sábado, 12 de novembro de 2016

Mudança

Hannibal Lecter: First principles, Clarice. Simplicity. Read Marcus Aurelius. Of each particular thing ask: what is it in itself? What is its nature? What does he do, this man you seek?

Nos últimos dias conversei com um amigo que, de certa forma me encurralou e me forçou a limpar o cérebro e começar de novo a olhar para as eleições. Pediu-me para esquecer que Hillary Clinton era mulher e olhar para as eleições apenas do ponto de vista da informação e dos modelos. Qual a diferença entre os modelos que eu construo e os modelos das eleições, perguntou-me. Uma diferença é óbvia: quando eu faço projecções acerca dos mercados agrícolas, as minhas projecções não têm o poder de influenciar o mercado; no entanto, as projecções da USDA têm esse poder. E isso levou-me a pensar que nestas eleições, as projecções do Nate Silver têm poder de mercado. Nesse caso, qual a natureza dos erros das projecções do Nate Silver e que explicações alternativas podem ser exploradas?

Para compreender a vitória de Donald Trump, temos de nos perguntar o que têm em comum as vitórias de George W. Bush, Barack Obama, e Donald Trump. Todos estes candidatos são fracos: Bush era o homem comum, Obama um senador inexperiente, e Trump um idiota. Mas todos tinham uma vantagem enorme: candidataram-se por um partido diferente do dos dois anteriores mandatos. Como disse Gail Collins na sua coluna do The New York Times, "After a president serves two terms, Americans generally vote for change, and the other party’s nominee."

Quem vota pela mudança são os independentes e estes não são leais a pessoas ou partidos; apenas são desleais ao partido que está no poder há muito tempo. A vitória de Trump demonstra que qualquer pessoa consegue ser eleita depois de dois termos do mesmo partido. Se Hillary Clinton tivesse concorrido em 2008, teria sido eleita, apesar da suspeita de corrupção; assim como Bush foi eleito apesar de não parecer muito inteligente (a eleição dele teve outra característica que discuto mais à frente); Obama foi eleito apesar de inexperiente, se suspeitar que fosse muçulmano, e ser negro; e Trump foi eleito apesar de ser racista, corrupto, e praticamente criminoso. No caso do Obama, ele era tão boa pessoa que a sua eleição foi explicada por os americanos terem finalmente vencido o racismo -- é um candidato que cria a ilusão de que os eleitores são boas pessoas. Outro erro que cometemos é pensar que os independentes votam de acordo com os seus melhores interesses; votam pela mudança, independentemente do candidato ser bom ou mau.

Os democratas conseguiram eleger um candidato após pelo menos dois termos democratas em 1940, 1944, e 1948, após a Grande Depressão; desde então foram incapazes de o fazer. Já os republicanos conseguem eleger três termos seguidos com mais separação no tempo (1876, 1928, 1988). Uma outra coisa curiosa é que os republicanos conseguem eleger Presidente e Congresso simultaneamente mais frequentemente, apesar de se dizer que o ideal é ter um governo dividido, em que Congresso e Presidente não tenham partidos coincidentes.

A probabilidade de eleição de Clinton em 2016 deveria ter sido muito baixa, mas os modelos não levaram em conta que este seria o terceiro mandato democrata, ou seja, trataram as eleições como se fossem eventos independentes, quando o resultado destas eleições depende dos resultados anteriores.

As polls são boas a prever o voto popular, mas falharam no Colégio Eleitoral, especialmente no terceiro mandato consecutivo, por várias razões:
  • a metodologia de formulação das perguntas, pois perguntam apenas acerca dos dois candidatos principais e não dos candidatos menores;
  • a selecção da amostra, pois os independentes podem não estar bem representados; e
  • a agregação dos resultados dos diferentes grupos demográficos.
O modelo de Nate Silver teve excelentes resultados em 2008 porque Obama era do partido oposto ao do dos dois mandatos anteriores. Os resultados beneficiaram mais de correlação do que causalidade. No segundo mandato de Obama, os resultados do modelo não foram tão bons, mas nessa eleição já se sabia que Barack Obama não era um presidente incompetente e os eleitores deram-lhe o benefício da dúvida até porque tinham medo de mudar o rumo do país durante a Grande Recessão. O segundo mandato de Bush beneficiou do medo de se mudar de rumo a meio da luta contra o terrorismo. Por outro lado, o modelo das chaves que mencionei no meu post anterior não têm em conta as polls e conseguiu prever bem todas as eleições nos últimos 30 anos, menos a de Bush vs. Gore, em que deu a vitória a Gore. A economia estava óptima, logo não era lógico mudar de rumo, a não ser que os eleitores independentes dessem um peso mais forte a mudança do que continuação, especialmente dado que os mandatos anteriores tinham sido do Partido Democrata. Mas essa eleição também teve uma característica única: foi decidida pelo Supremo Tribunal e o voto decisivo foi o de Sandra Day O'Connor, que é republicana.

As polls também prejudicaram Hillary Clinton por outra via: ela foi a candidata que parecia mais sensata e competente, mesmo com o escândalo dos e-mails e suspeitas de corrupção e, apesar de muitos eleitores não gostarem de Trump, ao verem que ele era tão problemático e ela tinha uma probabilidade mais alta de ganhar, pensaram que ela seria eleita mesmo sem o voto deles, logo minimizaram a ameaça de Trump e permitiram-se votar em candidatos de partidos menores.

Uma nota acerca a dispersão geográfica: no meio do país, onde a densidade populacional é menor, o custo por eleitor de fazer campanha e de mobilizar eleitores no dia da eleição é muito mais alto tanto em termos de dinheiro, como em número de voluntários, até porque há menos democratas nessas áreas. São áreas problemáticas com nível de educação mais baixo do que nos centros urbanos: mais desemprego, mais dependência de estupefacientes, mais pobreza. É muito mais difícil organizar uma campanha nessas condições. Para os Republicanos é mais fácil porque podem usar a rede social das igrejas, o que pode ser o que lhes permite ganhar o Congresso mais vezes.

Não acho que a vitória de Trump seja uma insurgência contra o politicamente correcto nas eleições nacionais; é apenas uma coincidência que ele tenha uma postura politicamente incorrecta e seja do partido oposto ao dos dois termos anteriores. O politicamente incorrecto de Trump teve o mesmo efeito explicativo que a derrota do racismo na eleição de Obama. No entanto, ser politicamente incorrecto valeu-lhe uma vantagem entre os candidatos republicanos porque deu-lhe popularidade. Penso que qualquer candidato republicano teria derrotado Hillary Clinton, da forma como ela geriu a campanha. Se Trump governar oito anos, facilmente se elegerá uma mulher democrata porque o apetite por mudança estará no apogeu. Daqui a quatro anos, o apetite por mudança não será tão grande, logo os democratas terão maior probabilidade de ganhar com um candidato mais convencional do que uma mulher.

4 comentários:

  1. Rita,

    Parece-me que transportou para o seu texto as conclusões típicas do dia seguinte.

    As explicações que dá ou cita não explicam porque é que Donald Trump foi o candidato dos republicanos contra a clara vontade de uma grande parte do GOP.

    Do meu ponto de vista, o que explica a vitória de Trump contra o "seu" partido explica também a vitória dele contra Clinton.

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    1. Excelente Rui, excelente.
      tenho lido a malta de direita (ver Rui Ramos no Observador, por exemplo) a falar coom se apenas a esquerda precisasse de perceber o que se passou e perceber as causas da derrota. ESquecem-se que antes de derrotar a esquerda, Trump derrotou não um mas 16 candidatos republicanos. E ganhou-os com o voto popular também.

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    2. Não é texto do dia seguinte. O modelo das chaves previu a vitória de Trump com várias semanas de antecedência.

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