quinta-feira, 24 de março de 2016

História gótica


12. Na taberna, enquanto o homem limpava a garganta com mais um copo de aguardente, os outros homens, apesar da impaciência, esperavam a continuação do relato.
"Que valha a pena," pensavam. Num canto da taberna, uma figura de costas voltadas batia com as peças de um dominó no tampo da mesa. Jogava sozinho. O som das pequenas placas do osso contra a madeira e do crepitar do fogo seriam reconfortantes e acolhedores se não  soassem como pancadas de um relógio as peças que iam sendo colocadas na ordem devida. Não um relógio comum, marcando regularmente a passagem dos segundos, dos minutos, das horas, com badaladas e rangidos do mecanismo. Relógios assim são reconfortantes, familiares, são mais um dos sons com que os dias, e as noites principalmente, são domesticados. Seria impossível viver com um tempo selvagem. Quando as horas parecem minutos e os minutos semanas, nenhum pacto pode valer, nenhuma promessa pode ser cumprida. As pessoas não sabem quando estão e em breve não saberão sequer onde. Onde não há relógios ou calendários, a vida é um sonho. Onde o tempo não pode ser medido e contado, somos a matéria de que são feitos os sonhos. Mas há relógios e calendários que nos conduzem ao pesadelo. Relógios que nos aproximam daquilo que receamos. Calendários que nos dizem estar para breve aquilo que não queremos. Relógios e calendários indiferentes, imparáveis. Relógios e calendários com os quais trocamos o conforto  do tempo pela sua autoridade. O som do dominó era como um destes relógios aziagos. "Aqui tem a sopa." A estalajadeira pousou na mesa do homem do dominó uma tigela de caldo fumegante e um prato com pão escuro cortado em grandes pedaços. Já antes lhe tinha levado uma caneca grosseira de vinho e um copo. "São cinquenta escudos." Com um gesto seco, o homem mandou embora a estalajadeira, com a sua voz nasalada  e  mão estendida. Ela afastou-se, a resmungar baixinho. Em nenhum momento o homem deixara de olhar para as formas que o dominó ia tomando à sua frente. Nem mesmo quando molhava o pão no caldo ou enchia o copo. Ia colocando peças, cobertas de migalhas e pingos de sopa, e recomeçando sempre. "É todas as noites a mesma coisa", ia resmungando a estalajadeira. "Fica ali a jogar que mais parece aluado." "E para pagar é um castigo." "E tirá-lo daqui, então." Ouviu-se finalmente a voz forte mas trémula do estrangeiro, e a estalajadeira interrompeu as suas lamentações. "Estou pronto. Vou continuar".

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