sexta-feira, 11 de dezembro de 2015

Um caso histórico

Um homem americano contraiu empréstimos assegurados pelo estado americano para financiar a educação dos seus três filhos. Deve $246.500. Entretanto, ele perdeu o emprego, a casa onde vivia também foi penhorada pelo banco, e a sua esposa ganha apenas $13.200 anualmente que é o salário com que vivem. Este homem quer que lhe seja permitido anular a dívida através do processo de falência, mas a lei americana não permite que se anulem dívidas contraídas para pagar a educação, a não ser em casos muito excepcionais. O que é um caso excepcional? Esse é o foco do julgamento. Mais detalhes do caso, podem ser lidos na Bloomberg.

Já é a segunda vez que leio sobre este caso e fico sempre muito decepcionada com as notícias. A dívida foi feita para educar os filhos e em nenhum sítio se menciona o que os filhos fazem. Porque é que os filhos não ajudam o pai a pagar o custo da educação que receberam? Essa pergunta nunca é respondida nos artigos. E depois, acho $246.500 uma enormidade para educar três filhos. Por exemplo, nos EUA, os jovens podem financiar parte da sua educação através de um programa de "Work study", em que o jovem obtém um empréstimo e paga-o através de horas de trabalho na universidade. É bom para o governo, que não fica sujeito a não pagamento, e para o jovem, que assim adquire experiência e educação e não acumula tanta dívida.

Há também a questão do custo da universidade. Há universidades para todos os bolsos nos EUA. Quem precisa de financiamento tem acesso a muitas bolsas de mérito, empregos part-time, bolsas de necessidade, etc. Não é preciso acumular dívidas de tanto dinheiro. Se o jovem decide gastar tanto dinheiro e o pai ajuda a gastar, porque é que os contribuintes americanos têm de suportar estas escolhas?

Imaginem se todos os pais fizessem o mesmo: financiavam a educação dos filhos e depois abriam falência e não pagavam. O que é que isso faria aos outros estudantes que viriam depois deles? O estado não teria tanto dinheiro para financiar a educação de quem vinha depois. Notem que nos EUA paga-se menos impostos do que na Europa, mas mais pessoas têm acesso a educação universitária porque há muitas maneiras de arranjar dinheiro para se pagar os estudos. E isto já dura há décadas!

Em 1996, eu fui a dois bancos portugueses para pedir um empréstimo para vir estudar nos EUA. As pessoas olharam para mim como se eu tivesse caído da lua. Não faziam. Eu vim para os EUA sem ter o dinheiro para o curso todo, trabalhei part-time na universidade assim que cheguei. O meu departamento, como parte do programa de novos alunos de mestrado, "obriga-nos" a falar com todos os professores para conhecermos o departamento, para ver em que cada um trabalha, e para ver se os nossos interesses de investigação se alinham com os de um professor. Eu precisava de uma bolsa. Ao fim de quatro meses, um professor ofereceu-me uma bolsa de estudo para trabalhar num projecto dele. A única coisa que eu tive de fazer foi andar de porta em porta a falar com professores.

É lógico que eu tinha uma vida muito frugal: não tinha carro, vivia na residência mais barata do campus, comprava coisas em segunda mão... Mas não era a única a viver assim: muitos dos meus amigos financiavam a sua educação a trabalhar em restaurantes, a cuidar de pessoas de idade, a trabalhar dentro do campus, a vender livros, CDs e outras coisas em segunda mão, etc. Fazer vida de rico e usar os pais para pagar toda a educação é uma escolha, não é uma necessidade, nem um direito. Os meus pais ajudaram-me, mas eu depois também os ajudei quando fiquei com a vida organizada. Não tive almoços grátis.

4 comentários:

  1. Nos EUA não se pagam muito menos impostos do que na Europa. As taxas de IRS são parecidas e as de IRC até são, na média, mais elevadas. Pagam-se impostos e, praticamente, os únicos serviços públicos decentes são o ensino primário e secundário (nalgumas regiões) e as vias de comunicação. Tudo o resto é pago, movido a seguros, dívidas ou peditórios. Acho que o estado social português em que cresci, com saúde, ensino superior e segurança social públicos com qualidade, gera menos desigualdade de oportunidades e de sobrevivência. Será uma desgraça não ser capaz de arredondar as contas que o preservem.

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    1. Sim e não. Em primeiro lugar, há que ter em conta que para além do imposto federal, há os impostos estatais. Ou seja, olhar para os escalões do imposto do rendimento não é suficiente. Depois, nos EUA, as deduções são muito mais generosas: por exemplo, o dinheiro pago em juros de empréstimos à habitação não paga impostos, pode-se adiar o pagamento da contribuição para as contas poupança-reforma para depois da reforma (o máximo que se pode contribuir anualmente é $18.000 nas contas patrocinadas pelos patrões, mais $5.500 no IRA), etc. Ou seja, é perfeitamente possível, um casal ganhar quase $100.000 por ano e pagar apenas 8% disso em imposto de rendimento federal, se tiver deduções suficientes que lhe reduzam o rendimento colectável.

      O nível de desigualdade em Portugal e nos EUA, se visto pelo indice GINI, é muito comparável. O que Portugal tem menos é variância, pois há mais apoios do estado e quem ganha mais paga muitos mais impostos do que aqui. Mas tenho a mesma impressão: as oportunidades que eu tive em Portugal não estarão disponíveis para a actual geração de crianças. E grande parte disso tem a ver com má gestão do país e abusos.

      Há uma grande diferença na atitude dos americanos e dos portugueses. Os portugueses acham que têm direito; os americanos acham que não têm direito. Quando um político tem uma ideia para aumentar a despesa, é muito comum o americano perguntar imediatamente quem é que paga aquela fartura. Por isso é que o Obamacare foi tão problemático. Outro exemplo emblemático foi o custo da Guerra do Iraque, a presidência Bush desorçamentou a guerra e escondeu o verdadeiro tamanho do défice orçamental; só na administração Obama é que a guerra foi orçamentada. Os Republicanos sabiam que os americanos não iriam gostar de ver a conta.

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  2. Acho que aqui, nos EUA, os gastos militares são muito menos questionados do que os gastos sociais. Aliás, muita da discussão entre os candidatos republicanos, das primárias, está no despique sobre o qual vai gastar mais dinheiro dos contribuintes americanos no orçamento de defesa. Só Rand Paul, muito isolado, mostra querer respeitá-lo.

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    1. Os gastos sociais dos EUA são insignificantes quando comparados com os apoios às empresas e os gastos militares.

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