domingo, 27 de março de 2016

História gótica

18. "A menina verá, não é lugar onde valha a pena ir."
A voz aguda sobrepunha-se ao ruído das rodas da carruagem que transportava o padre, o boticário e a rapariga que chegara de comboio à cidade de j. "Não tem nada que valha a pena ver, ninguém com quem valha a pena falar.", continuou a voz, subindo e descendo de tom com os solavancos da carruagem na estrada de terra. "Nem se pode dizer que sejam bonitas as paisagens da região, ou que valha a pena dar grandes passeios." "A floresta em volta é demasiado cerrada. Os campos são nesta altura charcos de lama. A mina é, bom, é uma mina." "Até a coisa mais antiga da aldeia, um poço na praça, se é que se pode chamar praça àquele terreiro, é vulgar. Qualquer aldeia mais bem situada e com ares mais sãos tem um igual, ou bem mais interessante." "Este é um amontoado de pedras toscas em volta de um buraco no chão, nada mais. Tem uns degraus tortos, para que quem atira o balde lá para dentro possa debruçar-se mais facilmente, e é tudo. Ah, e o musgo, está coberto de musgo." A voz era do padre, que olhava avidamente para o vestido da rapariga, para as formas debaixo do tecido, evitando a cara e o livro que ela pousara no colo. "Não concorda, senhor farmacêutico?" "Aposto que se não tivesse que ganhar a vida de alguma maneira, já se teria mudado para outro sítio." "Eu, de cada vez que cá venho, preciso de uma semana para recuperar da experiência." "E só venho se for mesmo indispensável. Casamentos, baptizados, funerais, e não há mais nada que me faça cá vir." "Comunhões, só na cidade, e depois de uma boa catequese, estes pagãos precisam de uma ensaboadela de doutrina." "E ainda assim não lhes sai o cheiro deste lugar." "Se não fosse Sua Excelência exigir que eu venha cá realizar cerimónias, deixava-os regressar ao estado de idolatria de onde nunca saíram." "E eu venho." "E quando me perguntam por que é que não faço de conta e digo ao Senhor Bispo que vim sem ter vindo, eu respondo que tenho mais medo que ele descubra e me mande ficar cá definitivamente, do que de vir cá muito de vez em quando." "Por mais baixa que seja a probabilidade de ser apanhado numa mentira, o risco ainda é demasiado elevado para mim." "Até se me embrulha o estômago só de pensar nisso, e não é dos solavancos desta carruagem que mais parece uma carroça." "Sabe,", agora era a voz do boticário que se ouvia, para irritação do padre, que preferiria continuar a ouvir-se a si próprio. E que queria finalmente perguntar à rapariga quem era e o que a levava até àquela aldeia. Era assim que muitas vezes perdia oportunidades. Papagueava tanto que, antes de chegar onde queria quando começara a pregar, havia alguém que interrompia o seu impulso para falar de si próprio, que sempre fora mais forte do que a sua curiosidade. "Sabe", avançou o boticário, "também eu quando aqui cheguei pensei que não ia aguentar." "Que ia morrer de tédio." "E da falta de companhia civilizada, de pessoas educadas capazes de ler um jornal e de ter uma conversa que fosse mais do que uma palavra curta, uma frase, um grunhido. Alguém que fosse capaz de discutir os mais recentes eventos da política, as mais recentes visitas dos dignitários estrangeiros, as vantagens da guerra sobre a diplomacia e vice-versa." "Mas a pouco e pouco fui-me desinteressando dessas coisas, de tudo o que se passa fora daqui. Nunca percebi o que me fez instalar-me neste sítio tão pouco atraente. Como não percebo o que me faz ficar." "A única palavra que me ocorre é fascínio." "Fascínio." Cada vez mais a rapariga prestava atenção ao que dizia o boticário, e cada vez menos o boticário prestava atenção a quem estava à sua volta.

1 comentário:

  1. Aguardo impacientemente cada 1/101 avos! Já sei que vou detestar a consciência de ter lido o centésimo primeiro...

    ResponderEliminar

Não são permitidos comentários anónimos.