sexta-feira, 30 de outubro de 2015

Os liberais estatais e a farsa da ironia

Há dois fenómenos que acho particularmente fascinantes na sociedade portuguesa e que não me parecem suficientemente aprofundados, O primeiro é que os portugueses têm uma dificuldade embaraçante em reconhecer a ironia. Mesmo quando a farsa é muito óbvia, há sempre que ache que é a sério. Há uns anos, o Bruno Nogueira teve um programa na RTP que caricaturava os reality shows. A certa altura teve de mudar o guião e tornar a coisa cada vez mais óbvia - cortar cenas a meio, mostrar erros na produção -, para convencer as pessoas de que aquilo era a gozar. Somos, digamos assim, um povo que à farsa responde com farsa, que ironicamente não percebe a ironia, que caricatura a sua própria caricatura. 

O segundo fenómeno é que praticamente todos os liberais portugueses que eu conheço trabalham no Estado - na academia, nos gabinetes dos secretários de estado ou ministros, ou em empresas públicas. Admito que a minha amostra esteja enviesada. Mas não estou a mentir quando digo que eu, pessoalmente, não estou familiarizado com praticamente nenhum exemplo contrário. De entre os liberais que conheço, são muito raros os que tiveram experiências minimamente duradouras a trabalhar por conta de outrém em empresas privadas, ou que tenham sido self-made men ou women. Ao contrário, a maioria das pessoas de esquerda que eu conheço trabalham por conta de outrém em empresas privadas, e, em alguns casos - mais do que os liberais que conheço - são empresários e criaram o seu próprio negócio. 

Não sei bem que conclusão tirar destes dois fenómenos - que certamente não têm ligação. Mas encontrei um exemplo que reúne os dois. Um perfil no facebook com o título "Jovem Conservador de Direita", com o motto "Nuno Melo Obrigado Mentor: "quando encontras pedras no caminho, privatiza", e com posts tão geniais como este: "Se eu não fosse assessor do Secretário de Estado, acham que ia ficar parado? Ia meter mãos à obra e criar um computador novo, um diferente tipo de post it ou uma empresa de formação. Por isso não me venham com conversas. Trabalhem, lutem que a felicidade vai aparecer", e ao qual respondem várias pessoas repreendendo o autor por ser um hipócrita

É genial. 

20 comentários:

  1. Fico sempre confusa quando leio os termos "liberal" e "conservador" aplicados a Portugal porque, nos EUA, ser liberal é ser de esquerda e conservador é ser de direita.

    Discordo desse liberal que mencionas. Há uma coisa óbvia que as pessoas esquecem: há sinergias e benefícios, tanto para os particulares, como para a sociedade, de se trabalhar por conta de outrém. Se todos nós trabalhássemos por conta própria, tudo seria muito mais caro e o esforço necessário para manter o próprio negócio seria enorme, o que atrasaria a inovação.

    Há empresários portugueses que eu conheço que são muito de esquerda e me dizem que a minha opinião não vale nada porque eu nunca tive o meu próprio negócio. No entanto, eles mantêm relações muito "íntimas" com pessoas que fazem parte do aparelho do estado.

    Eu não tenho estômago para negociatas, nem tenho o desejo de enriquecer ou ser pobre, apenas quero uma vida digna, logo contento-me em dar o meu melhor a trabalhar por conta de outrém, que me pague um salário decente, seja essa entidade estatal ou privada. Por acaso, já trabalhei nos dois lados e, por outro acaso, ter um salário decente é mesmo isso: um acaso. Há muita gente que trabalha muito e nunca terá um salário que compense o seu esforço, nem o seu contributo para a sociedade.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Rita, inteiramente de acordo com o teu último parágrafo, que podia ter sido eu a escrever :)

      Eliminar
  2. Luis,
    Sou de uma geração mais nova, e admito que também a minha amostra esteja enviesada. Acontece é que está enviesada para o lado oposto à sua...
    Os meus colegas de faculdade(s), ambas escolas de negócios, são todos liberais e de direita (mais ou menos chegados aos extremos, mas tendencialmente acreditam na economia de mercado, no esforço, na individualidade). 85% trabalham por conta de outrém, 20% criaram a sua própria empresa (alguns acumulam, daí o overlap de 5%), estimativas alto nível. Conheço 1 que trabalhe no Estado (N=~250).
    Já os meus amigos de esquerda, são invariavelmente das áreas ligadas às artes. Artistas mesmo, 50% dos arquitectos, 30% dos veterinários, 10% agricultores... Nenhum destes trabalha por conta própria, a não ser a minha prima que, bem, não trabalha...vai pintando quadros. (N=~100)
    Vale o que vale, são circulos fechados e que nos moldam também - mas assim fica com um exemplo distinto.
    C

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Catarina, fiquei com a ideia que está a dizer que é de uma geração mais nova que a minha. Pode ser verdade, mas deixe-me que lhe esclareça que tenho 35 anos. E que é a segunda pessoa que creio ter cometido um equívoco com a minha idade hoje. A primeira foi um colega com quem trabalho há 2 anos e que achava que eu tinha 20 e tal anos. Não tenho a certeza de ter sido um elogio.

      Como todas as amostras pessoais, são enviesadas. A minha curiosidade é mesmo genuína. Porque é que conheço tanta gente que advoga o empreendedorismo, o risco, a incerteza, até a emigração, quando não nunca os experimentaram ou, pelo menos, nunca os abraçaram. Não tenho nenhuma resposta simples para isso.

      Eliminar
  3. Luis:
    pode acrescentar mais um liberal que vive do erário público na sua amostra enviesada - sou liberal (no sentido "arcaico" do termo) e, para além de ter trabalhado num negócio de família, a minha vida profissional resume-se às funções desempenhadas em duas universidades públicas.

    Quanto ao seu post, fiquei na dúvida... Em primeiro lugar, um conservador não é um liberal, é o oposto. Em segundo lugar, você está a usar o cúmulo da ironia ao trazer para aqui uma conta de paródia do facebook?

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Percebo que queira (?) valorizar o facto de alguém responder "hipócrita", mas há muito mais ironia em perfis reais :)

      Eliminar
    2. Obrigado Carlos. Sim, era isso que estava a fazer, usar o cúmulo da ironia. E, se é verdade que um "conservador" não é necessariamente um liberal, diria que em Portugal, desde a demissão de Manuel Monteiro do PP, os dois termos confundem-se. Concorda?

      Eliminar
    3. Se concordasse, considerar-me-ia um anarquista :)

      Eliminar
  4. Trazer à baila a entidade patronal de liberais e socialistas, baseado numa amostra pessoal e não representativa, é uma perspectiva inovadora e que enriquece bastante o debate político.

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. É mais ou menos como o Galileu fazer inferências acerca do movimento de objectos no espaço depois de olhar para um pêndulo na catedral de Pisa. Ou a caricatura que nós temos de Newton formular a teoria da gravidade depois de ser "atacado" por uma maçã.

      Eliminar
    2. Não pretendo enriquecer o debate político com o meu post, Carlos. Quis apenas constantar um padrão interessante, baseado numa amostra declaradamente pessoal. Certamente que isso pode ser discutido sem que o "debate político" se ressinta :)

      Eliminar
    3. Afinal, o problema das ironias é encontrar o interlocutor certo :)

      Embora a minha amostra pessoal se dê a conclusões diferentes da tua, há uma possível explicação para termos tantos empresários socialistas: será mesmo possível ter uma emrpesa de sucesso em Portugal sem que os seus fundadores tenham uma relação próxima do estado? O estado é um grande cliente e os concursos públicos têm regras opacas. Ninguém faz crescer uma empresa se não tiver esse tipo de conhecimentos. Obviamente, quem cresce à sombra do socialismo, defenderá o socialismo.

      Mas já que estamos numa de exemplos avulsos, fica o meu. O meu primeiro emprego depois da universidade foi numa empresa privada a funcionar numa indústria onde os sindicatos não entram, não existem horários de trabalho, feriados ou fins-de-semana, onde a legislação laboral é um conceito desconhecido e onde os salários são altos. Enfim, um paraíso para neoliberais como eu. O meu primeiro trabalho? Um plano quinquenal para o ministério da Economia de um governo socialista. Emigrei um ano depois (nesta lógica, enviesada, a única coisa coerente que um liberal português tem a fazer).

      Eliminar
  5. Luís, as categorias liberal/esquerda/direita são onde tu encaixaste as pessoas ou resulta de auto-rotulação? É que eu acho que há muitos equívocos, não só porque os conceitos são em si complicados e lhes falta unanimidade, mas também porque as próprias se pessoas se auto-denominam coisas que depois não são muito coerentes com o seu discurso/prática. Eu sei que o teu ponto é precisamente esse, mas deixa-me dizer-te que não vejo nenhuma contradição teórica entre ser liberal (no sentido de defender um Estado menos interventivo e mais regulador) e ter um emprego público. Tal como não acho que seja inconsistente alguém de esquerda usar um cachecol Burberry's. Será nos casos extremos, ou seja, naqueles que querem um Estado inexistente e na esquerda que acha que todos devemos alinhar pelo mesmo (que, por definição, terá de ser o mínimo).
    O que me parece ser mais geral - e não se reportar, pois, a nenhuma ideologia em particular, nem sequer se circunscrever a aspectos ideológicos - é as pessoas defenderem "princípios" cuja generalidade os exclui automaticamente se eles colidirem com os seus interesses pessoais. Mas acho que há um nome para isso.

    ResponderEliminar
  6. Trata-se de uma página - não de um perfil - satírica.

    ResponderEliminar
  7. ahahah os estereótipos conferem com o meu círculo de conhecidos. O Funcionário Público ou professor universitário/bolseiro de direita e liberais. Ou então o pequeno empresário liberal mas que tem como único cliente entidades publicas.

    O seu post lembrou-me de umas das respostas mais divertidas no parlamento em que um ex-administrador da CP vem dizer que o "estado é um mau gestor" e a ana drago lhe responde que não ele é que foi um mau gestor.
    Deixo o link para se rirem um bocadinho:
    http://ladroesdebicicletas.blogspot.pt/2015/06/memoria-vi.html

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Muito bom. E tem toda a razão a Ana Drago, apesar de me parecer que daí não retira as implicações devidas.

      Eliminar
  8. A minha experiência pessoal (fortemente enviesada):

    - os empresários com empregados que conheço acho que são todos de direita
    - uma grande proporção de funcionários públicos na esquerda (atenção que trabalho numa instituição pública e sou militante de um partido de esquerda em que grande parte dos militantes são professores se trabalhasse numa empresa privada ou militasse num partido com uma base mais operária, de certeza que conheceria mais traalhadores do sector privado de esquerda)
    - não é raro haver microempresários de esquerda, sobretudo se os seus clientes forem prováveis beneficiários de politicas redistributivas (exemplo clássico: o dono de um café num bairro operário - muitas vezes são ainda mais esquerdistas que os clientes)

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Caro Miguel Madeira,

      Já que estamos em enviesamentos:

      - Conheço muito poucos empresários de "direita liberal". A maioria que conheço são efectivamente de direita, mas ao centro (é quase tudo PSD ou um PS MUITO ao centro).
      - A função pública "como um todo" é normalmente ao centro político, um pouco ao seu lado esquerdo (ou seja, PS ou "ala esquerda" do PSD). As excepções é a camada "intelectual", muito ligada à academia e artes, que é mais de esquerda (BE).
      - A CDU é um caso à parte e tem um representatividade mais regional e histórica (quem era da CDU na altura do Karl Marx, continua a ser - ou deu como herança).
      - A direita liberal está acima de tudo em camadas universitárias jovens, ligadas a cursos de gestão ou engenharia (é um pouco o contra-ponto ao BE nas artes). Ou então em gestores (NÃO em empresários, em gestores).

      Eliminar
  9. Se, com um pouco de "ciência", for desmontada a "moeda" de "Esquerda Caviar" ficará igualmente desmontada a "moeda" de "Liberais Estatais". Ou seja, trata-se de simples "buzz words" que lutam uma com a outra, de ficção em ficção. Quanto à ironia o postal faz todo o sentido pelo que limito-me a transcrever 5 "troços" que abrangem muito mais que Portugal:


    "os portugueses têm uma dificuldade embaraçante em reconhecer a ironia";
    -
    "Mesmo quando a farsa é muito óbvia, há sempre quem ache que é a sério";
    -
    "povo que à farsa responde com farsa";
    -
    "que ironicamente não percebe a ironia";
    -
    "que caricatura a sua própria caricatura".

    ResponderEliminar

Não são permitidos comentários anónimos.