistente, que permita aos adolescentes optar por estilos de vida mais saudáveis.

Viva Portugal! Somos geniais, vamos ser ricos com probabilidade 100%. Já fizemos a análise de dados, está tudo certinho...

20 comentários:

  1. A dinâmica é importante, mas o ponto de partida também é. Imagina que numa dada população a taxa de prevalência de HIV é 100%. Nessa população a taxa de novas infecções será de 0%. E, no entanto, é óbvio que se alargares a essa população a dádiva de sangue estás a aumentar o risco e não a diminuir.
    Já não deve ter mais tempo para elaborar, mas poderei voltar mais tarde.
    De qualquer forma, estamos de acordo no essencial. Isto é um problema dinâmico e não estático.

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    1. Dois pontos: (1) tu nunca tiveste 100% de prevalência de VIH nos homossexuais portugueses; e (2) eu não concordo que mesmo nesse caso a taxa de novas infecções fosse zero porque tu tens um fluxo de pessoas novas a entrar no grupo dos homossexuais. Todos os anos tu tens virgens homossexuais que têm sexo pela primeira vez e seriam expostos à doença, logo seria difícil a taxa de contaminação ser zero mesmo na situação que descreves.

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  2. E não se esqueça do tamanho da população.

    Admitindo (e estas são estimativas MUITO por alto da ILGA) que 10% da população adulta é homossexual, com uma distribuição igual para homens e mulheres, tem 5% de população masculina homossexual. Vamos admitir (outra vez, estimando muito por cima) que é toda sexualmente activa. Ou seja, a população MSM (male sex with other male) é 20 vezes inferior à geral. Em termos de taxa de contágio, é equivalente UM contágio MSM a 20 contágios "outros". Pelas taxas que apresenta (e eu da última vez que discuti isto, discuti com base em números absolutos - até pelos motivos indicados pelo LA-C), o contágio continua a ser mais prevalente (tendo em conta a população-base) entre o grupo MSM.

    O Instituto Português do Sangue não tem que se preocupar com o risco de crescimento das infecções VIH (isso é com a Comissão de Luta contra a Sida e o Instituto Dr. Ricardo Jorge). Tem, sim, que se preocupar com o risco de transmissão do VIH através de colheita de sangue contaminado. E aí os factores de risco são estáticos. A cada momento (vamos admitir em cada ano), qual é o risco de alguém que teve contacto sexual com outro homem estar infectado? E o risco de alguém que não teve? E de quem consumiu drogas injectáveis? Ou recebeu uma transfusão sanguínea.

    O que me aborrece nesta discussão é que em vez de se discutirem números, discute-se moral, quando a moral não é para aqui chamada. Este problema é técnico, não é moral.

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    1. "O que me aborrece nesta discussão é que em vez de se discutirem números, discute-se moral, quando a moral não é para aqui chamada. Este problema é técnico, não é moral."

      É importante que a discussão seja feita com base em números e não com base em morais. Mas isto é válido para os dois lados. Não se deve incluir os HSH por motivos políticos, mas também não podem ser excluídos por preconceito.
      Quando se sabe que alguém que tenha como parceiro (heteros)sexual alguém que é HIV+ é considerado de menor risco que um HSH uma pessoa fica com grandes dúvidas quanto à cientificidade da exclusão dos HSH.

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    2. Carlos, o risco não é estático. O nível de risco de uma colheita de sangue é estática, mas a medida que o ISP quer introduzir é dinâmica e tem o potencial de aumentar o risco em colheitas futuras, pois ao dizer que o grupo de homossexuais masculinos apresenta um risco tão grande que é melhor eliminá-lo, está a dar ao grupo de heterossexuais a ideia de que esse grupo é mais seguro. Ora é no grupo de heterossexuais que está hoje em dia a maior parte do risco. Dizer que o ISP não tem obrigação de se preocupar com o crescimento de infecções de VIH não é desculpa porque o que eles fizeram pode aumentar o crescimento da infecção. Foi um atitude completamente imprudente--gosto mais da palavra inglesa: reckless...

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    3. IPS e não ISP--eu devo ter um toque de dislexia...

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  3. Carlos, esqueci-me de lhe responder ao comentário do tamanho da população--concordo consigo no essencial. Há duas razões pela qual eu não o mencionei no meu argumento: (1) o tamanho da população dos dois grupos não é um argumento por si só capaz de refutar o argumento do IPS--se o nível de risco nos homossexuais estivesse a aumentar, esse argumento não seria válido, logo o tamanho das duas populações ser tão diferente não é uma condição necessária nem suficiente para a refutação do argumento; (2) para refutar um argumento, basta apenas apresentar um outro argumento que o refute, não é preciso apresentar mais nada--já para se provar alguma coisa é preciso apresentar muito mais provas, logo é sempre muito mais fácil refutar do que provar (e quando falo em provar, falo em encontrar evidência que afaste a maior parte da dúvida, mas que não a elimine, pois nós nunca somos capazes de provar nada com 100% de confiança). Se eu só preciso de um argumento para refutar, basta-me apresentar o argumento mais forte e que seja uma condição suficiente e o caso está arrumado.

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  4. Caro LA-C,

    Alguém que tenha tido contacto sexua com uma pessoa contaminada com VIH está excluído de forma definitiva, independentemente de o contacto ser homo ou hetero. Da mesma forma que se tiver um contacto sexual com um utilizador de drogas injectáveis. O "risco" assumido é o mesmo e é uma exclusão definitiva.

    (No site da ILGA tem um os critérios de selecção dos dadores de sangue, elaborado pelo IPS - http://www.ilga-portugal.pt/ficheiros/pdfs/sangue/anexo3sangue.pdf. Os critérios de exclusão definitiva começam na pág. 19)

    Rita,

    Os dados para as infecções com VIH em Portugal (dados até 2012) estão aqui: pnvihsida.dgs.pt/.../portugal-infecao-vihsida-em-numeros-2013-pdf.aspx

    Eu fiz um pequeno tratamento dos dados (pausa para almoço) e a taxa de infecção resultantes de contacto hetero tem vindo a baixar desde 2007 (subiu entre 2005 e 2007, tinha baixado antes), enquanto os contactos MSM desce desde 2009 (subiu até então).

    Em termos de população total (e isto é aproximado) também fiz umas contas com os seguintes pressupostos:

    Pop = 10 milhões
    % homossexuais activos = 10% (Estimativa MUITO por cima com base em dados da ILGA)
    % MSM = 5% (os outros 5% são mulheres)
    % Pessoas maduras sexualmente e possivelmente dadoras = 65% (Dados censos 2011, considerando a faixa etária 15-65 anos - não consigo dados a partir dos 18)


    Pop MSM = 500.000
    Pop Toxicodependentes = 60.000 (o último relatório aponta para cerca de 30.000 utilizadores de serviços de apoio - considerei o dobro à cautela)
    Pop sexualmente madura, não MSM, não Toxi, poss. dadora = 5.940.000


    Dados cumulativos de pessoas infectadas (somei os valores, admita que não morreu ninguém):

    Total = 44.255
    MSM = 6.177
    Toxi = 16.086
    Hetero = 18.539
    "Outros" = 3.453

    (Os "outros" são MSM+Toxi, hemofílicos, transfusionados, contágio mãe-filho e indeterminados)

    Incidência total = 0,44%
    Incidência MSM = 1,24%
    Incidência Toxi = 26,81%
    Incidência Hetero = 0,31%

    Sem excluir comportamentos sexuais de risco dentro da população "hetero", é um grupo 4x mais seguro que o MSM. O risco (e sem excluir comportamentos sexuais na população hetero, que É objecto de escrutínio no questionário clínico) está francamente para o lado dos MSM.

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    1. "Alguém que tenha tido contacto sexua com uma pessoa contaminada com VIH está excluído de forma definitiva, independentemente de o contacto ser homo ou hetero."

      Isso não é verdade. Pode ver o MANUAL DE TRIAGEM DE DADORES DE SANGUE. Não precisa de ir à ILGA. Vá ao Instituto Português de Sangue e Transplantação: http://ipst.pt/files/IPST/INFORMACAO_DOCUMENTACAO/ManualTriagemDadoresSangue2014.pdf. Critério 15.52.

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    2. Isto faz-me lembrar a crise subprime: os instrumentos baseados em hipotecas são muito seguros, incluem casas de todos os sítios dos EUA e o mercado imobiliário americano não vai explodir todo ao mesmo tempo. Fiem-se na Virgem e não corram...

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    3. Ou o governo Sócrates: nós podemos aumentar os salários do sector público porque a economia portuguesa vai crescer a 3,5% ao ano--foi o nós metemos no orçamento de estado, deve ser verdade. O futuro é sempre tão brilhante, ainda bem que eu tenho vários óculos de sol...

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  5. Uma adenda aos meus comentários: só li agora a notícia do DN e, muito sinceramente, não percebo a mudança de posição do IPS. Os critérios anteriores, que eu conhecia, eliminavam (não suspendiam) quem tivesse contacto sexual com uma pessoa infectada com VIH. Realmente faz pouco sentido eliminar dadores que tiveram contacto MSM e apenas "suspender" quem teve contacto com uma pessoa infectada.

    Mas, novamente, o problema aqui não é o não permitirem a dádiva MSM (pessoalmente sou a favor de um período suspensivo alargado se não existir troca de parceiro dentro desse período), é terem mudado e passado a permitir a de quem tem contacto com uma pessoa infectada.

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    1. Respondi ao comentário anterior antes de ler este, sorry.

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    2. Eu fiz pior que respondi sem ler links no artigo principa... é de ser Sexta-Feira!

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  6. Também não sei se esse argumento dinâmico fará muito sentido neste contexto - onde é que a Rita se sentiria mais segura a andar na rua: num país em que a taxa de homicidios tenha descido de 50 para 45% ou num país em que tivesse subido de 10 para 15%?

    Já agora, isto não é uma medida que o ISP quer introduzir - creio que é um política "informal" (no papel só diz algo como "exclusão definitiva de quem tenha um comportamento sexual de risco") que existe há anos

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    1. Miguel, não insistas nisso. A resposta à pergunta directa que a jornalista lhe fez foi explícita. "exclusão definitiva de quem tenha um comportamento sexual de risco" é para putas e paneleiros.

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    2. Adicionavam padres a isso e lá deixava Braga de poder dar sangue!

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    3. O dinâmico não faz sentido? Então está a dizer-se aos heterossexuais que não são grupo de risco e aos homossexuais que são grupo de risco para o sangue. O VIH está a crescer mais rapidamente nos heterossexuais, ao mesmo tempo que vai começar a encolher no homossexuais porque muitos dos homossexuais com VIH que ainda estão vivos foram contaminados numa altura em que o seu comportamento de risco era muito pior do que agora. Agora o comportamento pior de risco é nos heterossexuais--é nesse grupo onde a doença vai atacar mais, é nesse grupo onde as autoridades não deviam incutir um sentido de confiança nas práticas sexuais actuais.

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    4. Rita, só uma nota: não é verdade que o VIH esteja a crescer mais na população hetero que na homo. Está a descer nos dois e a tendência é semelhante (em Portugal). A nível europeu continuou a crescer no grupo MSM (até 2012 - desceu 2012->2013 mas é curto para quebrar a tendência; e diminui no hetero (já agora, relatório europeu de 2013, o gráfico está na pág. 6 do relatório / pag. 28 do pdf).

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