quarta-feira, 7 de outubro de 2015

Sobre o passado do euro

O Ricardo Paes Mamede disse ontem, no novo programa de economia da RTP3, com o objectivo de criticar os regimes de câmbios fixos (e o euro em particular), que o padrão ouro causou duas guerras mundiais. Não conhecia essa tese.

O padrão ouro acabou por causa da Primeira Guerra Mundial (PGM), dada a necessidade de financiamento dos Estados – o período anterior à PGM, também conhecido por Belle Époque, foi um período de prosperidade. Por outro lado, uma das razões para a opção por um regime de câmbios fixos (com possibilidade de ajustamento) no pós-Segunda Guerra Mundial – o Sistema de Bretton Woods – foi precisamente a associação, então comum, entre as taxas de câmbio flexíveis, a instabilidade dos anos trinta e a segunda guerra mundial. Só na década de 50, com o contributo fundamental de Milton Friedman, as virtualidades dos câmbios flexíveis voltaram a estar em cima da mesa.

De facto, os trinta anos gloriosos, que se seguiram ao pós-Segunda Grande Guerra, coincidiram com a existência de um regime de câmbios fixos. A crescente dificuldade em controlar os fluxos de capitais entre países, a partir dos anos 60, levou ao colapso de Bretton Woods no início dos anos 70. Desde o fim daquele sistema que as principais economias, sobretudo as europeias, procuraram restaurar a estabilidade cambial. As reuniões, formais e informais, entre os principais bancos centrais com vista a estabilizarem o valor cambial do dólar, do iene e do marco sucederam-se até meados dos anos 80. A criação do euro resulta também desse desejo de estabilidade monetária.

Paes Mamede parece atribuir todos os males da economia portuguesa e europeia ao euro e acreditar que o regresso aos câmbios flexíveis restauraria a prosperidade. No entanto, não só os sistemas de câmbios fixos – padrão ouro e Bretton Woods - estiveram associados a longos períodos de prosperidade, como os câmbios flexíveis, sobretudo para pequenas economias abertas, têm sido uma fonte de instabilidade e incerteza, com todos os efeitos negativos que daí decorrem para a actividade económica e bem-estar da sociedade.

Ou seja, o grande desafio da zona do euro não é restaurar as moedas nacionais, mas sim encontrar mecanismos que evitem o aparecimento dos desequilíbrios e que facilitem a sua correcção. Se isso não acontecer voltaremos a um regime de câmbios flexíveis. Mas esse será um longo período de caos.

8 comentários:

  1. Penso que grande parte dos países que suspenderam o padrão-ouro durante I Guerra restauraram-no nos anos 20 e só o abandonaram nos anos 30, durante a Grande Depressão; imagino que a tese do Ricardo Pais Mamede seja a de que as tentativas de aguentar o padrão-ouro nos primeiros tempos da Depressão contribuiram para a agravar e indiretamente levar ao poder regimes belicistas.

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  2. à decisão da Inglaterra restaurar o padrão ouro em 1925, com Churchill no tesouro, tem sido atribuída o aumento do desemprego nesse país (Keynes tem um artigo muito importante sobre as consequências dessa decsião de Churchill). A restauração do padrão ouro nos anos 20 em muitos país só foi possível com uma forte coordenação de políticas entre os países e um forte apoio dos EUA. O fim do apoio dos EUA, por razões de política interna, levou à saída da França. A desvalorização da moeda francesa permitiu-lhe, com a exportação de desemprego, sair mais depressa da crise. Mas essa exportação de desemprego, como sempre acontece com os câmbios flexíveis entre economias fortemente interdependentes, levou a conflitos. Parece-me que o aumento do desemprego na Alemanha e a ascensão de Hitler ao poder têm por detrás causas bem mais complexas.

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    1. A França saiu do padrão-ouro em 1936, numa altura em que a economia e a politica europeias já estavam mergulhadas numa crise profunda - e nem sei se os conflitos eventualmente causados pela desvalorização do franco terão sido muito relevantes (creio que o país que tinha uma pior relação com a França - a Alemanha - até estava em recuperação económica - alimentanda pela indístria de guerra - nessa altura, logo para aí não deve ter havido grande exportação de desemprego).

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    2. Correcto Miguel Madeira - mas o padrão ouro no período entre as guerras foi intermitente, e nunca chegou a ter credibilidade que tinha antes da 1ª GGM. A partir de 1931 entrou em desintegração. No período entre as guerras as desvalorizações sucediam-me dado que os objectivos de estabilização interna se foram sobrepondo aos objectivos de manutenção de uma paridade fixa. Karl Polanyi atribui precisamente a essa pressão do público sobre os decisores políticos o fim do padrão ouro - vou escrever brevemente um post sobre isso.

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  3. Outro ponto - eu até tendo a concordar com o último parágrafo do Fernando ("Ou seja... de caos."), mas cada vez mais vejo um grande problema - é que alguém que queira mudar o funcionamento da zona euro não tem verdadeiramente uma eleição a que se possa candidatar: as eleições para o Parlamento Europeu são pouco mais que uma mega-sondagem, e em cada eleição nacional o funcionamento da zona euro é relegado para a categoria "isso não depende de nós".

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    1. Concordo, esse é o grande problema de uma moeda única sem uma união política

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  4. A associacao entre cambios fixos e periodos de prosperidade esta longe de ser clara. Existe algum consenso, por exemplo, que o padrao ouro foi um dos principais responsaveis pela amplificacao e persistencia da Grande Depressao nos anos 30 (http://www.nber.org/chapters/c11482.pdf)
    E nao e dificil encontrar semelhancas entre os anos 30 e a estagnacao actual, nomeadamente a baixa inflacao.

    "os câmbios flexíveis, sobretudo para pequenas economias abertas, têm sido uma fonte de instabilidade e incerteza, com todos os efeitos negativos que daí decorrem para a actividade económica e bem-estar da sociedade". Exemplos?

    Em todo o caso, nao sei ate que ponto e que e util olhar para a correlacao entre periodos de expansao e regimes monetarios. Em tempos normais o regime monetario e provavelmente neutro. A questao que me parece mais importante e a capacidade de lidar com choques, nomeadamente crises financeiras, e ai o historial dos cambios fixos nao e nada famoso.

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  5. @PT tive o cuidado de escrever 'coincidiram' - e referi esses dois casos como exemplos em que câmbios fixos não coincidem necessariamente com crises. O período entre as guerras é um período com muitas tentativas de restabelecer o padrão ouro anterior à PGM - os esforços dos países por recuperarem a credibilidade das suas políticas; no entanto, a dificuldade em o conseguirem alcançar leva a realinhamentos constantes. Uma das causas da instabilidade do período entre as guerras foi a destruição do sistema monetário internacional que existia antes da PGM. O regresso intermitente ao padrão ouro representou tentativas de repor aquela ordem, tentando por exemplo estabilizar a inflação. E muitos países optaram por não voltar ao padrão ouro nesse período.
    Concordo evidentemente com o seu último comentário: é outra crítica que faço a Paes Mamede e a outros críticos do euro: colocam demasiada ênfase no regime monetário para explicar fenómenos que têm na sua base um fraco crescimento potencial.
    Os efeitos perversos dos câmbios flexíveis em economias fortemente integradas em termos internacionais são óbvios - por essa razão economias mais pequenas tendem a estabelecer um peg com os seus principais parceiros comerciais.

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