sexta-feira, 30 de outubro de 2015

Sardónica

sar·dó·ni·co
adjectivo
1. Irónico e requintadamente mau. = SARCÁSTICO
2. Relativo à sardónica.

Fonte: "sardónica", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013 [consultado em 29-10-2015].

Sou eu! Os políticos portugueses inspiram o pior que há em mim. Eu, às vezes, até sinto medo de mim própria, quando eu leio o que eu escrevo, mas como também me faz rir, tenho de partilhar convosco.

Hoje apareceu-me o adjectivo "sardónico" na cabeça e eu pensei "Acho que o meu humor anda assim, mas eu nem sei se me lembro bem do significado desta palavra". Fui ao dicionário e, pimba!, lá estava a definição, que assentava que nem um luva. Foi assim que eu aprendi inglês: as palavras apareciam na minha cabeça, como que vindas do nada, e eu sabia o seu significado sem qualquer esforço. Nunca me acontecia dessas coisas em português.

Em 2008, o meu português já estava mais para lá do que para cá. Aconteceu porque eu não consumia quase nada em português. Como me zanguei com a minha mãe, que achava que eu era demasiado ambiciosa por ter decidido fazer um doutoramento, entre 2001 e 2006 não pus aí os pés. A bem dizer, eu não fui completamente verdadeira para com ela. Nunca lhe disse que eu tinha decidido fazer uma especialização em estatística que implicou mais ano e meio de cadeiras. Finalmente, acabei o curso em 2004, mas só aí fui em 2006 porque já tinha um bom emprego e vida estável, logo o discurso de "Rita és tão ambiciosa, queres ser melhor do que quem?" já não pegava. Ela faleceu nesse ano e era com ela com quem eu falava ao telefone todas as semanas. Ela era a minha ligação ao português. A minha mãe gostava muito de português, especialmente daquelas palavras mais engraçadas, que pouca gente usa.

Muitas vezes, quando eu aí vivia, ela olhava para mim e sorria quando me dizia "Isto está muito mal enjorcado!"--a sonoridade de "enjorcado" agradava-lhe. E depois houve aquela vez em que ela estava a conversar comigo no quarto dela e eu, com vinte-e-tal anos, estava a contorcer-me na cama, estilo a posição de ioga do arado. Ela parou de falar, ficou especada (outra palavra da qual ela gostava) a olhar para mim por uns segundos, e depois disse: "Deixa-te de andar aos pinotes na cama." Nesse momento, a palavra "pinotes" causou-me tanto riso, que eu chorei. E eu ri-me tanto que ela também se começou a rir. Agora essa é, talvez, a minha palavra preferida. É por isso que eu, de vez em quando, tento usar palavras e frases engraçadas quando vos escrevo: é uma homenagem à minha mãe.

Entre 2008 e 2012 também não fui a Portugal--dessa vez fui eu que me zanguei com Portugal. Tentei esquecer-me que Portugal existia, mas acabei quase maluca porque tinha saudades do mar português. Já falava português com pausas e interjeições à americana, dizia um amigo meu; no entanto, o meu vocabulário tinha melhorado porque eu comecei a fazer um grande esforço por estudar português. No início do meu estudo, até fui ao Project Gutenberg buscar "A Cidade e as Serras" de Eça de Queiroz para ler no meu Palm Pilot e requisitei "O Mandarim" na biblioteca da universidade. Mas as minhas ferramentas mais úteis foram os blogues e mais tarde o Facebook, especialmente este último porque me obrigava a compor em português.

Às vezes, quando leio o que algumas pessoas escrevem em português, sinto uma tristeza imensa porque o meu vocabulário nunca irá ser assim tão rico, nem as minhas construções gramaticais serão assim tão sofisticadas. Mesmo assim, vou continuar a estudar português.


Ranunculus sceleratus, também conhecida por sardónia

6 comentários:

  1. Cara Rita, eu também gosto muito de ranunculus.
    Aprecio, sobremaneira, as suas confissões. Parecem-me, sinceramente, genuinamente genuínas!! E absolutamente plausíveis!! Sobretudo, plausíveis.
    Eu,mais das vezes, também me quedo tartamudo ante os fenómenos mais curiais do quotidiano. Houve um tempo em que me pasmava com o absurdo das evidencias e me enternecia, apenas, com elaboradíssimas subtilezas de espírito. Pasmava-me com a lei da gravidade mas não com a lei da parcimónia que se me discorria como evidencia da razão!!
    Contradições insanas e, por vezes, insanáveis! Atribuí a responsabilidade por tal estultície, à falta de outra evidencia e pela impossibilidade lógica e axiológica de me incriminar, à língua portuguesa!!
    Passei, desde então e todos os dias, a censurar palavras até à sua raiz mais remota, se a encontro!! Quando a não encontro basto-me com um ponto final. Foi remédio santo, passei a pensar mal e a escrever pior!!
    Digo-lhe, cara Rita, que escreve bem e que a não atraiçoam as palavras. Assim deve continuar até que a corrupção do espírito sucumba à persuasão natural de não escrever!!
    Eu, que já morri de amor umas 31 vezes, sete das quais por Portugal e outras sete pela língua portuguesa, devo adverti-la que pensar bem e escrever melhor não é grande virtude!! Há-de, certamente, haver outra maneira de se, me, nos, salvar!!
    Um grande bem haja para si e para os seus

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    1. Muito obrigada. Antes de publicar este post ainda hesitei um bocado. Este saiu deveras pessoal. Quando comecei a escrever não sabia muito bem o rumo da coisa, mas gostei que tivesse saído assim.

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  2. A Rita exprime-se num português excelente (e com ideias e uma imaginação sublimes). Nas construções gramaticais há um único ponto em que utiliza quase sempre a sintaxe inglesa, e que venho hesitando há largos meses se devo referir, porque é muito irritante referir um pequeno desvio de escrita (que nem sequer é um erro), em vez de optar por exaltar as inúmeras qualidades - mas que me daria mais trabalho fazer :-). É o uso do "eu" nalgumas situações em que este deveria ser um sujeito implícito (oculto). Casos, p.e., de "[Eu,] às vezes, até sinto medo de mim própria" ou "Nunca lhe disse que [eu] tinha decidido fazer uma especialização em estatística", nos quais normalmente se tenderia a ocultar o "eu". Inversamente, [eu] posso dizer "A Rita exprime-se num português excelente" sem cair no ridículo que cairia nos EUA se utilizasse nesse contexto qualquer coisa parecida com esta formulação portuguesa (em vez de "You"). Naturalmente, este segundo caso é muito mais grave, porque está errado, ao passo que a sua utilização do "eu" só revela influência americana, não é propriamente um erro. Enfim, isto para dizer que discordo totalmente da sua auto apreciação no que a utilização da língua portuguesa diz respeito. É muitíssimo melhor daquilo que [a Rita] descreve.

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    1. Muito obrigada! O uso do "eu" não é o único sítio onde uso (apaguei o eu, que tinha posto atrás) construções inglesas. É uma das coisas onde tenho de tentar prestar mais atenção. De vez em quando, o NAJ, que ensina escrita criativa, faz uma apreciação crítica do que escrevo e vai-me dando dicas. A forma como me descrevo é uma comparação que faço com a Rita ideal que vive na minha cabeça, é uma forma de eu orientar o meu progresso como pessoa; não é tanto uma comparação de eu vs. outros.

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  3. A minha apreciação era mesmo em termos absolutos (tanto quanto é possível). Mas do que conheço do seu 'eu postador' acredito que o seu 'eu ideal' seja mais implacável do que eu na análise :-)

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  4. Eu sou suspeita, mas adoro o teu sarcasmo e entendo como é bonito e engraçado ouvir palavras de outros tempos, que não estão erradas, mas deixaram de se usar.
    Um grande abraço, pois há pessoas insubstituíveis, sim! Amelhor homenagem é a nossa lembrança e memória de acontecimentos agradáveis.
    Um abraço.

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