quinta-feira, 22 de outubro de 2015

Pela nossa saúde!

Em Novembro, nos EUA, abre a época de rever e de renovarmos o antigo ou escolhermos um novo seguro de saúde no Marketplace, o mercado de seguros de saúde virtual que foi criado pelo Affordable Care Act (AAC). Ao conversar sobre seguros de saúde com uma amiga que tentou engravidar, mas não conseguiu, descobri ontem mais uma coisa que me deu a volta ao estômago.

Antes da introdução do Obamacare, como é conhecido o AAC, era permitido às seguradoras recusar a alguém ou terminar um seguro de saúde. Uma das razões usadas para que fosse recusado a uma mulher um seguro de saúde era os tratamentos de fertilidade. Uma mulher que os tivesse feito era considerada "uninsurable". A única forma que ela tinha de ter seguro de saúde nessas condições era através do emprego dela ou do marido, pois a lei não permitia a uma empresa que oferecesse seguro de saúde aos seus empregados recusar-lhes seguro de saúde.

Mas as seguradoras cobriam tratamento de impotência masculina. Já sei que impotência não é equivalente a infertilidade, mas porque é que as mulheres tinham de ser descriminadas, mesmo sendo saudáveis, só porque tentaram ficar grávidas? É uma questão económica: gravidezes devido a tratamento de fertilidade têm a probabilidade de ser mais caras do que gravidezes naturais. Uma das razões é que, como o tratamento é muito caro e quase sempre é pago pelo paciente e não pela seguradora; muitas vezes, as mulheres escolhem estratégias mais arriscadas e baratas para engravidar e acabam por ter vários embriões implantados ao mesmo tempo. E mesmo que a mulher engravide naturalmente, se ela teve problemas em engravidar, é sinal que algo pode estar a funcionar menos bem e que venha a ser descoberto mais tarde.

Estamos a ver em alguns países o efeito de não ter bebés suficientes para manter a população. Ter bebés suficientes é um bem público. O Japão, que tem a sociedade mais envelhecida do mundo, não consegue crescer e a sua dívida pública continua a aumentar. Uma das últimas medidas que o país tomou para lidar com o problema foi informar as universidades de que deveriam fechar os departamentos de humanísticas e ciências sociais pois esses cursos parece que não oferecem nada de produtivo ao país. (Reparem que o Steve Jobs fez exactamente o oposto: uma companhia que consiga casar a parte humanística com a parte científica consegue um produto muito mais vendável.) Portugal tem a terceira sociedade mais envelhecida do mundo. Os EUA só têm um país mais jovem porque os imigrantes ilegais têm muitos bebés e há um influxo constante de imigrantes.

Muitas vezes, as seguradoras agem como cartéis: era normal uma seguradora perguntar ao paciente se ele já tinha sido recusado por outra e isso era usado para decidir se iam ou não vender um seguro de saúde à pessoa. Por outro lado, mesmo hoje, o paciente tem obrigação de dizer a verdade, pois omitir informação ou mentir pode ser usado para a seguradora recusar pagamento. A seguradora não tem de dizer a verdade.

Por exemplo, quando se escolhe um médico, é da responsabilidade do paciente certificar-se de que ele faz parte da rede da seguradora. Mesmo que a seguradora nos dê o nome do médico, a desculpa da seguradora para não pagar é que a lista pode estar desactualizada e a seguradora diz que é o médico quem tem acesso à informação mais actualizada. E não é só médico. Uma vez, quando eu estava a fazer análises para o meu check up anual, a técnica que me tirou o sangue perguntou-me para que laboratório eu queria enviar as análises, ou seja, qual era o laboratório que trabalhava com o meu seguro. Eu não sabia a resposta e a única maneira de saber a resposta era contactar laboratórios e perguntar se eles tinham um contrato em vigor com o meu seguro. Mas imaginem que eu estava inconsciente por causa de um acidente, a quem é que eles perguntam informação desse tipo? Estão a ver a salgalhada?

Concluindo, a saúde não é um bem privado. Os mercados privados são ineficientes a oferecer cuidados de saúde por várias razões: (i)há assimetria de informação, em que uma das partes na transacção tem muito mais informação do que a outra; (ii) ser doente tem um cariz de mau público, pois um individuo doente pode causar externalidades negativas à sociedade, e ser saudável é um bem público; e (iii) as seguradoras têm poder de mercado.

Compete ao estado gerir a saúde. É muito mais caro e os pacientes ficam pior servidos com um sistema de saúde privado.

9 comentários:

  1. "Concluindo, a saúde não é um bem privado."

    Não estou a ver que se possa concluir tal coisa pelo texto. É tão privado como qualquer risco objecto de seguro (riscos indeterminados, mas cuja percentagem de incidência é relativamente estável e determinável e por isso - segurável, repartindo custos por todos).

    "Antes da introdução do Obamacare, como é conhecido o AAC, era permitido às seguradoras recusar a alguém ou terminar um seguro de saúde."

    Alegar o mau funcionamento de um sector privado não chega para concluir que é um "bem público". Até porque isso leva-nos a ter que inquirir o quanto o edifício regulatório provavelmente cria a sua própria profecia.

    Exemplo: as seguradoras de acidentes de carros parece que vão (ou já) ter de cobrar o mesmo a mulheres e a homens, apesar de ser mais do que sabido estatisticamente o maior risco dos homens versus mulheres. Não se vê logo como isto introduz uma distorção de incentivos? Perante isto, pode dar-se o caso das seguradoras quererem recusar vender seguros a certos perfis-homens.

    Ex: outro exemplo seria um fumador violento pagar uma certa cobertura de saúde, o mesmo que um não fumador.

    Podemos dizer então que não um bem privado porque a partir desse momento as seguradoras recusariam segurar os fumadores mais agressivos? Pelo menos bem mais do que se puderem diferenciar o preço.

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    1. Um doente inconsciente não pode decidir que tratamento procurar, logo argumente como é que tratar a saúde como um bem privado leva a uma solução eficiente para alguém doente e inconsciente.

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  2. Em Portugal (acho, não o tenho, mas tenho 99% de confiança que sim) consigo obter um seguro de saúde independentemente da idade, não impondo condições sobre doenças pre-existentes e não o podem cancelar/não renovar.

    Não conheço bem o tema, embora me faça muita confusão como é possível não obter algo do género nos EUA. Bem sei que há alguma regulação idiota, como ser obrigatório ter pseudo-medicina englobada como a acupunctura, mas esse tipo de coisa não consegue explicar nem 1/10, certamente. Era um tema que gostava que alguém com mais conhecimento pudesse esclarecer ;)

    PedroF





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    1. O único que conheço que se aproxima disso (suponho que estamos a falar de privados e não da ADSE ou do SAMS) é o da MGEN/Europamut e não é "aberto" ao público (nota: aparentemente têm um protocolo com a DECO, pelo que se aproximará de ser aberto ao público). A idade tem influência apenas nos prémios e não têm em contra pre-existências e não o podem cancelar unilateralmente.

      Já agora, esse seguro não é comercial, é mutualista.

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    2. Agora, com o Obamacare é possível toda a gente comprar seguro de saúde porque a lei proíbe as companhias de rejeitarem pessoas. O seguro de saúde em Portugal como compete com o sistema do estado tem de ser barato. Nos EUA, não é assim tão barato porque o estado não compete com o sector privado. O que o estado faz é pagar ao sector privado para cuidar das pessoas que têm mais de 65 anos (Medicare) ou de pessoas muito pobres que estejam qualificadas para ter acesso ao Medicaid.

      Hoje em dia, as companhias de seguro são obrigadas a oferecer seguros a preços razoáveis, mas antes as pessoas que tinham pré-condições tinham de pagar preços exorbitantes por mês, tipo $500/mês/pessoa e acima e, mesmo pagando isso, havia coisas que não estavam cobertas ou eram muito caras mesmo com seguro.

      Um outro problema é que os preços não são claros, nem sequer são uniformes. Uma pessoa que vá ao hospital numa emergência recebe uma conta em casa; se telefonar ao hospital e disser que não tem dinheiro para pagar, reduzem o montante que ela deve porque os preços estão sujeitos a negociação. Quando se vai ao super-mercado os preços são claros antes de nós decidirmos o que comprar; com os cuidados médicos isso não existe, logo não é possível fazer escolhas educadas.

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    3. Rita, isso tem a ver com a "lista de preços convencionada" (chargemaster). Ela é artificialmente elevada, porque ao sê-lo permite às seguradores dizerem que conseguiram descontos de 60% ou 70% face aos preços tabelados. É uma ficção com (muitos) custos.

      Faz esta semana um ano que estava em San Francisco com a minha mulher numa convenção de anestesiologia (ela está neste exacto momento na mesma convenção, em San Diego). O que um tipo aprende nas palestras sobre o sistema de saúde americano ou a falar com os médicos e directores hospitalares é muito elucidativo para um Europeu. O sistema americano de saúde (em termos organizacionais e económicos) não é mau, é péssimo.

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  3. Muito bem, Rita! Aplausos e subscrevo.

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  4. Isto é capaz de ser pedantismo da minha parte, mas suspeito que o que a Rita quer dizer não é que a saúde não é um bem privado (no sentido mais técnico da expressão "bem privado"), mas sim que é um bem cuja provisão não deve ser privada (ou, pelo menos, integralmente privada).

    [à partida até podemos ter bens públicos fornecidos por privados - os blogues andam perto disso - e bens privados fornecidos pelo Estado, como as casas dum bairro social]

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  5. Em meu modesto entender o aspecto essencial que sobressai na breve exposição da Rita é que em questões de saúde - onde estão em causa decisões que podem ditar a vida ou a morte de um ser humano - não é admissível que esta decisão seja ditada pelo estatuto económico do paciente numa comunidade solidária que se pretenda digna desta qualificativo.

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