quinta-feira, 24 de novembro de 2016

A "corrupção"

No final de Maio de 2004, mudei-me para Fayetteville, AR. Antes de me mudar, muitas pessoas em Oklahoma disseram-me que era uma cidade muito engraçada, com muitos restaurantes locais e uma vida nocturna animada. Fui trabalhar para a Universidade do Arkansas, onde Bill Clinton e Hillary Clinton trabalharam nos anos 70. Se conhecem a biografia de Hillary Clinton, talvez se recordem que depois de ela chumbar o "bar exam" de Washington, D.C., decidiu mudar-se para Fayetteville para estar com o namorado, o Bill Clinton. Foi a senhoria de Hillary que lhe deu boleia de D.C. até Fayetteville. Quando lá chegaram, a cidade era muito diferente da cidade em que eu vivi. Como disse a senhoria de Hillary, aquelas pessoas nem queijo Brie tinham: os requintes da boa cozinha eram desconhecidos. Já quando eu cheguei, um dos restaurantes mais populares e de maior prestígio era o La Maison des Tartes, onde se podia comprar queijos europeus, para além de bom pão, café, e chá.

Quando me mudei em 2004, Fayetteville tinha cerca de 60.000 pessoas, o que parece pouco, mas a cidade de Springdale, mesmo ao lado, tinha para aí 55.000. E depois havia outras cidades coladas, como Farmington, com 2.800 almas, Johnson, Prairie Grove, etc. A menos de meia-hora, pela I-540, havia Rogers e Bentonville, mais duas cidades, cada uma com mais de 30.000 almas. O Noroeste do Arkansas, ancorado por Fayetteville, Springdale, Rogers e Bentonville, contava com uma população à volta de 400.000 pessoas, e na altura já usufruía de uma excelente qualidade de vida, com "hiking trails" nas florestas e mesmo dentro de Fayetteville, a cidade mais liberal da área. Costumo dizer que os hippies mudaram-se para lá. Desde April a Novembro, o Farmer's Market de Fayetteville é um dos pontos altos da cidade, especialmente o do Sábado de manhã. É tão importante que já serviu de case study para a criação de outros Farmer's Markets em outros estados, como Oklahoma.

O Noroeste do Arkansas tem várias sedes de empresas de importância nacional e mesmo mundial, como o Walmart, a Tyson Foods, e a J.B. Hunt. No final dos anos 90, quando Bill Clinton ainda era Presidente, conta-se que os donos do Walmart sugeriram a construção de uma via rápida que ligasse o Noroeste do Arkansas à I-40 que passa por Fort Smith, AR, a tal I-540. A via rápida foi construída e suponho que, nesta altura, alguns de vós já tenham concluído de que é prova da corrupção dos Clinton. Mas enganam-se porque as coisas são sempre muito pouco lineares, como verão a seguir.

O Walmart tem uma política de só fazer negócio com empresas que tenham representação no Noroeste do Arkansas, o que implica que qualquer empresa que queira vender coisas no Walmart tem de ter um escritório na área. A política deles até é mais severa do que isso, pois "proíbe" os vendedores que trabalham nesses escritórios de comprar casa em Bentonville, AR, que é para os empregados da sede do Walmart não serem vizinhos dos vendedores -- conflito de interesse, percebem? Seria mau que os vendedores fossem amigos dos empregados do Walmart. Isso significa que há um influxo de pessoas qualificadas para a área e o mercado imobiliário das redondezas aprecia bastante, até porque com a construção da via rápida, não custa muito ir de Springdale ou Fayetteville até aos escritórios em Bentonville ou Rogers.

Durante a Presidência Bush, o Walmart fez força para que se construísse um aeroporto no Noroeste do Arkansas, mas não pensem que é um aeroporto insignificante porque o XNA tem ligações directas a muitas grandes cidades americanas, como Houston, Nova Iorque, Chigago, etc. E agora, acham que o Bush também é corrupto por se ter construído um aeroporto no meio do pasto? Antes de eu sair do Noroeste do Arkansas, a Alice Walton decidiu construir um Museu nas encostas onde brincava quando era criança, o Crystal Bridges Museum, que é apenas o melhor museu de arte americana dos EUA e compete com os maiores museus americanos na compra de arte. The New York Times chegou a sugerir que a compra do quadro "Kindred Spirits" à Biblioteca Pública de Nova Iorque por Alice Walton era um desastre semelhante à destruição de Penn Station: afinal, quem de seu juízo iria visitar um museu ao Arkansas no meio do nada?

A construção de Crystal Bridges levantou uma polémica interessante: será que fazia sentido a construção de um museu de arte por uma herdeira que acumulou dinheiro através de uma empresa que paga mal aos empregados? Não seria melhor usar o dinheiro para aumentar os salários dos empregados? Esta polémica foi a mesma que rodeou a decisão de Andrew Carnegie apoiar um sistema de bibliotecas públicas, quando Carnegie era alguém conhecido por lutar contra os sindicatos e os aumentos de salários por decreto. Mas não foi a primeira vez que os Walton decidiram mandar os salários dos empregados à fava, pois em Fayetteville, a Universidade recebe bastante dinheiro em doações e o Walton Arts Center, localizado em Dickson St., no centro da cidade, e onde assisti a um concerto da Marisa, tornou-se pequeno e em 2015 iniciou-se uma renovação e expansão que custou $23 milhões.

Os discursos pagos a preço de ouro de Hillary Clinton foram oferecidos como prova de que era uma pessoa corrupta, que estava feita com Wall Street. Só que num dos discursos, em que ela falou à General Electric Global Leadership Meeting, cujo texto acabou sendo divulgado através das Wikileaks, Clinton defende que as empresas devem voluntariamente aumentar os salários dos empregados, à semelhança do que fez Henry Ford, quando teve a visão de que os seus empregados seriam parte da sua clientela, se os seus salários assim o permitissem. Curiosamente, o Walmart em anos recentes decidiu aumentar os salários praticados.

Como vêem, a América, acima de tudo, é um sítio muito "corrupto".

2 comentários:

  1. "Touché!" Grande farpa sobre os "trumpitos"...
    É que há numerosas, e boas, definições de "corrupção" e tantas interpretações que uma delas não passa de arma de arremesso que prolifera à custa da ignorância e escassez do, por assim dizer, "pensamento crítico".

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  2. E como encontrar portugueses em Fayetteville? Diz-me o meu filho, que trabalha precisamente numa dessas multinacionais que vende à Walmart, não haver mais nenhum.
    O que o deixa triste e mais solitário, apesar da sua muito boa integração na sociedade local.Sugeri-lhe tentar a Universidade e, também lá não encontrou ninguém.

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