quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

Outra coisa qualquer

Todas as mulheres gostam de apanhar. Só as neuróticas é que reagem. Assim dizia Nélson Rodrigues. Estimadas leitoras, não fiquem irritadas ou o genial cronista brasileiro diria: Estão a ver? Eu não digo? Neuróticas. Calma, estou a brincar.
Agora, a sério. Nesta história da violência doméstica, não consigo compreender a passividade de algumas mulheres e incomoda-me, por vezes, um certo paternalismo. Coitadas, são mulheres sem autonomia; mulheres sem instrução; mulheres com baixa auto-estima, etc. As mulheres são reduzidas a vítimas, destituídas de personalidade e/ou autonomia e/ou racionalidade. Desgraçadamente, não faltam histórias de mulheres económica e socialmente independentes que se sujeitam a anos de humilhação, sem que nada as obrigasse a tal. A Sara Pitola diz que é um acumular de pequenas palhas que, com o tempo, se transformam num fardo insuportável. Um insulto aqui, um empurrão ali, um estalo acolá, enfim, uma sucessão de pequenas coisas, de pequenos abusos. Vai-se aguentando pelos filhos, pelo “projecto em comum”, pelas boas memórias. Então, e onde é que fica a dignidade pessoal? Como é que alguém apanha um estalo hoje, um empurrão amanhã e tolera tudo isso durante dias, semanas, meses, anos?
Não há muito tempo li uma reportagem na qual jovens universitárias portuguesas se queixavam da violência dos namorados. E, claro, lá apareceram as piedades do costume para com as pobres raparigas que apanhavam. Como é possível isto acontecer em pleno século XXI? O que leva essas jovens "vítimas" a continuarem a namorar com anormais? Confesso que está para além da minha capacidade de compreensão. E, por favor, não metam o amor nestas histórias. Aqui não há amor, há outra coisa qualquer.   

12 comentários:

  1. Há dependência, JCA. O amor é um tipo positivo de dependência, mas há outros negativos e que se confundem facilmente com o primeiro.

    Há, como escreveu a Sara Pitola, a nossa tendência natural para racionalizar a coisa, focando nos pontos positivos em detrimento dos negativos.

    Há (infelizmente ainda muita) pressão social. Porque se elas apanharam se calhar até mereciam ou estavam a pedi-las.

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    1. É um assunto complicado, que me deixa perplexo, Sim, ainda há uma certa tolerância social para com a violência, e isso realmente não ajuda nada e, sem dúvida, explica uma parte do fenómeno.

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    2. Uma tolerância que atinge a permissividade e até a concordância. No nosso pais ainda vigoram "valores" assumidos tácitamente. Valores que têm muito a ver com folclore, tradição, pudor, preconceito religioso e social e outras vacuidades. Se uma síntese pudesse ser feita a esta matéria, ela teria de ser repartida pelas mulheres que são realmente vítimas e por aquelas que se põem a jeito e parece gostarem de o ser. Estou a pensar num casal que conheço, ambos com formação superior, em que ela faz os possíveis para o enfurecer e quando chega ao ponto de o conseguir, encorja-o a bater-lhe: vais-me bater? vais? vais? então, não me bates? vá, bate-me! bate, vá! tch, és um miserável, nem coragem tens para me bater...

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  2. Tendência a considerar as violências anteriores como sunk costs?

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  3. There are more things in heaven and earth, Horatio,
    Than are dreamt of in your philosophy.

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  4. "Não consigo compreender a passividade"

    - Quem não souber dizer não a abusos como os descritos em certos relatórios universitários, policiais e de sentenças acaba por não saber dizer não à droga e a outras 'drogas' como o comportamento de alguns chefes, directores, administradores, patrões, professores, etc. muitas vezes colados a experiências suas que não aprenderam a reformular...
    http://www.youtube.com/watch?v=Ymm86c6DAF4&hd=1
    (9 minutos de video orientado para
    "Teachers, parents and trainers to use with young people")
    http://www.centreforconfidence.co.uk/projects.php?p=cGlkPTU5

    «A Sara Pitola diz que é um acumular de pequenas palhas que, com o tempo, se transformam num fardo insuportável. Um insulto aqui, um empurrão ali, um estalo acolá, enfim, uma sucessão de pequenas coisas, de pequenos abusos. Vai-se aguentando pelos filhos, pelo “projecto em comum”, pelas boas memórias.»

    - A Sara Pitola apenas indicou a melhor explicação disponível, e escreveu-a muito bem.

    "jovens universitárias portuguesas se queixavam da violência dos namorados"

    - veja-se o vídeo que adicionei mais acima sem ver nele mais que uma ajuda para algumas pessoas, totalmente inútil e até prejudicial para outras.
    PS
    A Associação de Mulheres Juristas tomou posição por uma mulher, e é para isso que existe. Quanto à verdade, o seu apuramento cabe ao tribunal, não à referida associação.

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    1. O Isidro Dias pertence ao grupo dos comentadores moderados, que tentam analisar as questões sempre pelos vários ângulos. Isso é óptimo. Eu não quis desacreditar a explicação da Sara, que, como diz, é a melhor disponível. Acho é que não explica tudo. É só isso.

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    2. Este comentário foi removido pelo autor.

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    3. Obrigado.
      Nem neste, nem em nenhum outro caso, alguém poderá contentar-se com uma explicação baseada na média, na mediana, ou na moda de uma população, como acontece na hipótese bem formulada pela Sara Pitola. Vamos esperar para ver que decisão é tomada sobre o pedido de substituição da juiza.

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  5. Há muito tempo que tenho a seguinte teoria: por razões que me escapam, passamos anos (décadas!) a ensinar às nossas crias coisas muito importantes para viver em sociedade, como comer de garfo e faca, cumprimentar as pessoas, etc., ou de pura sobrevivência, como não meter os dedos nas fichas ou que o arroz cozido aumenta de volume mas as batatas não; mas quanto à arte de amar é o silêncio total. Quando muito poderá haver alguma educação sexual (que tem bastante a ver com evitar gravidezes precoces), mas o resto? As últimas gerações ainda têm as artes, ou técnicas, visuais. Mas assim como não é certo que as pessoas se tornem violentas por passarem a infância a ver explosões na televisão, também não é certo que aprendam a arte amatória dessa maneira. Ou se aprende a ver fazer ou então... O cuidar, o respeito? Sobretudo o respeito!

    Não é de espantar que haja tanta iliteracia amorosa na idade adulta. Conheço várias pessoas que, por exemplo, tratam especialmente mal as pessoas de quem mais gostam (não é assim tão raro como isso). Nem todos chegam àquilo a que se chama violência doméstica, muitas vezes é mais automutilação que outra coisa, mas não é de espantar que as pessoas repitam o desamor que viram praticar quando andavam a aprender o b-a-ba da vida.

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    1. Muito bem. Gostei muito de ler o seu texto. Eu gosto muito de uma passagem do "Cântico dos Cânticos" (8: 10) que diz que o verdadeiro amor é, simplesmente, aquele que traz a paz.

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