sexta-feira, 16 de outubro de 2015

O anti-europeísmo pode ser mainstream

O que mais distingue o debate político em Inglaterra e em Portugal é o anti-europeísmo. Em tudo o resto há pontes, se não mesmo uma sobreposição. O último confronto eleitoral foi entre um governo de coligação de direita e um partido de centro-esquerda que não quer perder os votos da direita, não quer perder os votos do centro, e acaba a perder os votos da esquerda, perdendo assim as eleições. Cá e lá. Discute-se o modo de financiamento do serviço nacional de saúde, a vantagem de ter uma televisão pública, a eficácia das medidas de austeridade na redução do défice, e como aumentar a produtividade e diminuir o desemprego. Existirão diferenças de grau, claro, e no tempo, também: cá, a discussão sobre os serviços públicos com gestão privada ou entregues a privados está em como reverter as políticas dos anos 70 e, em Portugal, em como as iniciar. São diferenças no grau e no tempo mas em pouco mais.  

O anti-europeísmo inglês é que não tem qualquer paralelo no debate político em Portugal. Nem sequer tem paralelo com o ainda residual anti-europeísmo em Portugal. Bom, na verdade, em relação ao anti-europeísmo português, não só o inglês não tem paralelo, como até se pode definir como o seu oposto. O anti-europeísmo em Portugal é por aquilo que a Europa deveria ser, mas se recusa a sê-lo. O anti-europeísmo inglês tem a ver com o que a Europa não é, e julga ser. Para o inglês, está por provar que aquilo que une os 28 países da União seja mais forte do que aquilo que une Inglaterra a outros países que estão fora da União. Quando Cameron diz que quer ficar na Europa, mas nos seus próprios termos, está a dizer que não quer ficar nos termos em que o resto da União se julga basear. Está a pôr em causa a própria identidade da Europa construída enquanto oposição ao resto do mundo - oposição, diferenciação, que Inglaterra simplesmente não vê. E daí tudo o resto decorre. Em particular a recusa de que, em nome dessa identidade que a seu ver não existe, se queiram unificar países que são muito diferentes entre si.  A ideia de que a Comissão Europeia não está a unir a Europa, mas sim os países da Europa. Que não está a aproximar as pessoas da Europa, mas sim as pessoas entre elas. Que não está a formular políticas para conduzir todos os países a um destino comum, mas políticas que obrigam países que já estão onde querem - como Inglaterra - a caminhar na direção de países que não estão exatamente lá. E, por fim, a ideia de que, não tendo desígnio último, a Comissão está apenas a servir-se a si mesma. 

Não concluo. Ainda só estou na fase de uma genuína surpresa com esta impossibilidade de encontrar paralelo com a maneira como Inglaterra e o Continente vêem a mesma questão (e sim, digo Inglaterra, e não Reino Unido, propositadamente, dado que a Escócia e Gales parecem-me ter uma visão bastante diferente). 

7 comentários:

  1. Eu acho que a Europa sofre de uma ilusão qualquer. Julga ser o epítome da civilização e humanidade, mas, na prática, fica sempre tão aquém das expectativas que constrói. E nesse aspecto, os EUA, cheios de problemas, complexos, e contradições parecem-me ao menos uma pouco mais humanos: são completamente malucos, cometem montes de erros, mas é muito comum encontrar americanos que admitem os seus "shortcomings" e até pedem desculpa de ser assim.

    ResponderEliminar
  2. Luis Gaspar, excelente esta entrada. Apesar de saber do anti-europeísmo inglês, nunca tinha pensado nesses termos.

    ResponderEliminar
  3. Obrigado, Luís. Rita, eu concordo em parte com o que dizes, mas é curioso como, quer eu quer tu, partimos do pressuposto que a Europa tem mesmo uma distância entre o que é aquilo que depois faz (daí, acho, o teu ficar aquém das expetativas). Acho que os ingleses não aceitariam essa distância porque achariam que não há expetativas nenhumas que possam ser criadas simultaneamente pela Hungria e por Malta, pela Roménia e pela Alemanha, pela Grécia e pela Noruega. Eu não sei, não consigo ter uma opinião sobre o que é a Europa, e se é alguma coisa ou apenas um conjunto de países ou regiões. Acredito sinceramente que tu, que vives nos EUA, com mais facilidade consigas ver a coisa como ela é.

    ResponderEliminar
  4. O "euro-cepticismo" inglês é uma salutar manifestação de independência intelectual e moral, e uma manifestação de carácter. Sem discordar fundamentalmente dos pontos que ilustra como separando as atitudes portuguesa e inglesa face à "Europa", há um que, a meu ver, importa realçar: os ingleses não têm complexos de inferioridade, enquanto que os portugueses devem ser, entre todos os europeus, os mais afectados por esse problema psicológico.

    O problema em Portugal não são os "euro-cépticos", mas sim os euro-beatos (estes não têm direito a aspas).

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Segundo a Maria Filomena Mónica, Portugal, na sua qualidade de pobre, não pode ser, como o Reino Unido, um euro-céptico.

      Eliminar
  5. «(...) os ingleses (...)achariam que não há expetativas nenhumas que possam ser criadas simultaneamente pela Hungria e por Malta, pela Roménia e pela Alemanha, pela Grécia e pela Noruega.»

    Eu não creio que franceses e alemães pensem, neste capítulo, de modo diferente dos ingleses. Só que estes nunca tiveram ambições hegemónicas no Continente, ao contrário dos dois primeiros.

    ResponderEliminar
  6. "Está a pôr em causa a própria identidade da Europa construída enquanto oposição ao resto do mundo". Luís Gaspar, uma identidade não se constrói sempre por oposição a alguma coisa? Nós sentimo-nos (quem se sente, obviamente) europeus quando confrontados com os americanos. Mas depois, com eles e mais uns, sentimo-nos Ocidentais, por contraponto a árabes, africanos, asiáticos... E todos seríamos um todo se aparecessem extra-terrestres. Os portugueses sentem-se como tal, mas também são muito diferentes entre si; um alentejano distingue-se de um minhoto. E, contudo, semelhantes se tornam quando comparados com alemães.

    ResponderEliminar

Não são permitidos comentários anónimos.