quinta-feira, 22 de dezembro de 2016

Floricultura 5


 É na primavera que floresce, os botões abrem-se um a um como papel de rebuçado.
Nisto, é como todas as outras plantas, ou todas as outras plantas que florescem na primavera. Olhamos pela janela do carro para campos amarelos e se a víssemos vê-la-íamos como vemos as flores nos campos amarelos, desta vez não como papel de rebuçado mas como um tapete, uma colcha, uma toalha. Também como todas as outras plantas tem uma raiz. Esta raiz não é enigmática, como a raiz da mandrágora. Se escavarmos como escavam os cães treinados não vamos encontrar homúnculos debaixo do chão, não cairemos mortos pelos gritos dos pequenos homens e mulheres que arrancamos pelos cabelos. Nem precisaremos dos livros que ensinam a pô-los a bom uso, a nosso uso, seja. Haveria que desenterrar a raiz numa segunda-feira, voltar a enterrá-la à noite numa campa de um cemitério de aldeia, regá-la durante trinta dias com leite de vaca onde se afogaram três morcegos. Se, passados estes dias e estes cuidados, mais uma vez a desenterrarmos e enrolarmos na mortalha do morto da campa do cemitério de aldeia, então, é fatal, é garantido, está feito. Um gesto fora do lugar, um segundo a mais ou a menos, cinco morcegos em vez de três, e tudo terá sido em vão. Um dia mais cedo, uma semana mais tarde, um morcego morto de susto antes de se afogar no leite, e o trabalho de nada terá valido. A magia é exacta, é rigorosa, não se esqueça disto quem dela esperar alguma coisa. Não se acerta à primeira, nem seguindo a receita de um livro carcomido. A prática é necessária, não por acaso lhe chamam A Prática. Uma ciência e uma arte. Litros de leite de vaca, gerações de trios de morcegos, armazéns de mortalhas e todos os cemitérios de aldeia registados no mapa terão que ser gastos antes que possa dizer-se, faça-se a minha vontade. Se quisermos que seja a nossa vontade a fazer-se e não a nossa incompetência. Leva muito tempo, curva muito as costas, encrespa muito os cabelos, apodrece muito os dentes, entorta muito os olhos. Não é para os fracos, para os volúveis. Esta planta que não é como a mandrágora também tem tronco e folhas e nisto é como a mandrágora e como todas as outras plantas. De tal modo é como as outras plantas, incluindo a mandrágora se desta excluirmos a raiz, que não é fácil dizer em que se distingue. Não tão difícil como dominar a ciência e a arte da magia. Mas difícil ainda assim. Digamos que o que a distingue é o que nela floresce na primavera, dromedários de cílios longos e negros como pincéis de mandarins. 

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