sábado, 31 de outubro de 2015

Re: Peter Boone, o manipulador

Notas: Primeiro, eu não sou advogada, logo o que escrevo abaixo representa a minha melhor interpretação da situação. Segundo, como trabalho na indústria financeira americana, já recebi treino em ética e conflito de interesses na área de mercado de futuros de commodities (passei o exame da National Commodity Futures Examination e estou inscrita na National Futures Association). Finalmente, eu não lido com dívida soberana.

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Ao contrário do Luís, eu acho que o Ministério Público não está assim tão desamparado como se pensa. A primeira razão é que a sequência de eventos está correcta. A segunda razão é que isto tudo é medível: há dados sobre as taxas de juro, o número de leitores do blogue, a audiência do blogue, o número de posts que ligam a esse post, etc. É perfeitamente possível analisar os dados e ver se o post do NYT teve influência suficiente para mover o mercado. E é apenas isso que o Ministério Público tem de provar: que o post influenciou o mercado; é isso o que se chama manipular o mercado. Espero bem que o Ministério Público tenha feito o trabalho de casa antes de se lançar nesta aventura, mas isso é outra história.

A outra questão é a de intenção. É difícil provar malícia, mas pode-se mostrar que o Peter não agiu de forma imparcial. Acontece que o Peter não disse que tinha um interesse directo numa posição que beneficiaria se o mercado reagisse à informação que o Peter estava a dar ao mercado. Aqui entra a questão da ética por duas vias: a via do jornal e a via da indústria onde ele opera.

Qual é o papel do Peter quando escreve no The New York Times O que é que ele representa: os bons interesses do público, os interesses do jornal, os interesses da sua companhia, os interesses dos seus clientes na companhia? A não divulgação da posição que ele tinha dá a ideia de que não há qualquer conflito de interesse entre todas estas partes interessadas.

O público espera que quem escreva no The New York Times tenha bons níveis de reputação e de ética, a não divulgação da posição viola o princípio de confiança que os leitores põem no The New York Times. Podem dizer que há centenas de blogues que disseram o mesmo, mas um blogue que pertence a um orgão da imprensa deste calibre não é o blogue da esquina.

Para além disso, o jornal garante aos leitores um código de ética--eles até dizem que a integridade do jornal tem sido guardada durante mais de um século e os leitores devem esperar imparcialidade daquilo que lêem, a não ser que o jornal lhes dê informação em contrário. Ver ainda este documento do Times, de 2005, onde Bill Keller diz:

In addition to being a daily newspaper, we are a collection of magazines — actual magazines, and weekly sections that are magazine-like in their formats, their tone, their license to comment, not to mention their heavy reliance on freelance writers. My own view which I know is shared by the editors of the Magazine and the magazine-like sections — is that the standards of accuracy and fairness must be equally exacting across the contents of the paper.

Fonte: The New York Times, "Assuring Our Credibility"

Como o Peter não é jornalista, pode invocar desconhecimento destas questões, mas ele devia, no mínimo, ter informado o seu editor no NYT que ele era parte interessada, pois é essa a expectativa que o jornal cria nos leitores. Acho difícil de acreditar que alguém do calibre profissional dele não soubesse isto. Até porque, de certeza, que houve um acordo assinado onde este aspecto é focado.

Uma outra violação de ética a considerar é a do código de conduta de profissionais que agem na indústria financeira. Nos EUA, uma pessoa na posição do Peter é obrigado a ser certificado em ética, logo ele sabe bem que conflitos de interesse devem ser divulgados. Segundo o que li no Wall Street Journal, a empresa onde Boone trabalhava (Salute Capital Management, que tem sede nos EUA) fornecia informação acerca de oportunidades de investimento a Moore Capital, um outro hedge fund. Mais uma vez, é crítico o papel de Peter: será que ele pode ser visto como um analista de dívida?

No Código da FINRA (Financial Industry Regulatory Authority), a propósito de quem faz análise de instrumentos de dívida, lê-se o seguinte:

(4) A member must disclose in any debt research report at the time of publication or distribution of the report:

(A) if the debt research analyst or a member of the debt research analyst's household has a financial interest in the debt or equity securities of the subject company (including, without limitation, any option, right, warrant, future, long or short position), and the nature of such interest;

[...]

(d) Disclosure in Public Appearances

(1) A debt research analyst must disclose in public appearances:

(A) if the debt research analyst or a member of the debt research analyst's household has a financial interest in the debt or equity securities of the subject company (including, without limitation, whether it consists of any option, right, warrant, future, long or short position), and the nature of such interest;

Fonte: FINRA Rules

No que diz respeito a divulgação de conflito de interesse, a indicação que a FINRA dá é que se deve sempre errar no sentido de divulgar essa informação. Isto até serveria os próprios interesses do Peter porque, mais tarde, ele poderia defender-se se alguém o acusasse de omitir informação de propósito. Mas ele não o fez e, não só escreveu aquele artigo no NYT, como escreveu outros noutros sítios como a Bloomberg. Isto não é o blogue da esquina...

Finalmente, a questão de Portugal ir ao ar independentemente do que Boone disse. Portugal tem hoje mais dívida do que tinha na altura e ainda não foi ao ar porque os prazos e as taxas de juro são suficientemente moderados (graças ao BCE) para o país conseguir gerir a sua dívida. Ou seja, o nível das taxas de juro é muito relevante--há um nível acima do qual Portugal não é viável. Mas se o mercado decidir que o país não é viável, a profecia auto-concretiza-se, ou seja, a direcção de causalidade é invertida.

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P.S. Em resposta à questão de inside trading do Carlos no post do Luís, há uma escola de pensamento que acha que o inside trading cria mercados mais eficientes (ver aqui, por exemplo), mas eu acho isso discutível.

2 comentários:

  1. Rita, o Boone foi acusado, tanto quanto sei, ao abrigo da lei portuguesa. O que encontrei, no código dos valores mobiliários, foi o seguinte:

    "Artigo 379.º
    Manipulação do mercado

    1 - Quem divulgue informações falsas, incompletas, exageradas ou tendenciosas, realize operações de natureza fictícia ou execute outras práticas fraudulentas que sejam idóneas para alterar artificialmente o regular funcionamento do mercado de valores mobiliários ou de outros instrumentos financeiros é punido com pena de prisão até 5 anos ou com pena de multa.

    2 - Consideram-se idóneos para alterar artificialmente o regular funcionamento do mercado, nomeadamente, os actos que sejam susceptíveis de modificar as condições de formação dos preços, as condições normais da oferta ou da procura de valores mobiliários ou de outros instrumentos financeiros ou as condições normais de lançamento e de aceitação de uma oferta pública. "

    Com base nisto, a questão não é tanto ética (conflito de interesses), mas jurídica. O MP - e não consegui achar informação exacta sobre a acusação - considera que Boone mentiu (não é credível), deu informações incompletas (?), exagerou (se atentarmos ao que o então Ministro das Finanças disse, poderia ser isto) ou tendenciosas (igual ao exagero).

    Estou como o Luís, quero ver por que lado pegam, porque vai ser difícil de provar dolo (ter interesse no resultado não chega).

    PS ao PS: Em termos pessoais, o insider trading não me choca. A ideia que as pessoas conseguem agir, esquecendo informação, é algo excessiva. Imaginemos um quadro médio de uma empresa de construção que opera em Angola (um exemplo bem realista, se calhar). E sabe que a sua empresa tem dificuldade de recebimentos. E que a empresa onde trabalha um amigo (em cargo semelhante) também. E outra que subcontratou para uma obra e o encarregado lhe disse o mesmo em cavaqueira também. Se ele tiver acções de uma quarta empresa, do mesmo sector, e fizer um short, é insider trading? Qual a diferença entre isto e agir com acções da empresa onde trabalhar?

    A questão aqui é outra (e o artigo do Post refere isso): o objectivo não são mercados mais eficientes. É a protecção de um grupo de investidores. Nesse caso, faz sentido permitir coisas como HST?

    A mim, como considero que as bolsas (na maioria dos casos) estão desvirtuadas e que os investimentos deveriam ter por fim a obtenção de lucros indirectos (dividendos) e não directos (compra e venda de acções), provavelmente sou um outlier nesta discussão. Pela mesma medida (de ser um outlier), parece-me que a regulação dos mercados deve ter por fim a protecção do bem comum e não a procura de eficiência. E como não sou utilitarista, as duas coisas não têm de ser coincidentes.

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  2. Este postal é muito bom e quem não tiver preparação para lê-lo totalmente não ficará sem o essencial, escrito no seu topo.
    Citação originária de uma página oficial:
    ...
    29-10-2015 15:48 MANIPULAÇÃO DE MERCADO SOBRE TÍTULOS DA DÍVIDA SOBERANA PORTUGUESA. ACUSAÇÃO DO MP
    http://www.pgdlisboa.pt/novidades/nov_main.php?comarcas=S
    (lido em 1/Nov./2015)
    «...
    O Ministério Público requereu o julgamento de um arguido de nacionalidade canadiana e residente em Londres pela prática do crime de manipulação de mercado tendo por objecto a desvalorização das obrigações do tesouro portuguesas.
    No essencial, ficou indiciado que este arguido era, à data (Abril de 2010), administrador de uma sociedade que prestava serviços de consultoria de investimento e de gestão de carteiras sobre investimentos financeiros a uma outra sociedade gestora de fundos de investimento especulativo (hedge fund).
    De acordo com a prova indiciária recolhida, este arguido tinha interesse na desvalorização da dívida portuguesa e na subida dos yields, uma vez que só a respectiva desvalorização permitia recuperar a dívida (encerrar a posição curta) com mais-valias e potenciar os seus ganhos.
    Com esta finalidade publicou vários artigos em blogs, sendo um deles associado a um jornal de referência mundial, no período compreendido entre Fevereiro e Abril de 2010. Os artigos de opinião tiveram impacto nas yields da dívida pública portuguesa, influenciaram os investidores, até porque o arguido era um académico prestigiado, doutorado em economia pela universidade de Harvard e os artigos foram publicados em contexto de grande instabilidade financeira, de receio de contágio com a dívida grega, estando os mercados em situação de elevada susceptibilidade.
    O arguido nunca mencionou nos artigos editados os seus interesses negociais, o que teria reduzido a credibilidade da opinião divulgada. Desta forma, foi obtida nesta negociação da dívida soberana portuguesa uma mais-valia de cerca de 819.099,82 Euros através da desvalorização dos títulos de tesouro respectivos. Desta forma atentou contra as regras da livre concorrência e a confiança do mercado.
    Trata-se de acusação por crime com contornos inéditos.
    A investigação foi dirigida e executada pela 9ª secção do DIAP de Lisboa / Sede com o apoio técnico da CMVM.
    ...»

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