terça-feira, 22 de março de 2016

História gótica

8. "Hoje é que vai ser."
 Um fio de chá escorreu pelo canto da boca do homem de bigode farto. Limpou-o com a manga e continuou a mastigar. Com umas palavras pelo meio, umas que se percebiam outras não, lá ia falando. "Vamos descer ainda mais. Parece que há muito carvão lá pró fundo." Sorveu o chá. "Mas vai ser preciso cavar muito, abrir mais túneis. Já quase não se respira. E quase nem se vê, as lanternas sempre a falhar." Por cima do bigode, um leve tremor das asas do nariz acompanhava a conversa e as sobrancelhas iam-se cerrando. "Ontem na taberna apareceu um homem que parecia que tinha visto um fantasma. Branco como a cal. E tremia como quê. Metade da aguardente foi pró chão. Mas tantos copos que ele bebeu, deve-lhe ter assentado alguma." "E contou umas coisas, que nem se acredita." Agora era um rapaz de unhas encardidas que falava, a boca cheia de pão molhado no chá. "Parece que vinha lá de cima." A mulher tremeu e entornou um bocado do chá que ia levar à boca. "Pôs-se a falar e ficou tudo calado." "Até o Zeferino.", confirmou o homem. "E tu sabes qu'ó Zeferino ninguém o cala. Então depois de quatro copos bem cheios de cerveja, é só histórias, que a Josefa do moleiro lhe pisca o olho, que no palheiro já deitou umas quantas." "Deixa lá isso, olha o rapaz." A mulher levantou-se e foi buscar um pano para limpar o tampo da mesa. De costas voltadas, ouvia o marido a sorver o chá e a tossir. Nunca se ia habituar àquela tosse de mineiro, toda a noite o homem a virar-se, e a ressonar, e a tossir, parece que se lhe saem os pulmões pela boca, pensou. E agora também o filho. Ela bem queria que ele fosse estudar, até tinha poupado um dinheiro para o mandar para a cidade, para a escola do padre que ia à aldeia no dia da procissão, ou quando havia casamentos e funerais. E baptismos, mas já há algum tempo que havia poucos. Nem se lembrava do último. No velório da Adozinda, coitadita, que Deus a guarde, encheu-se de coragem e foi falar com o clérigo. "Senhor padre, se me dá licença." Pela cara do padre, um homem pequeno e lúbrico, passou uma expressão de impaciência. "Estas mulheres das aldeias. Algumas até são apetitosas, com as caras rosadas e as ancas cheias. Mas assim que abrem a boca, ó meu São Tomás, é porque lhes dói as cruzes, a quem é que hão-se rezar, e chegam dez avé marias, ou será que é melhor dez pais nossos e uma velinha da próxima vez que forem à cidade levar os ovos e as couves ao mercado. Parece que sou médico em vez de padre. Tratava-lhes da saúde era de outra maneira, que é o que elas estão a precisar, com aqueles maridos sujos e tísicos. Menos às velhas, essas parecem umas uvas passas." Tão diferentes das senhoras maduras e perfumadas que lhe beijam as mãos na cidade, que lhe oferecem pastelinhos recheados de creme e aquelas sanduíches de pepino, um pão muito branco e cortado muito fino. "Senhor padre." Desapareceram as sanduíches de pepino, os pastelinhos, as toalhas de linho bordadas, os sapatos revestidos de seda e laços que as senhoras lhe mostravam como se fosse por distracção. "Diz." "Era por causa do meu rapaz." Os olhos do padre rolaram. "Ele ler e escrever já sabe, que eu fiz questão que lho ensinasse o padeiro.", disse, com orgulho. "E alguns números também." "Vê lá se isso é boa ideia.", respondeu o padre. "Olha que para ir para a mina não é preciso nada disso." Ela baixou os olhos, desapontada. Ainda se lembrava do aperto no peito, do medo de que o filho nunca viesse a ser alguém. "Médico, advogado." No mercado da cidade tinham-lhe apontado uns cavalheiros bem vestidos, de unhas limadas e brilhantes, "Aquele é o médico", disseram-lhe. E o outro trata dos papéis para ir ao tribunal." Agora, na cozinha, sentiu o aperto outra vez. "Quando chegarmos logo à noite contamos-te o que disse o homem na taberna", foram dizendo o marido e o filho enquanto saíam, já com os casacos muito coçados vestidos.

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