domingo, 6 de dezembro de 2015

Notas soltas de uma entrevista

Niall Ferguson é um dos mais prestigiados historiadores da actualidade. Tem o dom invejável (mesmo para um académico anglo-saxónico) de combinar uma enorme erudição com o talento de escrever para um público alargado, que se estende muito para além dos muros da academia – por exemplo, acho notável a forma como nos seus livros mistura literatura com estatística, o que não está ao alcance de qualquer um. Deixo aqui algumas notas soltas de uma entrevista que deu esta semana ao “Expresso”.
O euro foi um erro crasso. Uma união monetária sem uma união orçamental só podia dar nisto. Ajustamentos económicos extremamente dolorosos, crescimento anémico (embora as causas deste fenómeno sejam variadas: estado social insustentável, demografia, incapacidade e dificuldade de fazer reformas). Os custos deste projecto europeu têm sido muito superiores aos benefícios (felizmente o Reino Unido não embarcou nesta loucura, e é até difícil imaginar o caos em que estaríamos se isso tivesse acontecido). A situação de hoje é o resultado do que as elites fizeram a si próprias. Os povos não pediram, nem queriam nenhuma moeda única. Numa Europa com escudos e pesetas, o resultado seria melhor em termos de crescimento, emprego e as dores infligidas ao povo não teriam sido tão fortes.
O euro foi um erro crasso, mas agora não é possível desinventá-lo (é como o Estado de Israel, acrescento eu). Os custos de desmantelamento seriam brutais. Fazer funcionar a união monetária é, por isso, o grande desafio. A austeridade é o resultado de uma união monetária com a Alemanha. Tudo depende da Alemanha. O euro só acabará no dia em que os alemães o decidirem destruir.
Para quem quiser continuar no euro, não há alternativa à actual política. Apesar de tudo, é melhor seguir as regras impostas pelos alemães do que tentar quebrá-las. Os gregos estão aí para provar esta tese. Neste sentido, considera o anterior governo português “heróico”. Levou a cabo uma tarefa quase impossível e teria sido tão fácil ceder às tentações populistas como fizeram os sucessivos governos gregos desde 2010.
É muito ingénuo pensar que os refugiados podem resolver os problemas demográficos da Europa. Por exemplo, na Alemanha, os que nasceram fora do país têm uma taxa de desemprego 70% superior aos que nasceram na Alemanha. Nos EUA, essa diferença é zero. Para que as coisas funcionassem bem, a Europa teria de ter um mercado laboral semelhante ao dos EUA, em que fosse mais fácil contratar e despedir pessoas. Mas nenhum político europeu tem coragem de defender uma reforma nesse sentido. Mantendo-se o actual estado das coisas, esta história dos refugiados na Europa vai acabar muito mal. Os refugiados só vêm para a Europa, um continente em "declínio irreversível", porque os EUA estão muito longe, mas atravessar o Atlântico continua a ser o objectivo e o sonho de muitos.
A eleição de Obama foi muito importante simbolicamente. Mas Obama cometeu imensos erros estratégicos em termos de política externa e hoje o médio oriente está mais caótico do que nunca – por exemplo, o presidente americano parece não perceber, ao contrário de Putin, que não se pode derrotar ao mesmo tempo o Estado islâmico e Bashar al-Assad. Quando não há poder, há caos, e caos no médio oriente é o que interessa a Putin para fazer o barril do petróleo voltar aos 100 dólares. Mas os europeus apaixonaram-se por Obama e, talvez por isso, tenham dificuldade em perceber e ver as asneiras do homem, que, por sinal, é o presidente americano do pós-guerra que menos importância deu à Europa. Niall Ferguson não se espanta com o desempenho medíocre de Obama. Que outra coisa se podia esperar de alguém que antes de ser presidente do país mais poderoso do mundo tinha como única experiência executiva ser dirigente associativo em Chicago?

19 comentários:

  1. Que grande lata. Falar de erros estratégicos de Obama, no Médio Oriente, quando aquele que acolitou, John MacCain, por ali se passeia, espalhando gasolina, a tirar fotografias com os terroristas que combatem os últimos regimes seculares da região. Supremo cinismo.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Pode perfeitamente falar nos erros de Obama. Os erros de McCain não apagam os de Obama, que ainda por cima tem muito mais responsabilidade do que o Senador do Arizona.

      Vocês não são capazes de discutir factos, fulanizam tudo. Isso é falta de argumentação.

      Eliminar
    2. Não, in fact, não é fulanização. Uma das principais razões para o Médio Oriente estar na situação em que está é a sabotagem dessa região por aqueles que Ferguson apoia. Riscar o fósforo e depois gritar que os outros não apagam o fogo é, sim, o cúmulo do cinismo.

      Eliminar
  2. A apreciação de Ferguson sobre Obama está certíssima. Se ele não fosse negro e Democrata seria considerado um dos piores presidentes dos EUA em matéria de política externa. Fraquíssimo. Os EUA foram de um extremo ao outro. Depois do "imperialismo" de George W. Bush meteram um medricas na Casa Branca.

    O último presidente americano que estava à vontade na função de líder de uma superpotência foi George H. Bush, porque tinha sido "treinado" para isso. Foi militar, congressista, diplomata e finalmente Vice-Presidente antes de ser Presidente. Dos que se lhe seguiram nenhum tinha um currículo que se visse, e o filho tentou compensar isso com excesso de beligerância, o que é reconhecido pelo pai na sua biografia.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. O acordo a que chegou com o Irão pode vir a revelar-se histórico. Esperemos antes de fazer estas sentenças tão catastróficas.

      Eliminar
    2. Histórico para quem e porquê? O 11 de Setembro também foi histórico.

      Eliminar
    3. O mesmo se dizia do acordo de Munique de 1938.

      Eliminar
  3. "Os EUA foram de um extremo ao outro."

    Não sei se o Khadafy (se pudesse responder) e o Bashar al-Assad concordariam.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Não é comparável à guerra do Iraque. O modos operandi do Obama é atacar com drones, com os seus "soldadinhos" seguros na base (mesmo que morram ainda mais civis assim...) e as "Primaveras" Árabes. Toca e foge.

      Eliminar
  4. Há uma coisa que os europeus não compreendem ainda: o Obama foi eleito para não se importar com a Europa. Depois da guerra do Iraque falhada, os americanos estavam fartos de ser ridicularizados por quererem ser a polícia do mundo. Não se pode derrotar ISIS e al-Assad ao mesmo tempo, mas também não se pode ter um Europa fraca e uns EUA fracos ao mesmo tempo.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. "EUA fracos ao mesmo tempo"

      Há quem ainda não tenha entendido que os EUA estão fracos. Acham que o "leading from behind" é "estratégia".

      Eliminar
  5. O Obama pode ou não ter conduzido a política externa americana da melhor maneira, mas achar que a confusão no Médio Oriente é culpa dele é fazer de nós parvos.

    O principal culpado pela confusão (actual) no Médio Oriente foi o antecessor de Obama que resolveu brincar ao "world building" no Iraque. Não tivesse Saddam sido derrubado e hoje não tinhamos ISIS. Uma coisa foi o Afeganistão em resposta ao 11/9 - pode-se concordar ou não, mas era uma resposta proporcional. Agora, o Iraque que, ao contrário do Afeganistão, era uma peça fundamental para a estabilidade da região?

    Depois, e conjuntamente com o Iraque, o erro maior foi a Líbia (o Egipto acabou por auto-corrigir-se, apesar do disparate - esse sim Americano - de não se opor ao derrube de Mubarak). E esse erro foi 100% Europeu e muito francês.

    O Obama tem culpas no cartório? Muito provavelmente, mas comparado com o antecessor é um génio da diplomacia internacional.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Eu também acho que a guerra do Iraque foi um enorme erro e tragédia. Mas é um bocado como o euro, depois de estar feito não se pode desfazer facilmente porque os custos do desmantelamento são enormes. Obama calculou mal esses custos, aliás ninguém percebe bem qual é a sua política, se é que tem alguma, e é esse o problema e a tragédia.

      Eliminar
    2. Zé Carlos, a política dele é fazer guerra sem "boots on the ground".

      Eliminar
    3. JCA, que custos? O Obama tem (mal, na minha opinião) mantido uma posição até muito afastada da situação - umas bombas aqui e acolá e um material de para-quedas (que acaba nas mãos erradas), mas pouco mais. Parece-me óbvio que por tropas no terreno está fora de questão (como aponta a Rita), mas ter jogo duplo com os Curdos (por causa da Turquia) ou vir com disparates de que o Assad tem de sair já, não ajuda nada a situação.

      Para quem não se lembra, foi a administração Obama (através de Kerry, talvez por engano) que cancelou uma acção militar no país por causa de armas químicas (que, ao contrário do Iraque, existiam).

      Mas o que preocupa agora não é Obama, é o que vem a seguir. Se eu votasse nos EUA, votaria provavelmente Republicano, mas ao centro (os chamados Nixon Republicans - e eu que até aprecio o Nixon) mas nas próximas eleições votava Democrata. Os candidatos republicanos são de fugir.

      Eliminar
  6. Se algum outro candidato que não Rand Paul ou Bernie Sanders ganhar as eleições o Mundo está futricado.

    ResponderEliminar
  7. Também votava nos democratas nas próximas eleições. Não sou nenhum fã da Hillary, longe disso, mas não tenho dúvidas de que será muito melhor presidente do que o Obama - se não ganhasse as próximas eleições, seria uma enorme surpresa. Como diz o Carlos Duarte, os candidatos republicanos são realmente de fugir. Mas o NG também é capaz de ter razão: "o mundo está futricado".

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Eu há 8 anos, contra a voz corrente, era um apoiante ferrenho de Hillary. Mas, não sei porquê, os americanos não me ouviram.

      Eliminar

Não são permitidos comentários anónimos.