quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016

Dos impostos indiretos e da classe média

Anda por aí uma discussão sobre o que é a classe média, que me parece estar centrada em torno da distribuição no rendimento (sobretudo do trabalho). Acho que esse enfoque faz com que a discussão seja incompleta (e potencialmente enviesada). É preciso também incluir uma discussão sobre a distribuição da riqueza em Portugal. A desigualdade no rendimento do trabalho, se for minimamente correlacionada com o mérito individual, pode mesmo ser o único instrumento sério ao dispor das pessoas para combater a desigualdade na riqueza. É isso, aliás, que eu entendo por classe média: uma classe de pessoas que, exclusivamente através da sua formação e do seu trabalho individual, podem realisticamente esperar enriquecer; e que, com base neste poder, se tornam menos dependentes do que poderíamos chamar, genericamente, Poder (que é alicerçado, em parte, na própria desigualdade na distribuição da riqueza). 

A minha conclusão é a de que a política fiscal devia mesmo focar-se tendencialmente na distribuição da riqueza, ou tomar em conta a distribuição de riqueza quando taxa os rendimentos do trabalho, em vez de taxar exageradamente estes últimos. Sem um elevador social, Portugal arrisca-se a ser um país feudal, sem uma classe média capaz de exercer a cidadania de uma maneira relativamente autónoma e informada. E isso tem custos elevadíssimos na qualidade (e sustentabilidade) da democracia tal como a entendemos, mas também na própria qualidade da economia (na medida em que afeta, e muito!, a produtividade e a motivação dos trabalhadores). 

Como é que a política fiscal se pode focar mais na distribuição da riqueza? Isso daria para um outro post - mas a minha ideia, que testo amiúde e ainda ninguém me convenceu estar errada, é a de que os impostos indiretos, sobre o consumo, ao contrário do que geralmente se diz, não têm de ser impostos regressivos. Assumindo que uma parte substancial da riqueza é eventualmente usada para adquirir produtos (o que me parece uma hipótese razoável), o IVA, se escalonado decentemente (isentado produtos essenciais e subindo conforme o grau de luxo do produto), pode ser um verdadeiro e efetivo imposto sobre a riqueza. 

13 comentários:

  1. Concordo com tudo o que disse.
    De facto um indivíduo só tira proveito dos seus rendimentos quando os utiliza, e só nessa altura é que deveria ser taxado.
    No limite, poder-se-iam acabar com todos os impostos excepto o IVA, no entanto o problema neste caso seria que não vivemos numa economia fechada e podemos comprar telemóveis topo de gama fora de portugal.

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    1. Obrigado, Stardust. Sim, concordo, não podemos chegar ao limite de ter apenas impostos indiretos, mas acho que se deve discutir um "rebalanceamento" entre impostos, e acho que a ênfase devia estar sobre a riqueza (e o consumo), e menos sobre os rendimentos do trabalho. Como acho que concordamos.

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    2. "De facto um indivíduo só tira proveito dos seus rendimentos quando os utiliza"

      Discordo - a sensação de poder usar o dinheiro (mesmo que nunca o use) é provavelmente dos maiores beneficios que o dinheiro traz.

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    3. Na realidade não é só uma sensação. A posse de capital permite não apenas o consumo deferido como aplicar o mesmo e portanto obter um retorno adicional. Mas concordo que a "liberdade de espírito" permitida por não se ter que preocupar com como viver o dia de hoje e o dia de amanhã tem vantagens significativas e comulativas (ver por exemplo o artigo de Mani et al. (2013)).

      Anandi Mani, Sendhil Mullainathan, Eldar Shafir, Jiaying Zhao, "Poverty Impedes Cognitive Function", Science, 341(6149), pp. 976-980
      DOI: 10.1126/science.1238041

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  2. Na minha opinião, Portugal já é um país feudal.

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    1. De acordo. É também o que digo sempre. Mas a questão é como mudar isso.

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  3. Em relação ao IVA, discordo de ti pelo simples facto de ser muito fácil hoje em dia ir-se fazer compras a outros países e fugir a impostos altos portugueses sobre o consumo.

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    1. É verdade que todos os impostos geram alguma fuga. Até os sobre o trabalho, na verdade (como a malta que cria a sua própria empresa unipessoal e depois mete a fatura do almoço nas contas). A questão é perceber qual é o sistema mais eficiente, em que a eficiência não é só uma discussão sobre as "perdas", mas também sobre os incentivos. Finalmente, mesmo que isso que dizes seja verdade (coisa que não estou convencido), então a solução será naturalmente europeia, e não apenas portuguesa.

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  4. Não concordo totalmente com as sugestões, por duas razões, uma prática e outra de base:

    a) A razão de base é que nas economias modernas existe uma forte correlação (hereditária) entre a riqueza (propriedade) e o rendimento. Tal não se faz principalmente pelo rendimento direto dos bens (que embora contribuindo para o rendimento total não corresponde geralmento nos escalões mais elevados à componente principal deste) mas sim porque em geral os detentores de propriedade tem mais facilmente acesso a posições que permitem rendimento elevado (e note-se que em termos de rendimento não se deve considerar unicamente o rendimento do trabalho (salário), embora este seja uma parte significativa do mesmo). Este acesso é potencializado por mecanismos sociais que o favorecem (por exemplo foco na educação dos filhos “adequada” em termos de conteúdo e de rede de contactos, “associative mating”, etc.).

    b) A razão prática é que a partir de um certo nível de rendimento, de facto o consumo direto de bens correntes é uma percentagem pequena do rendimento disponível. Para além disso por regra estamos limitados a um número pequeno de taxas de IVA (a UE pretendia originalmente que fossem apenas 2 taxas, a existência de 3 é uma concessão a alguns países...). Isto torna muito difícil discriminar consumo entre bens “de luxo” e bens de “primeira necessidade” (principalmente se se pensar que nem todos os bolos/livros/cursos/tratamentos médicos/espetáculos por exemplo, podem ser considerados bens “de luxo” mas também não serão todos “de primeira necessidade”). Sem falar que aumentar demasiado as penalizações pode levar a efeitos de distorção significativos no mercado.

    Pelas razões anteriores um regime fiscal progressivo a nível dos rendimentos (desde que todos os rendimentos sejam englobados), eventualmente complementado com fiscalidade especifica sobre a propriedade, é provavelmente uma opção mais eficiente se se tiver a intenção de diminuir as diferenças entre os mais ricos e os mais pobres.

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    1. Obviamente, "assortative mating" e não "associative mating"

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    2. Bons pontos, iv. Julgo que concordamos no essencial. Discordamos talvez na forma como taxar a riqueza. Eu sei que os ricos tendem a consumir uma proporção inferior do rendimento, mas isso também se pode endereçar. Assumindo que não metem o dinheiro no colchão, pode taxar-se mais os retornos sobre o investmento (ou seja, o rendimento do capital, que eu deixei estrategicamente de lado ao focar o post no rendimento do trabalho) ou poupança. E concordo quanto à questão da UE limitar os escações do IVA a 3. É portanto uma discussão que é maior que Portugal. Mas acho importante tê-la. Acho que o peso dos impostos sobre o trabalho no total é injusto e está a impedir o surgimento de uma classe média.

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  5. Alguém tem alguma ideia de como é a estrutura dos impostos na Suécia, por exemplo? Digo Suécia porque conheço, ou conhecia, relativamente bem, incluindo a tremenda energia que dispendiam para procurar pagar o menor valor de impostos possível. Os meus amigos, nessa altura na casa dos 20, todos tinham uma empresa para poderem passar por lá todas as suas despesas porque os impostos sobre o trabalho eram brutais. E não me parece que isso tenha impedido o surgimento de uma classe média, portanto se calhar a questão não está aí.

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    1. Isabel, parece-me claro que não há um fator único que explique a não-emergência de uma classe média em Portugal. No entanto, acho que o seu argumento sobre o caso da Suécia me parece ir ao encontro do que defendi num comentário acima, nomeadamente o de que as "fugas" aos impostos diretos não têm de ser inferiores às fugas aos impostos diretos.

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