quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

como se fosse uma apresentação

Quando mudámos de Weimar para Berlim, inscrevemos a nossa filha adolescente numa escola católica. Foi conselho de uma amiga, directora de uma escola confessional. Que a miúda ficava mais acompanhada nesta cidade de quatro milhões, e que a escola era muito bem frequentada e tinha um ambiente protegido, patati-patata. Para quem vinha de uma cidade de 60.000 habitantes, onde todos se conhecem e acompanham atentamente a vida dos outros, aqueles argumentos pareceram-me pertinentes. Depois de terminar o secundário e deixar essa escola, a nossa filha desenganou-nos cruelmente: "escola católica = elite = dinheiro. São os melhores sítios para criar novos consumidores de droga, ó meus queridos e ingénuos paizinhos!"
A minha amiga contava histórias mirabolantes sobre as famílias que procuram essas escolas. Como a de ter perguntado aos pais de um miúdo com milhentos nomes próprios como é que ele queria ser chamado e os pais, magnânimos: oh, não é preciso complicar, "senhor duque" basta. Infelizmente, contou a minha amiga, descobriu-se que já não havia mais nenhuma vaga.
Em todo o caso: um belo dia, pouco depois da nossa chegada a Berlim, dei comigo no fim de uma reunião de pais a comer pizza em frente a uma duquesa muito simpática, que se chamava Mary e se fazia tratar por tu. Seguiu-se um convite da Mary para um pequeno-almoço na sua casa. Fiz uma bola de Lamego, e fui. À mesa, era a única plebeia. Todas as outras senhoras eram condessas, marquesas, duquesas, sei lá. Também havia uma princesa, e vinha vestida com jeans confortáveis, botas de couro e um camisolão velho e largo cheio de borbotos. Já não se fazem princesas como antigamente, no tempo do Walt Disney. O pequeno-almoço foi óptimo. A bola de Lamego foi muito louvada, anotaram a receita (sou a Catarina de Bragança da Alemanha: daqui a uns séculos o mundo falará da tradição alemã de fazer um pequeno-almoço de amigas com bola de Lamego). Como ia dizendo: foi um pequeno-almoço óptimo, elas iam contando as suas histórias e eu ia descobrindo pelas entrelinhas que a nobreza alemã é como as bruxas espanholas: ninguém acredita nelas, pero que las hay, pero que las hay. Também contei as minhas histórias, imensas coisas interessantíssimas da área da sociologia no tempo de Jesus Cristo, e elas estavam pasmadas, até parecia aquela cena de Jesus no meio dos doutores do templo. Depois não sei que aconteceu, nunca mais devem ter tomado pequeno-almoço, coitadas, porque não recebi nenhum convite.

Voltei a cruzar-me com a Mary no Estádio olímpico, durante a missa do Papa Bento XVI. Calhou de nós, os plebeus, termos convite para os lugares VIP mesmo atrás da Angela Merkel, e os duques estarem no terceiro anel. Às vezes desconfio que Deus é um grande cínico. Ou distraído. Ou republicano.

Anos mais tarde, faz agora algumas semanas, vesti-me confortavelmente e fui com o cão distribuir pela cidade folhetos para um evento dos Portugueses em Berlim. Ao passar pelo consulado tive tanto azar que me cruzei com o novo Embaixador, e mais azar ainda: fomos logo ali apresentados. Ele de uma elegância impecável, no seu sobretudo cognac, e eu feita princesa alemã: camisola larga e cheia de borbotos, jeans velhas, e as minhas botas favoritas, iguaizinhas às da Laura Ingalls. O cão, esse, estava um autêntico príncipe encantado antes de lhe darem o tal beijo. Parecia um cão de sem-abrigo com a trela velha e cheia de emendas, do tempo em que a roía para ir à sua vidinha em vez de esperar por nós (é um rafeiro português independente e cheio de personalidade). Como se não fosse já suficientemente mau, da segunda vez que me cruzei com o Embaixador estava vestida de minhota. Não sei se ele me dará uma terceira oportunidade.

Para o caso de um dia, por sorte, me ser permitido reajustar a imagem perante o novo Embaixador, estou preparada: já comprei uma trela nova para o cão. Numa loja cara e tudo, um luxo. Agora, quando o deixo à porta do supermercado, venho repetidamente espreitar à porta, não vá alguém querer roubar a trela de marca e levar o rafeiro agarrado. Estava capaz de inventar uma nova modalidade de fitness: põe um saco de cebolas no carro das compras, vai à porta do supermercado. Põe dois litros de leite no carro das compras, vai à porta do supermercado. Põe um pacote de arroz no carro das compras, ...

E assim vai a vida, em Berlim. Vai e vem, vai e vem, e a cada coisa pergunta que nome tem.


15 comentários:

  1. A "apresentação" é fabulosa mas, não ultrapassa decerto o sabor da bola de Lamego.
    ;)

    ResponderEliminar
  2. Respostas
    1. Não acredito que tivesse servido sardinha ao grupo condensado de condessas, marquesas, duquesas. E!!! até uma princesa.
      A menos que tenha chamado ao petisco... kaviar de Peniche...

      Eliminar
    2. De facto, era de fiambre. E não me ocorreu nenhum nome especial. Nem era preciso: desapareceu mais depressa do que teria tido tempo de nomear.
      Já o cão, teve mais sorte: está registado nas Finanças como "Portugiesischer Rafeiro".

      Eliminar
    3. Hà poucos anos, alojado no Hotel Adlon Kempinski, junto ao Portão de Brandenburgo, surpreendi-me quando entrei no restaurante e dei de caras com dois casais de meia idade à mesa e deitados ao seu lado, muito comportados, dois enormes cães que me pareceram da raça "Dogue Alemão" (mas sou pouco versado em raças caninas).

      Eliminar
    4. Surpreendeu-me a permissão de permanência de animais, num espaço de restauração.
      Isto, a exemplo de cá, que somos fieis seguidores das directrizes emanadas da UE e proibimos a entrada de animais não só em hoteis, como noutros espaços públicos.
      Espantou-me também (mas isso foi depois) a forma, posso dizer fleumática como os Dogue se comportavam. Não se mexiam, não olhavam para o que se passava em redor, mantendo uma pose que quase diria, arrogante, superior; muito mais que a minha, que me fartei de os espiar pelo canto do olho "mortinho" para os ouvir dar uma valente ladradela que no caso, deveria equivaler ao rugido de um leão. Mas não, nada, nem um pio. Acabei a refeição, os casais continuaram à mesa conversando e bebendo, os cães deitados mas sempre de pescoço erecto e cabeça levantada, subi ao quarto e não cheguei a saber se os cães alemães ladram com sotaque... ou não.

      Eliminar
  3. Gostei, Helena. Continue!
    Maria Teresa Mónica

    ResponderEliminar
  4. É sempre uma delícia ler-te. E o que já me fizeste rir!
    A propósito da nobreza alemã, não sei se alguma vez terás lido a maravilha que é Au Plaisir de Dieu, de Jean d'Ormesson, um dos livros da minha vida (e ando cada vez mais zangada com a Academina Nobel, que nunca mais lhe dá o prémio, e o senhor já vai nos 90 anos). Se não leste, corre a ler. :)

    ResponderEliminar
  5. Já o meu (cão) está registado na Junta de Freguesia como cão para fins económicos. Não sei exactamente o que eles querem dizer com isso, mas assim paga uma taxa de 3 euros em vez dos 9 que me pediam por um lulu de copmpanhia.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. O mais provável, é o registo do cão servir os fins económicos da própria junta da freguesia. Ha juntas que disponibilizam espaços para que os animais possam passear, com pontos específicos para aliviarem as suas necessidades fisiológicas onde, nos locais mais cuidados, existe um dispensador de sacos de plástico e um coletor para os mesmos. É claro que esses espaços e as infraestruturas de que dispõem necessitam de manutenção e limpeza e isso tem de ser pago.

      Eliminar
    2. fins económicos: o próprio nome explica - 3 euros é mais económico que 9...

      Eliminar
  6. Parabéns pela estreia Helena. Tem de escrever pelo menos uma entrada por semana.

    ResponderEliminar

Não são permitidos comentários anónimos.