quinta-feira, 31 de março de 2016

História gótica


25. Com a unha comprida do dedo mindinho, uma unha amarela e torta, retirou de entre os dentes, amarelos e tortos também, os restos fibrosos da carne que Gavril lhe servira ao jantar.
Era a pele muito branca que acentuava o amarelado dos dentes e das unhas, e a cor avermelhada das palmas das mãos. Por baixo da pele, a rede de veias azuis dava aos braços e ao rosto uma sensação de profundidade inquietante. Como se pudéssemos a qualquer momento rasgar a pele e tocar na estrutura de canais frágeis que a sustentava. E como se, tocando nesses canais, eles fossem rebentar e desfazer definitivamente a criatura ilusória sob a qual se erigiam. O chão da sala ficaria coberto pelo líquido que fluía por esses canais azuis, um líquido de que não seríamos capazes de antecipar a cor, não surpreenderia se fosse azul como as veias, ou dourado, ou vermelho. Ou até verde como a humidade das paredes. "Cosmin." O cão aproximou-se da mão do dono e abocanhou um osso suculento. Ao lado dele, sentado no tapete à frente da lareira, uma espécie de pequeno símio curvado e coberto de pêlo hirsuto tentou agarrar a comida e foi quase apanhado pelas mandíbulas do colosso. "Tenho aqui outra coisa para ti, Atanase", sibilou Anghelescu atirando um pedaço de pão ensopado de molho na direcção do símio. O cão pareceu hesitar entre o osso que roía no tapete e o pão que voou por cima das suas costas, mas acabou por decidir-se pelo osso e deixou de prestar atenção a Atanase. Este guinchou, apanhando o pão no ar. "Obrigado, senhor", ouviu-se uma voz que parecia vir do símio, como se um símio falasse. "Da próxima vez, vê lá se já estás aqui quando eu chegar", rosnou Anghelescu. "Sabes que me descontrai o teu cheiro a trapo encharcado. Dá-me vontade de rir." "Sim, senhor." Mais uma vez, parecia que era o macaco quem respondia, sem parar de mastigar o pedaço de pão que segurava com as duas patas dianteiras. O símio estava vestido com uns calções vermelhos de veludo, e na cabeça tinha um barrete, também vermelho, com uma borla dourada que lhe caía por cima do ombro, ora do esquerdo ora do direito. "Hoje estava tudo sossegado, senhor." Era, de facto, o símio quem falava. "Nas torres e nas masmorras. Nem um pio." "Estava algum morto?" "Não senhor." "Um deles estava quase, mas ainda deve durar mais uns dias." "Óptimo." Anghelescu, sentado num sofá amplo, deslizou como se estivesse a adormecer. "Vai ser difícil arranjar novos. É cada vez mais difícil." "E aqueles lá fora, a gastar energias com um preguiçoso que há três dias não sai do caixão." O cheiro que se desprendia das roupas de Anghelescu, se bem que um pouco enjoativo, era agradável, um cheiro a amêndoas e lilases. Mas misturado com o cheiro do cão e do macaco, que nunca deviam ter tomado um banho em todas as suas existências, e com o cheiro das velas, do mofo dos sofás e do ghoulash, tornava repugnante a atmosfera pesada da sala. A chuva violenta tornava impossível abrir janelas e, de qualquer modo, Anghelescu não parecia incomodado. "Atanase", ordenou, "vai tu agora lá abaixo buscar umas garrafas e queijo. A campainha continua sem funcionar, e já é demais ver aquelas bruxas uma vez que seja." "Para além disso," continuou, esvaziando para o copo as últimas gotas de vinho que restavam na garrafa, "para além disso, acho que há alguma coisa escondida lá em baixo." "Uma coisa pequena, como tu." "Vai lá e diz-me a que é que te cheira."

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