terça-feira, 20 de dezembro de 2016

Gritar fogo num teatro apinhado de gente

Há quem ache que há palavras demasiado perigosas para poderem ter rédea solta. Daqui decorre o seguinte: a bem da sociedade, é melhor silenciar e punir quem recorre a uma linguagem incendiária. Embora nunca o digam, os “iluminados”, aparentemente os únicos imunes a palavras incendiárias, têm a pior das impressões dos cidadãos que alegadamente querem proteger. Os cidadãos não são vistos e tratados como adultos, mas sim como umas criançolas. Incapazes de pensar pela própria cabeça, impressionáveis e inflamáveis por determinados conteúdos, imbecis, acéfalos, ignorantes, sem discernimento, manipuláveis pelo primeiro demagogo de feira, há que protegê-los de certas palavras como se faz às criancinhas. Os iluminados atribuem um poder mágico às palavras. Pelos vistos, basta aparecer alguém com um discurso de ódio ou uma linguagem incendiária para de imediato as hordas se lançarem numa espiral de violência. Claramente, vivemos numa época em que não abunda a fé na humanidade. Daí o regresso em força do discurso sobre as massas ignorantes, influenciáveis e acéfalas, agora à solta pelas redes sociais, como não se cansam de lamentar alguns respeitáveis comentadores.
Vejamos outro problema. A seguir à morte dos cartoonistas do Charlie Hebdo, o Papa fez um comentário absolutamente lamentável. Segundo ele, não se brinca com a fé e é normal dar socos a quem ofende a nossa mãe. No fundo, estava a dizer que os cartoonistas franceses estavam mesmo a pedi-las e, por isso, é normal que alguns muçulmanos se tenham revoltado com o mau gosto (indiscutível) e as provocações do jornal. Esta ideia atravessou muitos dos discursos pós-atentado. E eu pergunto: até que ponto esta atitude contra a linguagem incendiária e provocatória não cauciona o terrorismo islâmico? Eu explico. Ouvindo discursos como o do Papa, muitos terroristas podem pensar que a principal diferença entre eles e os ocidentais é a coragem em sujar as mãos com sangue – eles sujam-nas se for preciso, enquanto os cobardolas dos ocidentais não são capazes de passar à acção e literalmente matar o mal pela raiz. Bem, mas não era disto que queria falar quando comecei a escrever este post. O meu ponto era outro.
Nos EUA, lembra Mick Hume no seu “Direito a ofender”, a maior autoridade citada no argumento contra a liberdade irrestrita de expressão é o juiz Oliver Wendell Holmes, autor de uma sentença unânime do Supremo Tribunal em 1919. O que diz, afinal, de especial essa sentença? Passo a citar: “Nem a protecção mais rigorosa da liberdade de expressão protegeria um homem que gritasse falsamente «fogo!» num teatro e causasse pânico.” Ora esta sentença é muitas vezes invocada para impor limites a todas as palavras consideradas incendiárias, as quais, por conseguinte, não estariam protegidas nem mesmo pela Primeira Emenda dos EUA. Na verdade, 50 anos mais tarde, em 1969, o Supremo Tribunal anularia a sentença de 1919, num caso que envolvia um líder do Ku Klux Klan chamado Clarence Brandenburg.
Clarence Bradenburg discursou num comício onde se falou de vingança contra “pretos”, “judeus” e quem os apoiasse. À luz da sentença de 1919, foi condenado a 10 anos de prisão por um tribunal de Ohio. Os juízes do Supremo revogaram essa condenação e estreitaram os critérios passíveis de restringir ou punir qualquer discurso. Doravante, para que os direitos da Primeira Emenda fossem restringidos, o tribunal teria de demonstrar que as palavras poderiam provocar danos graves e que havia uma perspectiva imediata de que isso acontecesse. Exprimir uma opinião provocadora ou considerada incendiária já não poderia ser considerado crime.
Penso que qualquer tentativa de restringir a liberdade de expressão deve passar, no mínimo, o teste definido pelos juízes do Supremo dos EUA em 1969: mostrar que as palavras tencionam ou podem incitar uma “acção ilegal iminente”. Além disso, como sublinha Mick Hume, deve-se sempre ter em conta o contexto em que as palavras são proferidas. Uma coisa é dizer que “os judeus não fazem cá falta nenhuma”, outra é “vamos dar cabo do cabrão daquele judeu ali à frente”. O último exemplo parece ser uma infracção criminal, o primeiro é uma mera opinião ofensiva e, por isso, não deve ser criminalizada. Infelizmente, não é neste sentido que vai a legislação a nível europeu, como mostram, por exemplo, as leis relativas ao discurso de ódio impostas pela União Europeia a toda a Europa em 2008. Não é com este tipo de leis se que se traz paz social e ordem pública à Europa. Pelo contrário. Podem ajudar a inflamar as tensões ao sancionarem oficialmente a ideia de que o discurso ofensivo é um crime e que ser ofendido é razão para tomar medidas censórias. No fundo, como diz Mich Hume: estas leis "dão luz verde a qualquer pessoa que guarde rancor e queira ilegalizar ou suprimir opiniões que considere perturbadoras."

2 comentários:

  1. Sugestão - comparar essa posição com a tal do Popper; até podem ser duas maneiras de dizer a mesma coisa, mas não me parece (sobretudo na parte do "iminente").

    Outro ponto - a dicotomia entre “os judeus não fazem cá falta nenhuma” (opinião puramente descritiva sem apelo à ação) e “vamos dar cabo do cabrão daquele judeu ali à frente” (apelo a uma ação concreta) deixa de lado outra situação (ou uma porção de outras), nomeadamente a categoria "apelo genérico a uma ação num futuro indeterminado" - onde fica, p.ex., "há de chegar o dia em que vamos correr com os judeus da nossa terra", ou "temos que nos preparar para o dia da guerra santa contra os sionistas e cruzados, inclusive nas suas terras" ou "Os assassinos da Comuna de Paris e de Budapeste ensinaram-nos que a repressão é sempre impiedosa e que a paz dos cemitérios é a única promessa feita pelas forças da ordem estatal. Chegados a uma situação de confronto em que a repressão não poupará ninguém, não poupemos nenhum desses cobardes que aguardam a nossa derrota para se tornarem carrascos. Incendiemos os bairros residenciais, liquidemos os reféns, arruinemos a economia" (citação de um livro que tenho em casa).

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  2. São boas perguntas e muitas vezes é essa a parte mais difícil e mais descurada.

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